Cidadania digital e o estado algorítmico de direito

Autor

  • Alexandre Freire Pimentel

    é professor doutor da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco) da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e desembargador do TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco).

21 de novembro de 2023, 6h33

A cidadania digital é um fenômeno social, típico da era tecnológico-reticular, representado por uma situação jurídica atrelada a uma política pública inclusivista de promoção de acesso pleno à Internet sem qualquer tipo de dificuldade,  barreira impeditiva ou discriminatória. Ou seja, constitui o alicerce do estado algorítmico de direito. A expressão “estado algorítmico de direito” foi cunhada por Moisés Barrio Andrés, professor de derecho digital na Universidade Carlos III de Madri, para quem o termo expressa uma visão positiva sobre os impactos da tecnologia no direito e na vida social, pelo que o estado algorítmico, para ser “de direito” deve adotar “[…] ferramentas automatizadas apenas quando melhoram, em vez de minar, os fundamentos da legitimidade dos estados democráticos”.[1]

Decerto, pois o que se algoritmiza não é apenas o direito, mas o próprio estado em si mesmo, assim como a digitalização da vida social. O estado algorítmico de direito insere-se no contexto do estado liberal, mas vertido para o viés da social democracia, como um contraponto ao estado tecno-feudal, sendo este capitulado pela governança insurreta, opaca e desterritorializada das big techs.

Marcelo Casal Jr./Agência Brasil

A cidadania algorítmica sustenta-se no ordenamento jurídico estatal, com foco na Constituição, mas, igualmente, com esteio em dispositivos de normas infraconstitucionais que guardam relação de pertinência com o exercício de direitos subjetivos na era digital, como a LAI (Lei de Acesso à Informação), a LMCI (Lei do Marco Civil da Internet), a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), bem como o Estatuto da Pes­soa com Deficiência, os Estatutos do Idoso e da Juventude. Cidadania digital representa tanto a garantia do direito fundamental de acesso à internet quanto a proteção estatal dos cidadãos contra o poderio invasivo da vida privada pelas aplicações de Internet, incluindo a regulamentação jurídica sobre a aplicação das técnicas neurocientíficas e a obtenção de dados cerebrais.

No cenário da cidadania algorítmica, destaca-se a Con­stituição chilena, que avançou deveras nesse setor e positivou a proteção cerebral das pessoas como um direito fundamental da era digital. Também merece destaque a Online Safety Bill (Lei de Segurança Online), aprovada em 19 de setembro de 2023 pelo Parlamento do Reino Unido, e que instituiu uma gama elogiável de medidas assecuratórias da proteção de usuários de Internet, em especial das crianças contra a exposição a conteúdos nocivos à saúde mental, emocional e cerebral, como a difusão de conteúdos pornográficos, dentre outras medidas que incluem deveres de fiscalização e de julgamento pelas aplicações de internet sobre temas nocivos postados pelos seus usuários, impondo-lhes o dever de excluí-los quando ilícitos ou contrários aos seus termos e condições.

O conceito de cidadania digital está em construção e requer da academia e dos operadores do direito um olhar atento sobre o fenômeno para que os benefícios da algoritmização da vida possam atingir a todos, sem qualquer espécie de discriminação a fim de que o Estado possa garantir, de fato e de direito, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária que erradique a exclusão digital do panorama sociológico brasileiro, o que pressupõe uma atuação proativa e protetiva sobre os vulneráveis cibernéticos. Somente assim atingiremos a plenitude de um estado algorítmico de direito.

O conceito de vulnerável cibernético há de ser esquadrinhado tanto pela perspectiva do direito material quanto do direito processual, sendo relevante pontuar a necessidade de se ampliar a latitude da regra do artigo 199 do CPC, segundo a qual o Poder Judiciário deve assegurar às pessoas com deficiência a acessibilidade aos seus sítios na rede mundial de computadores, ao ambiente digital de prática de atos judiciais, à comunicação eletrônica dos atos processuais e à assinatura eletrônica, extirpando-se as barreiras digitais e fomentando-se, quando necessária, a “decisão processual apoiada”. E é nesse contexto que logram desmesurada importância as tecnologias assistivas, sem as quais não será factível superar as tecnobarreiras aos usuários com deficiência e aos vulneráveis cibernéticos.

Assim, o conceito de cidadania digital que aqui se propõe é sedimentado nos pilares do acesso digital universal, do tratamento isonômico dos que conseguem aceder à rede, na proteção de dados pessoais, incluindo os dados neuronais, na alfabetização e conscientização digitais de crianças, adolescentes, adultos e idosos, sobretudo os de baixa renda. A partir de uma comparação do ordenamento brasileiro com o direito comparado e declarações alienígenas sobre o ciberespaço, conclui-se que a disrupção de um estado algorítmico de direito no Brasil pressupõe o seu enquadramento ao nosso ordenamento constitucional vigente, bem como à garantia da promoção do exercício da cidadania digital sedimentando-se nos seguintes pilares:

a) no acesso digital universal, isto é, do ponto de vista social, que todos os brasileiros, independentemente de classe social, tenham acesso pleno e sem barreiras à Internet;

b) no tratamento isonômico dos que conseguem acessar a rede, ou seja, da proteção à garantia da neutralidade da rede, pela qual todo tráfico online deve ser tratado igualmente, independentemente de sua origem e do conteúdo respectivos;

c) na proteção de dados pessoais, diante da avassaladora e constante coleta de informações, assim como o sucessivo armazenamento e tratamento automatizado, realizados por governos e pelas corporações do setor tecnológico, com respeito à privacidade e à liberdade de expressão;

d) a alfabetização e conscientização digitais de crianças, adolescentes, adultos e idosos, de baixa renda, com o escopo de irradiar o domínio da técnica necessária para lidar com os equipamentos informáticos de acesso à rede e da consciência crítica sobre os usos nocivos da Internet, como fake news e outros meios de desinformação, preconceitos raciais, sexuais, xenofobia, extremismos ideológicos etc;

e) garantia de acesso isonômico e sem barreiras aos usuários com deficiência e aos vulneráveis cibernéticos, ainda quando estes não se enquadrem no conceito de pessoa com deficiência, aos sistemas de gerenciamento de processo judicial tecnológico, ofertando-lhes mecanismos de tecnologia assistiva eficientes;

f) a proteção cerebral, ou neuronal, sobretudo para crianças e pessoas com deficiência. O artigo 19 da Constituição do Chile cuidou da proteção cerebral de crianças, mas é preciso avançar mais para incluir também as pessoas com deficiência, independentemente da idade.

Tal proteção, no entanto, não é prevista explicitamente no ordenamento jurídico brasileiro como um direito subjetivo digital, conquanto tramite pelo Congresso o PL nº 522/2022, o qual se propõe a regulamentar a proteção do uso e do tratamento de dados neurais, incluindo as informações coletadas, “[…] direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador, ou qualquer outra tecnologia, invasiva […].

Não obstante a omissão legislativa atual, extrai-se do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente — Lei nº 8.069/1990), que a garantia de proteção cerebral e/ou mental a crianças e adolescentes está salvaguardada na sua sistemática, pois, segundo o seu artigo 6º, devem ser considerados os fins sociais a que o ECA se dirige, bem como as exigências do bem comum, levando-se em conta a condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento.[2]

Enfim, cumpre adicionar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2014), após o acréscimo da Lei nº 14.510/2022, passou a acrescentar às ações que o SUS deve adotar para evitar deficiências preveníveis o dever de aprimoramento do atendimento neonatal visando à prevenção de danos cerebrais e sequelas neurológicas em recém-nascidos (artigo 19 do ECA). No entanto, tal disposição limita-se a um cuidado que, apesar de ser importantíssimo, não atende à vicissitude da proteção cerebral das crianças e adolescentes com ou sem deficiência.


[1] Para o autor, o “Estado algorítmico de Derecho” se erige sobre los siguientes elementos tecnológicos nucleares: Internet, cloud computing, plataformas digitales para proveer servicios públicos, Big Data, automatización de procesos mediante inteligencia artificial, sistemas de publicidad basados en tecnologías blockchain y de registro distribuido (DLT por sus siglas en inglés), así como la conectividad ubicua de las redes 5G. Pretende, por tanto, un procesamiento y toma de decisiones en tiempo real, veloz, efectivo y lo más automatizado posible. Supone una arquitectura coherente con los nuevos tiempos que se sirve de los avances tecnológicos. Y así el Estado adquirirá una capacidad de adaptación en un marco temporal más eficiente, acorde con las necesidades del siglo XXI”. BARRIO ANDRÉS, Moisés.  Retos y desafíos del Estado algorítmico de derecho. Madri: Real Instituto Elcano. Publicado el 09 Jun 2020. Disponível em https://www.realinstitutoelcano.org/analisis/retos-y-desafios-del-estado-algoritmico-de-derecho/. Acesso em 21 de setembro de 2023.

[2] Em verdade, o ECA só menciona direitos digitais de crianças quando dispõe no inciso II de seu artigo 10, que  os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, são obrigados a: “II – identificar o recém-nascido mediante o registro de sua impressão plantar e digital e da impressão digital da mãe, sem prejuízo de outras formas normatizadas pela autoridade administrativa competente”; bem como quando cuida da adoção internacional (art. 52, § 9º) e impõe a aposição da impressão digital do polegar direito com item de identificação para fins de expedição de alvará para autorização de viagem.

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