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Arranjo federativo do Ministério Público de Contas na ADI 5.254

Autores

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

  • Patrick Mesquita

    é mestre em Direito e Desenvolvimento da Amazônia pela Universidade Federal do Pará e procurador de Contas do Ministério Público de Contas do Estado do Pará.

3 de outubro de 2023, 8h00

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.254 esteve na pauta de julgamento do Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal a partir do dia 22 de setembro, até ser retirada devido a pedido de destaque apresentado pelo ministro André Mendonça quatro dias depois. Na citada ADI, estão em debate leis do Pará que concederam autonomia administrativa e financeira aos Ministérios Públicos (MPCs) que oficiam perante o TCE e o TCM.

Reprodução / MCP
Sede do Ministério Público de Contas do Estado do Pará, em Belém
Reprodução/MPC

A ação, protocolada pelo procurador-geral da República, buscou rememorar a jurisprudência do STF firmada nos idos de 1994 (ADI 789), na qual foi assentado que o modelo de Ministério Público de Contas que atua junto ao TCU – que é despido de autonomia administrativa e financeira – supostamente deveria ser imposto aos estados e ao Distrito Federal. Essa simetria se irradiaria da redação do artigo 75 da Constituição Federal, em espelhamento da simetria das Cortes de Contas estaduais em relação à Corte de Contas federal.

Curiosamente, a própria PGR opinou, posteriormente, pela improcedência do pedido, sob o argumento de que, embora a Constituição Federal não tenha previsto expressamente autonomia administrativa e financeira aos MPCs, não a teria vedado, o que abriria margem de conformação estadual nesse sentido.

O voto do relator, ministro Roberto Barroso, contudo, enveredou pela necessidade de se manter a integridade da jurisprudência trintenária do STF, e que não haveria ofensa ao federalismo, já que a simetria seria imposta pela própria Constituição.

O tema é de grande relevância para o desenvolvimento das institucionalidades ligadas ao controle das contas públicas, e, em grande medida, do cumprimento das regras fiscais.

É elucidativo, por sinal, o exemplo do Ministério Público de Contas do Estado do Pará, cuja gestão lhe é deferida diretamente desde 1959, em decorrência da Lei Estadual n°1.853, de 30 de dezembro de 1959. Em 1992 foi editada sua Lei Orgânica, vigente até os dias atuais, em que foi reforçada a autonomia administrativa e financeira da instituição, e que embora tenha sido editada já sob os auspícios da Constituição de 1988, reproduz, de certa maneira, estado de coisas já existente 33 anos antes. Trata-se, como visto, de autonomia que já era abrigada pela Constituição de 1967 e nunca foi contestada em face dela, tendo remanescido fortemente na Constituição Cidadã de 1988.

Há quase 64 anos, o Ministério Público de Contas do Estado do Pará possui autonomia administrativa e financeira. Sob o manto da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica, a instituição se organizou de forma própria e totalmente dissociada do Tribunal de Contas correspondente. O MPC conquistou a respeitabilidade da sociedade paraense e é reconhecido desde sempre por sua autonomia em relação ao Tribunal de Contas. A propósito, tanto o TCE quanto o TCM do Pará emitiram, em documento juntado à ADI, moções de apoio à manutenção da autonomia do MP de Contas, ressaltando, ambos, que o modelo paraense é digno de encômios e bem poderia ser seguido em outras unidades federativas.

Para além de situações tópicas, o que está em debate na ADI 5.254, estruturalmente, é o desenho institucional do Ministério Público de Contas. A bem da verdade, o STF continua amarrado em intelecção trintenária confessadamente expansionista do princípio da simetria, lastreado em leitura inflacionada do artigo 75 da Constituição Federal. É, aliás, paradoxal que se imponha rigidamente a simetria com o regime do TCU para o MPC, quando — em relação ao arranjo do Tribunal de Contas do Município de São Paulo — tal parâmetro constitucional foi expressamente refutado nos autos da ADPF 272, a pretexto de recepção de um anômalo regime institucional pré-1988.

Embora se reconheça que o artigo 75 impõe certo grau simetria dos Tribunais de Contas Estaduais ao Tribunal de Contas da União, deve-se enfatizar que essa simetria está limitada a aspectos básicos da fisionomia dos tribunais de contas e se restringe aos assuntos tratados na Seção IX, do Capítulo I, do Título IV da Constituição Federal, conforme a dicção expressa do artigo 75. É dizer, o caput do artigo 75, a contrario sensu, autoriza expressamente ampla liberdade de conformação local para tudo que não tiver sido tratado na referida seção constitucional.

Cabe indagar, por oportuno, onde o Ministério Público de Contas foi tratado? Sua localização está a 55 artigos de distância do artigo 75. Mais precisamente no artigo 130 da Constituição Federal, justamente na seção respeitante ao "Ministério Público", dentro do capítulo das "Funções Essenciais à Justiça". A topografia constitucional do MP de Contas nos diz muito.

O que nos parece é que, para além de uma controversa e, por vezes, seletiva expansão interpretativa conferida ao artigo 75, o STF também enraizou leitura inadequada do artigo 130 da Constituição Federal. Ao invés de resguardar a eficácia institucional ao Parquet de Contas, gradualmente deteriora o seu regime jurídico. Ainda que se possa dizer que do artigo 130 da Constituição Federal não se extrai a obrigatoriedade de autonomia institucional dos MPCs, também desse artigo não há qualquer proibição a ela. Logo, a regulação dos MPs de Contas, posicionados, repita-se, a 55 artigos da seção constitucional dos TCs, não pode ser compreendida como abarcada pela cláusula de simetria obrigatória com o modelo federal.

O artigo 130 da CF/ 1988, então, muito longe de ser uma espécie de morredouro da autonomia institucional do Ministério Público de Contas, merece, em verdade, leitura atualizada, consonante com a máxima efetividade constitucional. Impõe-se, a bem da verdade, que se extraia do artigo 130 um piso de direitos institucionais e funcionais, passíveis de alargamento pelas vias locais, mas jamais de constrição.

A ADI 5.254, portanto, figura como excelente oportunidade aberta ao STF para, em vez de reafirmar pilares controversos de uma jurisprudência capenga, venha a contribuir para o fortalecimento de órgão fundamental para o controle das contas públicas, pondo em seu devido lugar a ideia de federalismo no país.

É hora de permitir aos Ministérios Públicos de Contas o desenvolvimento de suas fisionomias institucionais e funcionais, sob risco de, por má interpretação jurídica, condená-los a subsistirem em patamar aquém do constitucionalmente projetado.

Afinal, a crônica crise fiscal vivenciada no país, sobretudo nos últimos dez anos, revela um déficit de institucionalidade no monitoramento das contas públicas, que guarda, em maior ou menor medida, correlação com esse amesquinhamento institucional do MPC, o qual se tornou apenas uma miragem anêmica de contrapeso e contraditório dentro do sistema de controle externo brasileiro.

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

  • é mestre em Direito e Desenvolvimento da Amazônia pela Universidade Federal do Pará e procurador de Contas do Ministério Público de Contas do Estado do Pará.

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