Segunda Leitura

El Salvador, um caso de sucesso em segurança pública

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

19 de novembro de 2023, 8h00

Esta coluna dispõe-se a examinar a realidade atual de El Salvador, país que reduziu a criminalidade a patamares mínimos, A análise é técnica e baseada em fatos e estatísticas, sem ingressar em considerações de natureza política.

El Salvador situa-se na América Central, foi colonizado por espanhóis, possui 6.314 milhões de habitantes (2021), que vivem em um território de 21.041 km2. Sua realidade, portanto, é totalmente diversa do Brasil, que se localiza na América do Sul, foi colonizado pelos portugueses e tem 203 milhões de habitantes (2022), que vivem em um território de 8.510.417,771 km².

Spacca

El Salvador passou por uma guerra civil entre 1980 e 1992, fato que levou muitas crianças e jovens a se mudarem sozinhos ou com suas famílias para Los Angeles, nos Estados Unidos. Da mesma forma, ex-guerrilheiros e desertores deixaram o país rumo à Califórnia. Lá, com o nome de Maras, uniram-se para defender-se de outras gangues e foram assumindo papel de destaque no mundo do crime. Com o fim da guerra civil, muitos decidiram retornar ao seu país e outros voltaram porque foram expulsos pelo governo norte-americano após cumprirem penas de prisão [1].

Instalados em El Salvador, país que enfrentava uma pobreza absoluta pós-guerra civil, assumem os Maras e também a facção Salvatrucha 13 (MS-13) um papel preponderante no mundo do crime. Nos anos que se seguiram, os índices de violência foram altíssimos. As casas tornaram-se protegidas por altos muros com arame farpado e pequenos estabelecimentos comerciais passaram a ter um vigia na porta, armado com um fuzil. Apanhar um táxi era expor a vida a risco. Os homicídios em 2019 estavam na média de 100 assassinatos por 100 mil habitantes.

Em 2019 Nayib Bukele foi eleito presidente da República com apenas 37 anos, e em 1º de junho assumiu o comando do país. De pronto, criou o  Plano de Controle Territorial, denominado Extração, destacando forças policiais e militares para cercar as cidades e conter a atividade das quadrilhas como uma estratégia de segurança abrangente para conter a onda de criminalidade causada por gangues e outros grupos criminosos [2].

Na ação radical de combate à criminalidade, a primeira cidade visada foi Soyapango, no leste da capital, uma das áreas mais assediadas pelo crime e por gangues. As Forças Armadas de El Salvador (FAES) e a Polícia Nacional Civil (PNC) cercaram o município com 8.500 soldados e 1.500 agentes, durante a madrugada do dia 3 de dezembro, informou o Ministério da Justiça e Segurança Pública [3].

Posteriormente, no fim-de-semana de 25 a 27 de março de 2022,  um grupo de criminosos praticou um  massacre que resultou na morte de 87 pessoas [4]. Com tal ocorrência, Bukele conseguiu que a Assembleia Legislativa aprovasse no mesmo dia 27 o Decreto 333 [5], que, no artigo 4º, suspendeu os direitos e garantis individuais previstos na Constituição, entre eles o direito de defesa e inviolabilidade da correspondência e a liberdade de associação e circulação. Também tornou possível o Estado interferir nas telecomunicações sem decisão judicial [6].

O regime de exceção foi reeditado por onze vezes, sendo a última de 7 de novembro, e os índices de criminalidade despencaram nas estatísticas. Segundo o Presidente Bukele, em 11 de maio de 2023 completou-se o período de 1 ano sem um único homicídio [7].

De 27 de março de 2022  30 de junho de 2023, deram entrada na Suprema Corte de Justiça 5.198 demandas, tendo sido julgadas 1.419, sendo que 1.000 foram declaradas improcedentes [8].

Tudo isto, evidentemente, não ocorreu por um arrependimento dos criminosos, pesarosos  a proclamar, como na prece religiosa Confissão: por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa [9]. Não. Além do Plano de Controle Territorial e da construção de um presídio para 40.000 pessoas, o maior da América Latina, várias medidas de natureza econômica foram tomadas.

Investidores estrangeiros de porte, como JPMorgan, passaram a interessar-se por títulos salvadorenhos [10], El Salvador teve reconhecido pela Organização Mundial da Saúde o fato de ter se livrado da malária [11], o turismo aumentou e vem crescendo continuamente, sendo que em 2023 já tem 54% a mais quando comparado com 2022 [12] e o centro histórico, outrora tomado pelas gangues, tornou-se um lugar seguro e quase todos os dias, ao cair da tarde, dezenas de pessoas dançam cumbias e boleros [13].

A segurança reinante, somada ao desenvolvimento econômico, fizeram com que a popularidade do Presidente Nayib Bukele alcançasse 90%, índice inusitado em toda América Latina, e que o leva a pretender reeleger-se em 2024 [14].

Mas Nayib Bukele tem seus opositores e, entre eles, os defensores de Direitos Humanos, com acusações que vão desde prisões arbitrárias e torturas até mortes sob a custódia do Estado [15]. As medidas tomadas no regime de exceção, com certeza, destoam da ação dos países latino-americanos que praticam a democracia e, por isso, causam perplexidade a todos.

No Brasil, o sistema constitucional e a jurisprudência reinante, evidentemente, repudiariam iniciativas como as tomadas em El Salvador. Mas podemos afirmar que disto decorre respeito à segurança pública, como assegura o artigo 144 da Constituição a todos os brasileiros? Óbvio que não.

A cada dia o nosso sistema de segurança se mostra mais fragilizado e citar ocorrências é desnecessário, já que elas se sucedem diariamente. O último episódio de repercussão foi o da Dama do tráfico, mulher de um líder do Comando Vermelho, presidente de uma ONG da Amazônia, que foi a Brasília com despesas custeadas pelo Ministério dos Direitos Humanos [16]. Sem comentários.

O descaso com as Polícias Estaduais (Civil e Militar) não é de hoje, vem de décadas. O governo federal sempre se limitou a afirmar que esta era atribuição dos governadores e estes sempre foram pródigos em entregar viaturas com forte divulgação na mídia. E só. Agora colhe-se o resultado. Descrença da sociedade, risco de vida e perda de território em muitas cidades.

Isto leva à pergunta: estas perdas não constituem ofensa aos direitos humanos? Pessoas que residem em áreas tomadas por facções criminosas ou pela milícia do Rio de Janeiro, tolhidas na sua liberdade, por vezes nos seus bens, não tem afetados seus mais legítimos interesses? Comerciantes que são obrigados a pagar taxa de proteção não são vítimas? As crianças criadas em agrupamentos de viciados em crack ou outras drogas, têm seus direitos humanos resguardados? E as vítimas diárias de crimes violentos?

Serão as vítimas do Brasil menos vítimas do que as do rigor salvadorenho?

Recentemente, aqui ou ali vozes começam a apontar o problema. Por exemplo, o jornal O Estado de São Paulo, do dia 4 p.p., no seu editorial, lembrou A urgência de uma nova segurança pública (p. A3). Muito claro e oportuno o editorial, mas veio com alguns anos de atraso. Outros ficam em generalizações (é preciso políticas públicas…) sem nenhuma indicação exata do que poderia ser feito. Enquanto isto o crime organizado se infiltra na política [18].

Alguém acredita que planos repetindo versões anteriores, com maquiagem de grande novidade, resolverão alguma coisa? Quem quiser saber a resposta que converse com pessoas do povo, estas que moram na periferia das cidades grandes, as que mais sofrem com os reflexos da criminalidade ascendente. Não ouvirão sedutoras teses jurídicas baseadas em autores europeus nem notícias de uma jurisprudência aparentemente generosa, mas que reúne o que há de pior ao anular graves ações penais pelos motivos mais irrelevantes. Ouvirão, na verdade, a revolta dos que sofrem.

Em suma, não se está aqui a pregar que o Brasil adote o plano adotado em El Salvador, país muito diferente do Brasil, mas sim que algo se faça com base na realidade. Se a cada iniciativa de enfrentamento de um problema (por exemplo, a Cracolândia em São Paulo) surgirem cinco investigações contra os autores, podemos ter certeza de que nada mudará, exceto para piorar.


[1] SAVIANO, Roberto. Zerozerozero. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 370-1.

[2] Diálogo Américas. El Salvador destaca forças para conter grupos criminosos. Disponível em: https://dialogo-americas.com/pt-br/articles/el-salvador-destaca-forcas-para-conter-grupos-criminosos/. Acesso em 15 nov. 2023.

[3] Diálogo Américas, reportagem citada.

[4] Brasil paralelo. Tolerância Zero: conheça o presidente “anti-crime” que é aplaudido pela população, mas vaiado pela mídia. Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/tolerancia-zero-conheca-o-presidente-anti-crime-que-e-aplaudido-pela-populacao-mas-vaiado-pela-midia. Acesso em 15 nov. 2023.

[5] ASAMBLEA LEGISLATIVA – REPÚBLICA DE EL SALVADOR. Disponível em: https://www.asamblea.gob.sv/sites/default/files/documents/decretos/4214B3CA-A3AA-4435-8229-49C097CAB14D.pdf. Acesso em 15 nov. 2023.

[6] BBC News Brasil. O presidente ‘linha-dura’ de um pequeno país que se tornou ídolo nas redes na América Latina. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm9g01zkk9o. Acesso em 15 nov. 2023.

[7] UOL. Bukele afirma que El Salvador está há 365 dias sem homicídios. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/05/11/bukele-afirma-que-el-salvador-esta-ha-365-dias-sem-homicidios.htm. Acesso em 15 nov. 2023.

[8] La Prensa. ¿Qué está pasando con los hábeas corpus en el régimen de excepción en El Salvador? Disponível em: https://www.laprensagrafica.com/elsalvador/Que-esta-pasando-con-los-habeas-corpus-en-el-regimen-de-excepcion-20231112-0060.html. Acesso em 15 nov. 2023.

[9] Catolicismo Romano. Oração confiteor (em latim) –  confesso (em português). Disponível em: https://www.catolicismoromano.com.br/oracao-confiteor-em-latim-confesso-em-portugues/. Acesso em 15 nov. 2023.

[10] InfoMoney. El Salvador surpreende e tem os títulos mais rentáveis entre emergentes 2 anos após Bitcoin virar moeda. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/onde-investir/el-salvador-surpreende-e-tem-os-titulos-mais-rentaveis-entre-emergentes-2-anos-apos-bitcoin-virar-moeda/. Acesso em 15 nov. 2023.

[11] Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/25-2-2021-salvador-e-certificado-pela-organizacao-mundial-da-saude-como-livre-da-malaria. Acesso em 15 nov. 2023.

[12] La Pagina. Turismo aumenta en El Salvador gracias a la mejora en seguridad. Disponível em: https://lapagina.com.sv/nacionales/turismo-aumenta-en-el-salvador-gracias-a-la-mejora-en-seguridad/. Acesso em 15 nov. 2023.

[13] UOLDança volta às ruas de El Salvador após novas medidas de segurança. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/05/19/danca-volta-as-ruas-de-el-salvador-apos-novas-medidas-de-seguranca.htm. Acesso em 15 nov. 2023.

[14] JP News. Com popularidade nas alturas, presidente de El Salvador faz olhos da direita brilharem e seduz até a esquerda. Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/mundo/com-popularidade-nas-alturas-presidente-de-el-salvador-faz-olhos-da-direita-brilharem-e-seduz-ate-a-esquerda.html. Acesso em 15 nov. 2023.

[15] BBC News Brasil. Os segredos que cercam a megaprisão símbolo a guerra de Bukele contra as gangues de El Salvador. Disponível em: https://news.files.bbci.co.uk/include/vjamericas/1182-megacarcel-el-salvador/portuguese/app/test–full-width.html. Acesso em 15 nov. 2023. Os

[16]  O Antagonista. Ministério assume que pagou viagem da “dama do tráfico”. Disponível em: https://oantagonista.com.br/brasil/ministerio-dos-direitos-humanos-assume-custo-de-viagem-da-dama-do-trafico-a-brasilia/. Acesso em 15 nov. 2023.

[17] O Estado de São Paulo, 16 nov. 2023, p. A3.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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