Opinião

País vive período de estabilidade e "crise" entre Senado e STF não se sustenta

Autor

  • José Carlos Abissamra Filho

    é advogado criminal doutor e mestre pela PUC-SP ex-diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e autor de Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais (Juruá Editora).

29 de novembro de 2023, 13h26

Em 5 de maio de 2016, o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, afastou o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, naquilo que pode ser considerado o ápice de uma crise institucional que demoraria a se desenrolar. O clima era de “lava jato”. Poucas pessoas questionaram a medida. As coisas aconteciam com tamanha velocidade que a memória chega a nos trair.

Era uma crise entre o STF e o Congresso? Difícil dizer. Mas esse período, sim, merece ser estudado. Hoje, 2023, instituições em pleno exercício regular de suas funções: não, não existe crise. As instituições estão funcionando regularmente e o STF está atuando dentro da sua esfera de competência.

Samuel Figueira
Rodrigo Pacheco (Senado) entre Bruno Dantas (TCU) e Gilmar Mendes (STF), durante evento em Brasília

É verdade que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem levantado dúvidas sobre a competência do Supremo na esteira do desejo de uma parcela do eleitorado e de alguns congressistas, os mesmos que acham que ofender ministros está dentro da esfera de proteção da liberdade de expressão. Com todo o respeito que devotamos ao presidente do Senado, referido debate é raso, inapropriado e, ao contrário do que sustenta, não agrega nada ao aprimoramento das instituições.

Os três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, têm funções típicas e atípicas. Por exemplo, a função primordial do Poder Legislativo é legislar e fiscalizar. No entanto, excepcionalmente, o Senado, por exemplo, assume a função de julgar (artigo 52, incisos I e II, da CF/88) nos crimes de responsabilidade. Alguém vai dizer que referida possibilidade confere superpoderes ao Senado?

Por sua vez, a função do STF é julgar as causas que lhe são submetidas, mas, em determinadas situações, a Corte legisla também, quando, por exemplo, promove alteração em seu regimento interno (artigo 96, inciso I, alínea “a”, da CF/88).

Hoje, a Suprema Corte realmente não somente julga a causa que lhe foi submetida, mas vai além do objeto da causa e estabelece uma tese, norma de caráter geral e abstrato cujo efeito é idêntico ao de uma lei em sentido estrito, ou seja, aprovada pelo Congresso. Essa inovação foi trazida ao sistema há 20 anos, justamente por uma Emenda Constitucional, a 45, que estabeleceu a chamada repercussão geral da matéria a ser apreciada pelo Supremo.

Em 2015, o Congresso foi além e regulamentou o sistema de repercussão geral, estabelecendo expressamente no Código de Processo Civil (artigo 1.035, § 1º) que, “para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”.

Vale dizer, a Suprema Corte somente julgará, em recurso extraordinário, as causas cuja matéria seja relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico e que ultrapasse os interesses subjetivos do processo. Não bastasse isso, o Congresso foi ainda mais além e abriu a possibilidade de “manifestação de terceiros” (artigo 1.035, § 4º, do Código de Processo Civil) durante o julgamento, o que significa dizer que a legitimidade da decisão a ser proferida não vem somente da lei e dos limites da causa, mas da manifestação de terceiros que foram chamados ou aceitos para contribuir com a fixação da tese jurídica também, algo que se assemelha muito ao tramitar de projetos de lei, função primordial do Poder Legislativo.

E quem estabeleceu isso, ou seja, que a Suprema Corte julgará, não mais somente casos concretos, mas teses, foi o próprio Congresso ; e, a razão disso, aí sim, é o aprimoramento e a busca por eficiência do Poder Judiciário.

Na contramão dessas mudanças que vêm ocorrendo de forma refletida, ordeira e perene ao longo dos anos, o presidente do Senado acena para o populismo. Ou pretende mesmo retroceder o nosso modelo, que vem sendo implantado há anos, por várias legislaturas?

É com esse regime jurídico que o Supremo vem enfrentando temas delicados que estão travados no Congresso, como por exemplo, a questão das mulheres presas, da inconstitucionalidade crônica das nossas unidades prisionais, o fracasso da nossa política de drogas, entre outros. E ao fazer isso, o STF está justamente cumprindo a sua função constitucional.

A PEC 8/21 insere-se nesse contexto e, a nosso ver, é retaliação ao Poder Judiciário, provavelmente por busca de holofote.

É verdade que a PEC, em resumo, privilegia a colegialidade, o que é inerente ao nosso sistema; ou seja, ela nem é absurda, mas a presidência do STF, na gestão da ministra Rosa Weber, já tinha enfrentado isso. A PEC não é necessariamente ruim, mas precisa de mais reflexão, num ambiente harmônico com o Poder Judiciário e não de beligerância. Afinal, os Poderes são independentes, mas harmônicos entre si (artigo 2º da CF/88)

Pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, é muito complicada a proibição de cautelares para preservar direitos, especialmente diante do artigo 5º, XXXV, da Constituição. Afinal, a Carta Magna é expressa em estabelecer que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, XXXV, da CF/88), o que torna muito difícil de superar futura declaração de inconstitucionalidade.

O nosso sistema não é perfeito. Por exemplo, segurar por anos medidas cautelares e pedidos de vista contraria mesmo preceitos constitucionais inerentes à própria República. Mas a PEC, por outro lado, não está madura e muito menos o debate, tal qual posto hoje.

O país vive um período de estabilidade e a tal crise entre Senado e o STF não se sustenta.

A nosso ver, faria melhor, a Presidência do Senado, se voltasse os seus olhos para os problemas que realmente existem, como a ausência de política pública criminal idônea, algo que poderia realmente mudar a realidade da nossa população, que tanto sofre a ausência de política inovadora de segurança pública. Ou a fome, que nos rodeia todos os dias, e as milhares de pessoas em situação de rua. Assim como a dicotomia entre as prioridades e as diferentes realidades do campo e das cidades, entre vários outros desafios que ainda pendem de enfrentamento para o que Brasil implemente os objetivos fundamentais insculpidos no artigo 3ª da nossa Constituição, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Em resumo, o Poder Judiciário está cumprindo o seu papel, devendo continuar no mesmo caminho com a tranquilidade de saber que está exercendo a sua função constitucional e legal. Essa pauta de beligerância contra o Supremo Tribunal Federal não agrega absolutamente nada ao aprimoramento das nossas instituições.

Autores

  • é advogado criminal, doutor e mestre pela PUC-SP, foi diretor do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) por quase uma década e é autor de, entre outros, "Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais", da Juruá Editora.

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