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Delito de pirâmide financeira: há necessidade de criação de outro tipo penal?

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27 de novembro de 2023, 8h00

A maioria dos leitores deve se recordar dos diversos escândalos de “pirâmides financeiras” [1] que marcaram os noticiários nas últimas duas décadas, como o caso “Boi Gordo” em 2004, que prometia falsos ganhos advindos de engorda de bois, ou o caso “Avestruz Master”, no ano seguinte, mediante promessa de compra e venda de avestruzes.

Recentemente, o tema voltou à tona em razão da ocorrência de fraudes envolvendo falsas promessas de investimento em bitcoins ou outras criptomoedas/criptoativos, o que acabou por justificar a instituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito perante a Câmara dos Deputados.

A prática de “pirâmide financeira” é, atualmente, criminalizada pelo artigo 2º, IX, da Lei Federal nº 1521/1951, que sanciona os Crimes contra a Economia Popular. Contudo, a sua disciplina é objeto de críticas, principalmente por se tratar de uma infração de menor potencial ofensivo, sujeita ao rito dos Juizados Especiais, o que não seria adequado e proporcional à lesividade da conduta.

Atento a tais circunstâncias, o Projeto de Lei nº 3.706/2021 (senador Eduardo Braga, MDB-AM), dentre outros assuntos [2], propôs a criação de novo delito de pirâmide financeira, mediante instituição do artigo 24-A, na Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492/1986) e revogação do delito previsto pelo já mencionado artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951.

 Após alterações aprovadas pela Comissão de Segurança Pública do Senado, o novo tipo penal proposto, a ser acrescentado à lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, possui a seguinte redação:

“Artigo 24-A. Captar ou tentar captar recursos financeiros de terceiros ou ativos virtuais, oferecidos publicamente por qualquer meio, com promessa de vantagem econômica, em detrimento de número indeterminado ou determinável de pessoas. Pena — reclusão, de quatro a oito anos, e multa.

Já o atual crime de pirâmide financeira, que deverá ser revogado caso sancionada a nova lei, vigora atualmente com a seguinte redação:

“Artigo 2º, IX, da Lei Federal nº 1521/1951: São crimes desta natureza: obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (‘bola de neve’, ‘cadeias’, ‘pichardismo’ e quaisquer outros equivalentes).
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa, de dois mil a 50 mil cruzeiros.”

Não se questiona a dignidade de tutela penal de tais condutas, que podem provocar, mediante utilização de artifícios fraudulentos, sérios prejuízos econômicos à poupança popular. Afinal, se pirâmides financeiras consistem em “estelionato que se caracteriza pela circunstância de ser praticado contra um número indeterminado de pessoas” [3], não se vislumbra razão para se negar tutela penal à figura penal semelhante àquela já prevista no artigo 171, do Código Penal.

Contudo, diversas ressalvas devem ser feitas à nova redação de crime proposta, sendo necessário aqui se destacar ao menos três delas.

A primeira diz respeito ao deslocamento do novo tipo penal para a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro. Como o seu próprio nome sugere, a Lei nº 7.492, de 1986, prevê diversas condutas atentatórias ao Sistema Financeiro Nacional, praticadas por agentes que atuam no âmbito de instituições financeiras próprias ou equiparadas, ou, ao menos, que exercem irregularmente atividade privativa de tal natureza.

Todavia, apesar do adjetivo em comum, a criação de “pirâmide financeira” não constitui atividade típica de instituição financeira, definidas no artigo 1º da Lei 7.492/1986 [4], a partir de critérios extraídos no artigo 17, da Lei de Reforma do Sistema Bancário (Lei 4.595/64).

 A bem da verdade, na maioria dos casos que conferiram justificativa à tipificação do delito, sequer atividade econômica real há, consistindo as pirâmides em promessas falsas de investimentos — seja em avestruzes ou bois, em primeiro momento, seja, em outro, em criptomoeda — que jamais são realizados.

A tipificação de novo tipo penal no âmbito da Lei em referência somente acrescerá insegurança jurídica a dispositivo penal confeccionado às pressas [5] e que, em razão da redação imprecisa do conceito de instituição financeira [6], por reiteradas vezes é utilizado indevidamente para justificar responsabilização penal por fatos externos ao Sistema Financeiro Nacional.

Segunda crítica que dever ser feita à redação do tipo consiste na supressão da expressão “mediante qualquer processo fraudulento”, que estava na redação original do Projeto de Lei proposta pelo senador Eduardo Braga.

Nos termos do novo tipo penal, a conduta-crime teria o potencial de abranger qualquer atividade de captação de recursos financeiros ou ativos virtuais com promessa de vantagem econômica, seja ela fraudulenta ou não, esvaziando-se justamente o núcleo da reprovabilidade das condutas de pirâmide financeira.

Com isso, cria-se insegurança jurídica em razão da potencial criminalização de condutas legítimas de captação de recursos, que são de grande relevância para o desenvolvimento econômico, e viola-se o princípio da legalidade, previsto pelo artigo 5º inciso XXXIX, da Constituição, que exige a definição precisa da conduta tipificada como crime e sua respectiva sanção (lex certa). 

Terceira e última crítica necessária volta-se à desproporcionalidade da pena mínima proposta ao crime de pirâmide financeira (4 a 8 anos), muito superior àquela cominada a figuras penais congêneres, que compartilham o mesmo núcleo de reprovabilidade (fraude), como o estelionato (1 a 5 anos) e a gestão fraudulenta (2 a 12 anos), esta última prevista na própria Lei 7.492/86.

É certo que a evolução tecnológica e conectividade da sociedade atual renovaram a relevância da conduta de pirâmide financeira, sendo relevante revisitar os termos de sua criminalização. Contudo, há de se ter cuidado, a fim de a norma possa cumprir os seus fins e respeite as garantias constitucionais.


[1] Os esquemas fraudulentos de pirâmide financeira consistem, de forma geral, em oferta de investimentos à coletividade com promessa de retorno extraordinário, acima de investimentos médios existentes no mercado, em contrapartida ao recrutamento de outras pessoas para participar do programa. Contudo, a fonte dos ganhos auferidos pelos recrutados não advém de qualquer investimento ou atividade econômica legítima e, sim, dos recursos captados dos novos investidores, o que se sucede até que o esquema colapse. O termo é muitas vezes utilizado como sinônimo de “esquema Ponzi”, cuja origem remonta ao século XX, quando o imigrante italiano Charles Ponzi foi preso pelas Autoridades americanas, em razão de promessas de comercialização de selos postais internacionais, mediante pagamento de lucros extraordinários, e que culminaram prejuízos milionários às vítimas fraudadas. As investigações conduzidas Estados Unidos teriam identificado que os lucros inicialmente distribuídos proviam da captação de investidores antigos e não do imaginado investimento em selos postais anunciado ao público por Charles Ponzi.

[2]Tal qual outros já discutidos nessa Coluna: https://www.conjur.com.br/2023-out-23/lavagem-afins-crimes-segregacao-patrimonial-envolvendo-ativos-virtuais, acesso em 01.11.2023.

[3] PIMENTEL, Manoel Pedro. Aspectos novos da lei de economia popular. In: Revista dos Tribunais, v. 607/1986, maio/1986, p. 263-271.

[4]  Artigo 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

[5] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lei de Crimes Financeiros distribui direito de forma desigual. Consultor Jurídico, 19 ago. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-19/lei-crimes-financeirodistribui-direito-forma-desigual, acesso em 01.11.2023.

[6] Se interpretada literalmente, a definição legal de instituição financeira permite sua extensão a quaisquer atividades que envolvam, mesmo que sem habitualidade, captação, aplicação ou repasse de recursos de terceiros, acarretando indevido alargamento do instituto. Por essa razão, a doutrina vem pacificando o entendimento de que a atividade financeira pressupõe, cumulativa e habitualmente, a prática de atos de captação (de agentes superavitários), seguida de repasse (a agentes deficitários), com intuito de lucro advindo da cobrança de spread bancário.

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