Opinião

Impactos e desafios da inteligência artificial no Direito da Concorrência

Autor

  • Lucas de Carvalho Silveira Bueno

    é advogado pós-graduado em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) possui LL.M. em Direito da Concorrência Europeu pela Brussels School of Competition (BSC) e cursou o programa em Direito Tecnologias Cognitivas e Inteligência Artificial na mesma instituição.

26 de novembro de 2023, 13h22

Com o rápido desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial (IA) e a implementação destas nos mais diversos mercados, questões concorrenciais relevantes vêm sendo levantadas, principalmente com relação a empresas big rech alavancado seus poderes de mercado para controlar ferramentas de IA e grandes bases de dados, diminuindo ainda mais as escolhas do consumidor.

Nesse sentido, no último dia 18 de setembro, um relatório publicado pela autoridade da concorrência do Reino Unido (Competition & Markets Authority ou CMA) apontou preocupações no âmbito da concorrência no desenvolvimento de modelos de base (MB) para ferramentas de IA [1]. De acordo com o relatório, o desenvolvimento de MBs requer um grande volume de dados, recursos computacionais caros e expertise técnica o que poderia resultar em redução da concorrência e do incentivo à inovação. Um estudo realizado pelo banco Goldman Sachs prevê investimentos privados globais em IA na monta de aproximadamente US$ 200 bilhões até 2025 [2].

biancoblue/freepik

Diante do rápido avanço da IA, autoridades governamentais mundiais estão caminhando no sentido da regulação do tema e, ao mesmo tempo, autoridades da concorrência de diversos países vêm estudando os potenciais impactos negativos que a adoção de IA, principalmente na forma de algoritmos, pode ter na livre concorrência.

Em 2017, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou o estudo Algorithms and Collusion: Competition Policy in the Digital Age no qual discutiu alguns dos desafios que os algoritmos apresentam tanto para a aplicação da lei da concorrência como para a regulação do mercado. A CMA também publicou, em 2018 e 2021, dois estudos sobre algoritmos e como eles podem impactar a concorrência. Além disso, em 2019, a autoridade Portuguesa (Autoridade da Concorrência) e, de forma conjunta, as autoridades da concorrência da França (Autorité de la Concurrence) e da Alemanha (Bundeskartellamt), publicaram também seus respectivos estudos sobre o mesmo tema [3].

Em suma, os documentos são uníssonos ao apontar que a utilização de IA, principalmente na forma de algoritmos, pode resultar e/ou facilitar a colusão entre concorrentes na forma de um cartel denominado como hub and spoke [4], ou ao facilitar colusão tácita entre concorrentes.

Além de condutas colusivas, os estudos da CMA e da Autoridade da Concorrência apontam, respectivamente, que plataformas online e outras empresas com poder de mercado podem utilizar algoritmos para implementar condutas de self-preferencing, que consiste em favorecimento de seus produtos e serviços próprios em detrimento dos de seus concorrentes, e por fornecedores e distribuidores para implementação de acordos de fixação de preço de revenda. Assim, resta claro que a IA, principalmente na forma de algoritmos, tem potencial para facilitar e, de fato, já vem facilitando condutas anticompetitivas. Daí as perguntas: as autoridades mundiais e do Brasil estão preparadas para lidar com essa nova realidade?

Preocupada com a proteção e promoção da concorrência nos mercados digitais, em 2017 a OCDE apontou que os debates regulatórios se centravam em tornar algoritmos mais transparentes e na responsabilização pelos efeitos dos referidos algoritmos.

No Brasil, tramitam atualmente o PL nº 2.338/2023, que pretende regular a IA, o PL nº 2.630/2020 (Lei das Fake News), que visa estabelecer normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, e o PL nº 2.768/2022 (Lei de Mercado Digital), que visa regulamentar a operação das plataformas digitais no país, inclusive no aspecto da concorrência.

Além de uma regulação ex ante a fim de promover o compliance by design, a OCDE [5] enfatiza a necessidade de investimento em programas de leniência para que sejam uma ferramenta de denúncia atrativa para participantes de carteis. Isso porque o uso da IA pode facilitar a prática de condutas irregulares e, ao mesmo, tempo dificultar a sua detecção pela autoridade da concorrência.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já possui um programa de leniência pautado na Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) e, em 2022, estabeleceu também uma unidade especializada em investigações de condutas unilaterais, tais quais as condutas ora citadas.

Além disso, o Cade, a exemplo de outas autoridades da concorrência, também aderiu à recomendação da OCDE no sentido de implementar ferramentas de IA no monitoramento de condutas anticompetitivas, e desenvolveu o Projeto Cérebro que usa mineração de dados, testes estatísticos e algoritmos para identificar suspeitas de atuação coordenada em mercados.

Com essas iniciativas, com elogios e críticas, o Brasil caminha em sentido similar ao da União Europeia na busca para obrigar as empresas a cumprir com legislações de proteção de dados e concorrencial ao desenvolver suas ferramentas de IA. Ao mesmo tempo, nota-se que o Cade também se move para criar técnicas e implementar ferramentas capazes de inibir e combater condutas anticompetitivas de forma eficiente.

É inegável que a IA é uma realidade que as empresas cada vez mais dela se aproveitarão para otimizar seus negócios, gerando benefícios ao consumidor. Mas, há relevantes preocupações com relação à produção tecnológica ficar restrita às big techs, em razão dos elevados requisitos financeiros e técnicos envolvidos.

Outras preocupações externadas por autoridades da concorrência de diversos países se referem também ao próprio uso de ferramentas de IA, principalmente na forma de algoritmos de precificação e de monitoramento, para implementação de condutas anticompetitivas colusivas e/ou unilaterais. A CMA e a Comissão Europeia, por exemplo, já investigaram e condenaram empresas por condutas anticompetitivas praticadas com o uso de IA.

Essa nova realidade traz desafios para identificação e investigação das condutas. No entanto, iniciativas legislativas e do Cade, inclusive a implementação de ferramentas de IA para identificação de infrações, demonstram que o Brasil já está trabalhando para se adaptar a essa nova realidade. Além disso, a OCDE reforça que o fortalecimento de ferramentas já tradicionais, como o programa de leniência, também é de grande importância para a detecção e o combate a carteis facilitados por, ou decorrentes do uso de ferramentas de IA.

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Referências
LOWE, Luther (2023). The age of AI is a time for antitrust. Disponível em: https://www.fastcompany.com/90960038/ai-antitrust-google-doj

Cleary Gottlieb (2023). CMA Publishes Initial Report on AI Foundation Models and Guiding Principles for Firms. Disponível em: https://client.clearygottlieb.com/63/3025/uploads/2023-09-20-uk-cma-publishes-initial-report-on-ai-foundation-models.pdf. Relatório completo disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/ai-foundation-models-initial-report

GRASSLEY, Chuck (2023). Klobuchar, Grassley, Colleagues Introduce Bipartisan Legislation To Boost Competition And Rein In Big Tech. Disponível em:

https://www.grassley.senate.gov/news/news-releases/klobuchar-grassley-colleagues-introduce-bipartisan-legislation-to-boost-competition-and-rein-in-big-tech

Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2022). Documento de Trabalho nº 003/2022 – Aprendiado de máquina e antitruste, 81 páginas. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2022/DOC_003-2022_Aprendizado-de-maquina-e-antitruste.pdf

Comissão Europeia (2017) Commission Staff Working Document Accompanying the Final report on the E-commerce Sector Inquiry, 187 páginas. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9d1137d3-3570-11e7-a08e-01aa75ed71a1.0001.02/DOC_1&format=PDF


[1] Os modelos de base são grandes redes neurais de aprendizado profundo treinados em um amplo espectro de dados generalizados e não rotulados e capazes de realizar uma ampla variedade de tarefas gerais, como entender a linguagem, gerar texto e imagens e conversar em linguagem natural.

[2] Publicação disponível em: https://www.goldmansachs.com/intelligence/pages/ai-investment-forecast-to-approach-200-billion-globally-by-2025.html

[3] OECD (2017). Algorithms and Collusion: Competition Policy in the Digital Age. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/Algorithms-and-colllusion-competition-policy-in-the-digital-age.pdf

OECD (2021). OECD Business and Finance Outlook 2021: AI in Business and Finance, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ba682899-en

Competition & Markets Authority (2018) Pricing algorithms – Economic working paper on the use of algorithms to facilitate collusion and personalised pricing, 63 páginas. Disponível em: https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/746353/Algorithms_econ_report.pdf

Competition & Markets Authority (2021) Algorithms – How they can reduce competition and harm consumers, 54 páginas. Disponível em:

https://assets.publishing.service.gov.uk/media/60085ff4d3bf7f2aa8d9704c/Algorithms_++.pdf

Autoridade da Concorrência (2019) Issues Paper – Digital ecosystems, Big Data and Algorithms, 75 páginas. Disponível em: http://www.concorrencia.pt/vPT/Estudos_e_Publicacoes/Estudos_Economicos/Outros/Documents/Digital%20Ecosystems,%20Big%20Data%20and%20Algorithms%20-%20Issues%20Paper.pdf

Autorité de la Concurrence e Bundeskartellamt (2019) Algorithms and Competition, 88 páginas. Disponível em: https://www.autoritedelaconcurrence.fr/en/publications/algorithms-and-competition. Ou em: https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Meldung/EN/Pressemitteilungen/2019/06_11_2019_Algorithms_and_Competition.html

[4] Hub and spoke são carteis nos quais por meio de um terceiro facilitador comum, chamado de “hub”, que não compete no mercado afetado, se implementa o alinhamento entre os concorrentes chamados “spoke”. Por exemplo, o Conselho da Concorrência da Lituânia aplicou multas à Eturas e a 30 agências de viagens pela aplicação de limite máximo comum aos descontos em serviços prestados, o qual era comunicado às agências por meio da plataforma online Eturas.

[5] OECD (2021) OECD Business and Finance Outlook 2021: AI in Business and Finance, capítulo 4.3. Disponível em: https://doi.org/10.1787/ba682899-en

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  • é advogado, pós-graduado em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), possui LL.M. em Direito da Concorrência Europeu pela Brussels School of Competition (BSC) e cursou o programa em Direito, Tecnologias Cognitivas e Inteligência Artificial na mesma instituição.

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