Opinião

CPI e acordo de colaboração premiada

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

4 de outubro de 2023, 21h47

Recentemente, diversas reportagens foram publicadas no sentido de que a advocacia do Senado emitiu parecer favorável à negociação de acordo de colaboração premiada pela "CPI dos atos golpistas", visto que as CPIs estão autorizadas constitucionalmente a investigar "fatos determinados de relevância para a República, com os poderes próprios das autoridades judiciais" .

Diante do referido posicionamento, uma CPI realmente pode celebrar um acordo de colaboração premiada?

Vigora em países de sistema jurídico regido predominantemente por regras do civil law, como é o caso do Brasil, o princípio da obrigatoriedade da ação penal que, em geral, está atrelado ao princípio da legalidade. Esse entendimento é decorrência da vinculação entre a obrigatoriedade do exercício da ação penal pelo Estado e o princípio da legalidade [1]. A legalidade geraria, no campo penal, a submissão do processo penal à lei e à obrigatoriedade da ação penal.

Ocorre que a obrigatoriedade da ação penal, em um contexto atual de busca pela eficiência e eficácia da persecução penal, adequa-se ao princípio da oportunidade regrada, que proporciona o respeito ao princípio da legalidade, bem como possibilita a adoção de institutos negociais, como é o caso da colaboração premiada, por países de sistema jurídico com predominância das características do civil law, desde que observados os limites discricionários previstos em lei [2].

A discricionariedade, no campo da justiça criminal, especialmente nos países do civil law, apresenta-se como uma opção de escolha aos órgãos de persecução, desde que observados os estritos limites da lei, buscando-se evitar possíveis atuações de maneira arbitrária [3].

A Lei nº 1850/2013, principal instrumento do microssistema da colaboração premiada adotado no Brasil [4], estabelece como legitimados para a celebração de acordo de colaboração premiada o Ministério Público e o delegado de Polícia.

A legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada pelo delegado de Polícia teve a constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADI 550.812. Na ocasião, o Plenário da Corte Suprema considerou constitucional a possibilidade de delegados de Polícia realizarem acordos de colaboração premiada na fase do inquérito policial.

Ficou definido que a formulação de proposta de colaboração premiada pela autoridade policial não atinge a atribuição constitucional do Ministério Público de titular da ação penal e de decidir sobre o conteúdo da denúncia.

A lei teve como fundamento para especificar quais seriam os legitimados para a celebração de um acordo de colaboração premiada a titularidade da persecução penal, exercida pelo MP e pela Polícia. A legitimidade do Ministério Público é mais abrangente em razão de titularizar a persecução penal de forma plena, abarcando a fase investigativa e a processual. Já a Polícia titulariza, em conjunto com o Ministério Público, a persecução penal apenas na fase investigativa.

Contudo, a legitimidade do delegado de Polícia para celebrar acordo de colaboração premiada, ante a ausência de plenitude persecutória, não autoriza a fixação de benefícios em favor do colaborador, que é, no caso, tarefa exclusiva do juiz no momento da decisão condenatória.

A legitimidade para a celebração de um acordo, estabelecida em lei, é, inclusive, requisito de validade de um acordo de colaboração premiada. Vejamos.

Um negócio jurídico existirá, ou seja, estará constituído, quando estiverem presentes os seguintes elementos: manifestação de vontade das partes, presença de agentes emissores da vontade, objeto e forma. Em um acordo de colaboração, esses elementos estão presentes no momento que as partes (colaborador e MP ou Polícia) manifestam a concordância quanto ao objeto pactuado em consonância com os requisitos (forma) previstos em lei.

Por outro lado, para um negócio jurídico ser válido, a manifestação da vontade deve ser livre e de boa-fé. Além disso, os agentes devem ser capazes e legitimados para celebrarem o pacto, que deve abarcar um objeto lícito, possível e determinado (ou determinável), bem como observar a forma adequada, livremente adotada pelas partes ou prescrita em lei. Superada essa etapa, por meio da observância dos requisitos expostos, o acordo de colaboração, já devidamente constituído, passa a ser válido.

Observa-se, portanto, que apenas os sujeitos dotados de legitimidade, ou seja, os previstos em lei, podem celebrar um acordo de colaboração premiada. A legitimidade para o acordo decorre da titularidade dos direitos que serão negociados no pacto.

Em um acordo de colaboração, o colaborador, então investigado/acusado, renuncia temporariamente a seu direito fundamental ao silêncio e à garantia da não autoincriminação em troca de um prêmio ofertado pelo Estado, em razão de ter decidido colaborar de maneira efetiva com a persecução penal. Em contrapartida, o MP ou a autoridade policial abre mão parcialmente do exercício de persecução penal, concedendo um prêmio ao colaborador (concessão de prêmio exclusiva do MP), em decorrência de ele (colaborador) ter realizado uma colaboração útil à persecução penal.

Observa-se, portanto, que apenas os titulares dos direitos em discussão (acusado e MP/autoridade policial) podem celebrar um acordo de colaboração premiada, pois não é cabível se transacionar, salvo nas hipóteses legais, direitos de outrem.

Ora, como admitir que um terceiro (CPI) possa dispor de um direito que não possui, o direito à persecução penal?

É diante dessa legitimidade vinculada à titularidade dos direitos transigidos pelas partes celebrantes de um acordo de colaboração premiada que surge o caráter personalíssimo do pacto.

Não se está olvidando do poder de investigação das comissões parlamentares de inquérito, previsto constitucionalmente. Ocorre que não há previsão legal de legitimidade das CPIs para a celebração de acordos de colaboração premiada, exigida em países do sistema do civil law que adotam institutos negociais, bem como as CPIs não titularizam o direito à persecução penal.

Mesmo que se entenda que o poder de investigação das CPIs abarca a persecução penal, esta se limitará à fase investigativa, visto que a persecução penal processual é exclusiva do MPe, desse modo, em nenhuma hipótese uma CPI poderá estabelecer benefícios em um acordo de colaboração premiada, atribuição exclusiva do MP.

 

 


[1] Coutinho, J.M. (2001) Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais, 1, 26-51, p.41.

[2] Deu, T.A. (2012) Sistemas Procesales Penales. La Justicia Penal en Europa Y America. Madrid: Marcial Pons, p. 130. "Con arreglo a un sentido más estricto, el princípio de oportunidad se limita en el aspecto subjetivo a los sujetos públicos, y desde el objetivo de al marco del proceso, abarcando desde la obrigación de incoación ante todo conocimiento de una notitia criminis a su finalización a través de una resolución, según lo previsto en la ley procesal penal".

[3] Cabral, A.do P.(2022) Colaboração Premiada no Quadro da Teoira Geral dos Negócios Jurídicos. In Salgado, D.R., Scheider, L.F., Queiroz, R.P. (coord.) Justiça Consensual. Acordos Criminais, Cíveis E Administrativos. Salvador: JusPodivm, p. 178-206. Para esse autor a disponibilidade da ação penal "não significa arbítrio: trata-se de discricionariedade das autoridades públicas, mas uma discricionariedade regrada, submetida a controles".

[4] PAULINO, G. C.. Colaboração Premiada: temas de aprofundamento. 1. ed. Londrina: Editora Thoth, 2023.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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