Fábrica de Leis

35 anos de Poder Legislativo na Constituição Federal

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

3 de outubro de 2023, 8h00

No próximo dia 5 de outubro, celebraremos 35 anos da Constituição Federal de 1988. Dentre tantas mudanças políticas e jurídicas por ela implementadas, obviamente não se pretende fazer uma análise profunda ou dialogar com as centenas de textos acadêmicos que debateram o tema nessas décadas. O objetivo deste texto, um pouco mais singelo, é partir de alguns pressupostos da situação atual e da percepção sobre o Poder Legislativo para apontar brevemente possíveis caminhos e questões para reflexão.

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A partir da Constituição Federal de 1988, o Poder Legislativo ganha importância social e institucional ímpar que o projeta para novo papel no exercício do poder político no Brasil. Paulo Bonavides e Paes de Andrade destacaram que "o Poder Legislativo começa a ser Poder com a promulgação da nova Carta constitucional. (…) Convertido em Poder, o Legislativo, que era chancelador formal dos atos do Executivo tem necessidade, agora, de um arcabouço sólido que permita atender às exigências do novo texto constitucional". Esses autores destacam o grande aumento de competências fiscalizatórias e legislativas do Parlamento que "coloca o Poder em destaque, quase tipificando um sistema parlamentarista" [1].

De fato, ao se comparar o regime constitucional de 1988 com o regime anterior da Constituição Federal de 1967 e Emenda nº 1/1969, houve inegáveis avanços pela não reintrodução no novo regime constitucional de institutos como a aprovação por decurso de prazo de projetos de lei, a vedação de emendamento em decretos-lei e sua aprovação por decurso de prazo, bem como a vedação às emendas parlamentares em projetos de iniciativa privativa do Poder Executivo. Além de não prever esses institutos, a Constituição de 1988 ampliou as matérias a serem disciplinadas por lei, restabeleceu a possibilidade de amplo emendamento parlamentar de medidas provisórias e projetos de iniciativa do Poder Executivo (exceto casos excepcionais, como, por exemplo, do artigo 63 da Constituição) e fortaleceu as competências fiscalizatórias do Legislativo, inclusive a suspensão de atos normativos do Executivo que exorbitem sua competência regulamentar.

De outro lado, há perspectiva de decepção com o desempenho do Poder Legislativo, especialmente na sua tarefa de elaboração das leis. Nas palavras de Luís Roberto Barroso: "No que toca ao Poder Legislativo, cabe assinalar a recuperação de suas prerrogativas dentro do novo quadro democrático, embora permaneça visível o decréscimo de sua importância no processo legislativo", no sentido da existência de uma crise no sistema representativo e que cada vez mais seria o Poder Executivo o protagonista da ação legislativa [2].

Independentemente de se concordar com tal diagnóstico, as pesquisas de índices de confiança corroboram essa percepção. Levantamento publicado em 2021 pela FGV estimou que apenas 12% dos brasileiros confiavam no Congresso Nacional [3]. Em 2023, pesquisa do Ipec apontou que, na média, os brasileiros, de uma escala de 0 a 100, confiam 40 pontos no Congresso Nacional — pontuação ligeiramente superior à "quase nenhuma confiança" (33 pontos) e sensivelmente inferior à "alguma confiança" (66 pontos) [4].

A hipótese que se adota para compreensão desse descompasso entre as expectativas de desempenho do Poder Legislativo na Constituição de 1988 e a percepção negativa da sua performance é a de que existe uma demanda social latente por mais (e não menos) democracia. Não necessariamente uma democracia direta, mas uma democracia representativa com novos mecanismos de participação social, transparência, racionalidade e eficiência das atividades legislativas.

Reforçando essa hipótese, Elsa Pillichowski, diretora de Governança Pública da OCDE e responsável pela Iniciativa de Reforço da Democracia, lançada em 2022 como um projeto de boas práticas de reforço de valores democráticos[5], destaca: "Então, é muito claro que não são nossas democracias que não estão funcionando tão bem quanto costumavam — são as expectativas dos cidadãos que mudaram ao longo do tempo. E suas expectativas são sobre uma participação mais forte, uma representação mais forte. Portanto, trata-se de nossas democracias representativas terem que se modernizar no futuro e terem que envolver cada vez mais as pessoas diariamente, institucionalmente e de forma sustentável na tomada de decisões e garantir que elas as representem melhor em sua diversidade" [6].

Não se defende, portanto, um retorno a um modelo anterior de democracia — seja democracia direta em um modelo idealizado de democracia antiga, seja um modelo do suposto período de ouro das democracias parlamentares (que Bernard Manin denomina em tom crítico de "parlamentarianismo" [7]). Na verdade, o grande desafio é como pensar e implementar novos instrumentos de reforço dos vínculos da democracia representativa com mecanismos para aprimorar a participação social e o ganho de qualidade das deliberações.

Sem pretensão de esgotar o tema, abaixo apresentam-se algumas reflexões para aperfeiçoamento das atividades legislativas, especialmente em nível federal para tentar contribuir com a superação desse hiato entre amplas previsões constitucionais e percepção de baixo desempenho do Poder Legislativo. Convidamos o leitor também a retomar as diversas contribuições e sugestões feitas a respeito nesta coluna da Fábrica de Leis, que comemorou seu primeiro ano de existência no final deste último mês.

Em primeiro lugar, é necessária uma leitura revitalizada do princípio constitucional da participação social. Isso significa que devem ser institucionalizadas novas formas de participação no processo legislativo, para além das previstas no artigo 14 da Constituição (iniciativa legislativa popular, plebiscito e referendo). Sabe-se que há a prática das Casas Legislativas realizarem audiências públicas e debates temáticos sobre temas e projetos na pauta política. Entretanto, devem ser exploradas as novas formas de participação, como as consultas públicas, em que as pessoas podem diretamente submeter sugestões ao texto em discussão (como no caso ainda pouco repetido do Marco Civil da Internet — Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014), e as enquetes de opinião (atualmente realizadas pelos portais das Casas do Congresso Nacional).

Recentemente no direito comparado surgiram novas experiências de participação social no processo legislativo chamadas minipublics ou assembleias de cidadãos (citizen's assembly), em que um grupo de cidadãos é sorteado de modo estatisticamente representativo para receber informações qualificadas e tomar uma posição não vinculante sobre um determinado tema. Não se trata de substituir os parlamentares, mas de criar um mecanismo acessório de produção de novas informações, para que pessoas com diferentes backgrounds e perspectivas sejam chamadas a contribuir para o debate público após processo deliberativo com grande riqueza de informações [8].

Em segundo lugar, é necessário levar a sério a melhoria da qualidade do processo legislativo e da lei. Já foram alertadas nesta coluna as hipóteses para a falta de implementação, na prática do Congresso Nacional, da Avaliação de Impacto Legislativo (AIL) [9]. No entanto, reitera-se que o processo de tomada de decisão legislativa é de fundamental importância para que, de um lado, as pessoas em geral se sintam parte da deliberação e vejam valor no cumprimento da legislação, ainda que dela discordem [10], e, de outro, haja uma efetiva melhora na qualidade do texto legislativo tanto do ponto de vista da legística formal quanto material.

Em terceiro lugar, a adoção de novas tecnologias digitais que permitam o melhor funcionamento das Casas Legislativas. Não se trata de pensar apenas em fazer "mais do mesmo", ou seja, permitir às Casas que deliberem sobre uma maior quantidade de proposições legislativas, repetindo os mesmos problemas deliberativos de pouca discussão e participação social, que frequentemente ocorrem em projetos importantes. As novas ferramentas digitais devem ser utilizadas para que o Poder Legislativo efetivamente tenha significativo ganho em termos de qualidade de deliberação, com maior transparência dos projetos em discussão, maiores aportes informacionais da sociedade, e maior previsibilidade quanto às agendas das Casas.

Outro ponto de atenção é a valorização das minorias parlamentares como partícipes do processo legislativo e não meros espectadores. Não se trata do aprofundamento do chamado "kit obstrução" da prática parlamentar, com requerimentos de finalidade predominantemente protelatória. Há a necessidade de se preverem mecanismos de atribuição de poderes procedimentais às minorias de modo que elas possam exigir e apresentar maiores fundamentos informacionais, correção de vieses e perspectivas alternativas para as soluções em debate, sem prejuízo do poder das maiorias parlamentares decidirem o mérito das proposições legislativas.

Por fim, é necessário repensar a utilização dos regimes de urgência no processo legislativo. Sabe-se que o STF declarou a constitucionalidade da previsão dos regimes de urgência nos regimentos internos das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna coporis [11]. Contudo, há verdadeiros casos de uso indevido desses instrumentos, que implicam forte aceleração do processo legislativo, com supressão do exame pelas comissões permanentes das Casas, introdução de projetos na Ordem do Dia do Plenário de forma pouco previsível, e apresentação de textos normativos (especialmente por emendas substitutivas globais) de última hora já em Plenário. Uma disciplina regimental mais clara e com possibilidades de maior tempo para deliberação, inclusive nos casos de urgência, pode ser interessante para permitir uma decisão mais adequada e refletida.

Nesse percurso de 35 anos de Constituição, temos um projeto traçado ainda em construção para levarmos a sério o potencial democrático do Poder Legislativo. Não precisamos simplesmente de um saudosista resgate do prestígio das atividades legislativas. Precisamos de verdadeira transformação das normas e práticas parlamentares para que o Poder Legislativo seja reconhecido, admirado e respeitado como o fórum público de debates políticos, em que a sociedade brasileira se vê vocalizada por meio de representantes diversos e plurais e com o qual estabelece permanente diálogo participativo e deliberativo.

 


[1] Paulo Bonavides / Paes de Andrade, "História constitucional brasileira", 4ª ed., Brasília, OAB, 2002, p. 503-4.

[2] Luís Roberto Barroso, “A Constituição Brasileira de 1988: uma Introdução”, in Ives Gandra da Silva Martins / Gilmar Ferreira Mendes / Carlos Valder do Nascimento, Tratado de Direito Constitucional, v. 1, São Paulo, Saraiva, 2010, pp. 9-41, p. 29-31.

[6] OECD (2022), "Time to act: Nurturing our democracies for the 21st century", OECD Podcasts, Duration: 20:38, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/451ae7a2-en, p. 3.

[7] Bernard Manin, "The principles of representative government", Cambridge, Cambridge University, 1997, p. 202 e ss.

 

[8] Veja-se, por exemplo, uma dessas primeiras experiências, ocorrida na Província de British Columbia no Canadá em 2004 para reforma do sistema eleitoral, analisada em Mark E. Warren / Hilary Pearse (org.), “Designing Deliberative Democracy: The British Columbia Citizens’s Assembly”, Cambrige, Cambridge University, 2008.

[10] Veja-se o argumento de Yuval Feldman, "The Law of the Good People: Challenging State's Ability to Regulate Human Behavior", Cambridge, Cambridge University, 2018, pp. 182-4.

[11] STF, ADI. 6.968, rel. min. Edson Fachin, j. 22/4/2022.

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  • é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha), advogado, consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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