Abuso do poder econômico no processo eleitoral

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23 de novembro de 2023, 16h47

O poder econômico é um fenômeno social, fato ineliminável que permeia todos os segmentos da sociedade. É uma realidade agasalhada pelo Direito e estruturada em mecanismos constitucionais que mensuram sua influência, de modo a tutelar a incolumidade do sufrágio universal — artigo 14, § 9º, da CF.

A aplicação de recursos é considerada imprescindível para a máxima efetividade dos axiomas da liberdade de pensamento e de informação, características basilares para o influxo da comunicação política que, entre outras variáveis, consiste em atos diretamente relacionados ao contexto do processo eleitoral.

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O uso correto do poder econômico é benéfico e lícito quando fluído na medida das fontes e na qualidade dos meios indicados na Lei nº 9.504/97 como também na hermenêutica das resoluções e da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral.

Seu emprego excessivo, por outro lado, é considerado abusivo por ultrapassar o padrão médio de comportamento que se espera do indivíduo tanto no período de pré-campanha quanto no período eleitoral de sentido estrito. A forma típica e a reprimenda estão previstas nos termos dos arts. 19 e 22 da Lei Complementar 64/90.

O TSE, em reiteradas decisões, sacramentou o entendimento de que o abuso do poder econômico “[…] em matéria eleitoral se refere à utilização excessiva, antes ou durante a campanha eleitoral, de recursos materiais ou humanos que representem valor econômico, buscando beneficiar candidato, partido ou coligação, afetando assim a normalidade e a legitimidade das eleições. [1] Nos termos do artigo 22, XVI, da LC 64/90, “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”.

Tal compreensão obriga o intérprete a concluir que as situações abusivas podem ser aferidas antes mesmo de iniciada a campanha. São vários os casos de pré-candidatos que, à míngua de uma legislação mais clara e técnica, acabam praticando atos de natureza abusiva, a comprometer a higidez do pujante processo eleitoral.

Cite-se como exemplo o caso emblemático de Selma Arruda, ex-senadora pelo estado de Mato Grosso. Em 2019, por maioria de votos, o TSE confirmou a condenação dos investigados (titular e suplentes) pela prática de condutas abusivas no período de pré-campanha:

“No caso dos autos, quando somamos a quantidade de dinheiro utilizada, o farto material produzido e o período em que empregados esses recursos — concentrado entre os meses de abril e julho —, faz-se forçoso reconhecer a prática de abuso do poder econômico por Selma Rosane Santos Arruda e por Gilberto Eglair Possamai” [2].

Os fundamentos que edificaram o acórdão que cassou a ex-senadora foram extraídos do julgamento do AgR-AI nº 9-24/SP[3], cujo debate se restringiu ao tema de propaganda antecipada. Na ocasião, o então Ministro do TSE Luiz Fux, em laborioso voto-vista, trouxe alguns enunciados que a Justiça Eleitoral adotou para a caracterização do abuso:

[…] (viii) a extrapolação do limite do razoável, no que diz com os aspectos financeiros da comunicação política, pode ser aferida a partir do índice de reiteração da conduta, do período de exposição das mensagens pagas, assim como de seus respectivos custos, capilaridade ou abrangência; […]
[…] (i) impossibilidade de utilização de formas proscritas durante o período oficial de propaganda (outdoor, brindes, etc) […]

O voto do ministro foi o precedente que serviu para a edificação do pré-candidato idealizado, o qual se convencionou a chamar de pré-candidato médio.

Pré-candidato médio é o personagem fictício central da pré-campanha; é o norte a ser seguido pelo potencial candidato do mundo real, pois se trata do fiel da balança útil à verificação da ocorrência ou não da prática da conduta abusiva, ilícita.

Como visto, é possível a realização de gastos em pré-campanha para a divulgação das qualidades pessoais e projetos nos termos do art. 36-A da Lei nº 9.504/97, no entanto, o dispêndio deve estar dentro de um padrão médio, assim considerado aquele que seja razoável, módico, factível e, logo, ao alcance de qualquer pré-candidato.

De outro lado, é importante observar que o uso de meios propagandísticos cuja forma esteja vedada no período oficial de campanha, por si só, caracteriza ilícito de propaganda extemporânea, independentemente da existência de pedido de voto [4]. O uso expressivo de tais formas vedadas, por sua vez, também pode ser avaliado sob o crivo do abuso do poder econômico e de sua vertente, qual seja, abuso dos meios de comunicação, uma vez que o evento nocivo é fato autônomo, sendo considerado em si mesmo.

É possível notar que o julgamento do AgR-AI nº 9-24/SP foi fundamental para o alinhamento das expectativas do pré-candidato médio, notadamente a partir das lições do eminente ministro Fux, muito embora o assunto ainda dependa de atenção legislativa.

Depende de mais atenção do legislador porque a figura do pré-candidato, mesmo diante da legislação esparsa que regulamenta todo o processo eleitoral, é apenas uma pequena nota de rodapé quando comparado com os atores do período crítico — período eleitoral.

A atuação dos tribunais eleitorais, máxime do TSE, precisa estar em harmonia com uma legislação mais densa e capaz de estabelecer objetivamente o que pode e o que não pode ser do alcance do potencial candidato médio.

A título de exemplo, poderiam ser acrescidos dispositivos legais estabelecendo um teto de gastos para o período de pré-campanha, a fim de trazer segurança jurídica. Igualmente, poderia se estabelecer um critério de transição para aqueles que se colocam como pré-candidatos para determinado cargo e que depois resolvem disputar mandato eletivo de natureza diversa.

Indo mais além, agora partindo para o período crítico, o abuso do poder econômico também pode ser cometido durante a campanha eleitoral.

O semblante do ato abusivo no período eleitoral é reforçado com linhas mais expressivas, com mais detalhes; tem sentido inquestionavelmente mais amplo, genérico. Pode assumir sua feição típica na forma dos artigos 19 e 22, XIV, da Lei Complementar 64/90, bem como manifestar-se por meio de outros propósitos como na captação ilícita de sufrágio prevista no artigo 41-A da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições).

É importante, contudo, fazer uma ressalva quanto à conduta abusiva prevista no artigo 30-A da Lei das Eleições, que se refere à hipótese de captação ou gasto ilícito de recursos para fins eleitorais. Em regra, é praticada durante o período próprio de campanha, nada obstante também possa ser encetada na pré-campanha, como por exemplo, arrecadar recursos de fonte ilícita para futura aplicação, fora do sistema do controle legal, no prélio eleitoral.

Outra questão bastante interessante diz respeito à teoria aplicável para a responsabilização dos agentes. Segundo José Jairo Gomes:

No Direito Eleitoral vigora um sistema peculiar, não havendo uma teoria compreensiva de todas as situações. A presença ou não de culpa (em sentido amplo) nem sempre será determinante para a afirmação da responsabilidade e consequente imposição de sanção jurídica. [5]
Quando a conduta compromete a isonomia entre os concorrentes e, consequentemente, a legitimidade e normalidade do pleito o fundamento do abuso repercute diretamente nos arts. 19 e 22 da LC nº 64/90. Nesse caso, não importa a perquirição dos aspectos psicológicos, pois o que vale é a ponderação dos elementos objetivos das ações realizadas, sendo a responsabilidade pautada pela ideia do risco de induzir a ilegitimidade do pleito. [GOMES, 2023, p. 616].

No mesmo sentido:

 […] 3. Na apuração de abuso de poder, não se indaga se houve responsabilidade, participação ou anuência do candidato, mas sim se o fato o beneficiou, o que teria ocorrido na espécie, segundo o Tribunal a quo. Agravo regimental não provido. Decisão: O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do relator [6].

O beneficiário do ato abusivo pode sofrer a perda do mandato, mesmo que não tenha participado da prática do ato lesivo. Para a imposição da inelegibilidade prevista no artigo 22, XIV da referida lei, todavia, é imperiosa a presença do dolo, vez que ela só é decretada àquele que praticou ou anuiu com a realização do ilícito:

[…] No decisum agravado, manteve-se cassação dos vencedores do pleito majoritário de Santa Luzia dó Norte/AL em 2016, por prática de abuso de poder econômico e compra de votos, afastando-se apenas a inelegibilidade imposta ao Vice-Prefeito por falta de prova robusta quanto à sua participação ou anuência, o que ensejou agravo regimental da parte contrária no particular.
Nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90 e da jurisprudência desta Corte Superior, a sanção de inelegibilidade possui natureza personalíssima, descabendo aplicá-la ao mero beneficiário do ato abusivo. […] [7].

Lado outro, o aspecto psicológico é importante para aferir a responsabilização pela prática da captação ilícita de sufrágio, popularmente chamada de “compra de votos”. Para sua configuração é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir — artigo 41-A, § 1º, da LE.

Do mesmo modo, a procedência da representação eleitoral fundada no artigo 30 -A da Lei nº 9504/97 “[…] exige, além da arrecadação e/ou dos gastos irregulares de campanha, a ilegalidade qualificada, pela manifesta má-fé do candidato, suficiente para macular a lisura do pleito”.[8]

Segundo o TSE, os seguintes atos caracterizam abuso do poder econômico:

[…] Abuso de poder econômico. Art. 22 da LC 64/90. […]  5. Configura abuso do poder econômico o uso excessivo e desproporcional de recursos patrimoniais, sejam eles públicos ou privados, de modo a comprometer a igualdade da disputa eleitoral e a legitimidade do pleito, em benefício de determinada candidatura. O ilícito exige evidências da gravidade dos fatos que o caracterizam, consoante previsto no art. 22, XVI, da LC 64 /90. […] [9].
“[…] A utilização de ‘caixa dois’ em campanha eleitoral configura, em tese, abuso de poder econômico. […]” [10].
Configura abuso do poder econômico a ampla divulgação, em programa de televisão apresentado por candidato, da distribuição de benefícios à população carente por meio de programa social de sua responsabilidade, acompanhado de pedidos de votos e do condicionamento da continuidade de doações à eleição de candidato no pleito vindouro. […]” [11].

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVOS INTERNOS. RECURSOS ESPECIAIS. ELEIÇÕES 2020. VEREADOR. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ART. 41–A DA LEI 9.504/97. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. ART. 22 DA LC 64/90. PROMESSA E OFERTA DE DINHEIRO A ELEITORES. APREENSÃO DE DINHEIRO. LISTA DE ELEITORES. MATERIAL DE PROPAGANDA. CONJUNTO PROBATÓRIO ROBUSTO. GRAVIDADE. OMISSÃO. CONTRADIÇÃO. OBSCURIDADE. INEXISTÊNCIA. REJEIÇÃO. [12]
[…] Na espécie, o TRE/RN consignou que Mariozan Medeiros dos Anjos, vereador e candidato à reeleição em 2016, às vésperas do início da campanha, nos meses de abril, maio e junho, ofereceu de forma gratuita atendimento médico por meio da Associação das Águas e Comunicações de São José do Seridó/RN com intuito de se promover e obter o voto dos beneficiados pelo ato assistencialista. [13]
[…] 12. Esta Corte tem entendimento no sentido de que ‘a utilização de forma reiterada de showmício e eventos assemelhados como meio de divulgação de candidaturas, com intuito de captação de votos, é grave e caracteriza abuso do poder econômico’ […] 13. Também, já foi assinalado que a proibição se estende aos livemícios , em que a promoção a candidaturas se utiliza de shows realizados em plataformas digitais […]. [14]
[…] Abuso do poder econômico. Utilização de grandioso evento religioso em benefício de candidaturas às vésperas do pleito. Pedido expresso de votos. […] 21. Evidenciada a utilização premeditada, a favor da candidatura dos recorrentes, de sofisticada estrutura de evento religioso de grande proporção, à véspera do pleito, que contou com shows e performances artísticas, cujo dispêndio econômico foi estimado em R$ 929.980,00 (novecentos e vinte e nove mil e novecentos e oitenta reais) – valores não declarados em prestação de contas e integralmente custeados pela Igreja. 22. Suficientemente demonstrada a gravidade das condutas imputadas, não havendo margem a dúvidas de que desvirtuado o evento religioso, cuja estrutura e recursos envolvidos reverteram em benefício dos recorrentes, em evento político-religioso-partidário, durante período crítico, às vésperas da eleição, em manifesta vulneração à legitimidade do pleito. […]”. [15]

De tudo o que foi exposto, depreende-se que o campo de incidência do conceito de abuso do poder econômico é amplo, abrangendo tanto o período pré-eleitoral quanto o período de campanha propriamente dito.

Conquanto o parâmetro utilizado antes de iniciado o período crítico seja a figura do pré-candidato médio, personagem criado pela Corte Eleitoral para suplantar as lacunas legais, e existam diversos critérios para a configuração do ilícito, a legislação precisa ser revisitada para que se densifique a segurança jurídica.

Propomos, inclusive, que se estabeleça um teto de gastos para o período de pré-campanha e um conjunto de regras de transição para aqueles que se colocam como pré-candidatos para determinado cargo e que depois resolvem disputar mandato eletivo de natureza diversa.

Vimos também que o abuso do poder econômico assume mais de uma faceta, não se restringindo à forma típica dos artigos 19 e 22 da Lei Complementar 64/90 (Lei das Inelegibilidades) e que, dependendo do bem jurídico tutelado, a responsabilidade pode ser dependente da perquirição de culpa (em sentido amplo) ou prescindir dos aspectos psicológicos-volitivos.

Trouxemos alguns exemplos de casos que foram considerados abuso pelo Tribunal Superior Eleitoral, a fim de que o leitor tenha um panorama das situações e se interesse pela investigação do tema.

Por fim, o abuso do poder econômico é uma conduta que deve ser repelida, tendo em vista que sua condução macula a igualdade de chances entre os concorrentes e induz à ilegitimidade da eleição, conspurcando a higidez do processo eleitoral e a democracia.


[1] AgRgRESPE nº 25.906, de 09.08.2007 e AgRgRESPE nº 25.652, de 31.10.2006

[2] RO nº 0601616-19.2018.6.11.0000, de 10.12.2019, relator Ministro Og Fernandes.

[3] TSE – AgR-AI nº 9-24/SP, relator Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, j. 26.06.2018.

[4] RESP nº 0600227-31.2018.6.17.0000, 09.04.2019, relator Ministro Edson Fachin.

[5] GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2023. Livro Eletrônico. p. 615.

[6] TSE – AgR-REspe no 3888128/ BA – DJe 7-4-2011, p. 45.

[7] TSE – Ag-REspe no 36424/AL – DJe 25-2-2019, p. 22.

[8] Ac. de 17.6.2021 no AgR-REspEl nº 64024, rel. Min. Luis Felipe Salomão.

[9] Ac. de 20.10.2022 no AgR-REspEl nº 060034373, rel. Min. Benedito Gonçalves.

[10] Ac. De 29.10.2009 no RCED nº 731, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

[11] Ac. De 25.5.2010 no RO nº 2.369, rel. Min. Arnaldo Versiani.

[12] Rel. Min.  Benedito Gonçalves, REspEl 060040748/AL, DJ de 17.10.2023.

[13] Rel. Min.  Jorge Mussi, REspe 16298/RN, DJ de 15.05.2018.

[14] Ac. de 29.9.2022 no Ref-AIJE nº 060127120, rel. Min. Benedito Gonçalves.

[15] Ac. de 21.8.2018 no RO nº 537003, rel. Min. Rosa Weber.

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