Opinião

A importância de Hans Kelsen para a jurisdição constitucional

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

19 de novembro de 2023, 20h50

Nesta segunda-feira, 20 de novembro, será lançado em Brasília o Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional. Vinculado ao Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), o Centro é fruto de exitosa parceria com a Embaixada da República da Áustria no Brasil, muito bem representada por seu Embaixador, Dr. Stefan Scholz.

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Desde suas primeiras elaborações, a Constituição moderna é compreendida como uma ordenação qualitativamente superior ao direito comum. Essa diferenciação de graus normativos conduziu, imediatamente, à questão de como se garantir, por meio de instituições, a precedência desse direito superior.

O âmbito europeu pós-1945 assistiu à formação de uma resposta relativamente uniforme ao problema. Vários ordenamentos nacionais que até então desconheciam a supremacia constitucional começaram a dela usufruir — uma mudança usualmente registrada como a passagem do Estado de Direito (Rechtsstaat) para o Estado Constitucional (Verfassungsstaat). A fórmula apreende, em conceito, um consenso civilizatório gestado em favor de uma sociedade aberta e plural. Foi por expressa deliberação de assembleias nacionais constituintes que se exigiu que os atos praticados pelos órgãos políticos eleitos fossem submetidos a controle. Houve uma convergência transnacional, também, quanto aos meios: a jurisdição constitucional.

Surgida das minutas de Hans Kelsen quando do processo constituinte da Áustria (1918-1920), a jurisdição constitucional (Verfassungsgerichtsbarkeit) notabiliza-se pela instituição de um controle de constitucionalidade realizado em abstrato (de modo principal ou incidental), que por sua vez figura como competência central de um Tribunal de cúpula. Combatida na Alemanha de Weimar pela communis opinio do Direito Público e renegada em seu próprio país de origem com o advento do austrofascismo, a jurisdição constitucional ascende à condição de instrumento basilar do Estado Constitucional.

Os anos 1980-90 vieram para mostrar que não se estava diante de uma especificidade europeia. As derrocadas de regimes ditatoriais na América Latina, África e Ásia apresentaram dinâmica semelhante quanto ao ponto: o fortalecimento do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos seria o meio institucional mais adequado para garantir a liberdade política então retomada. Em países como o Brasil, com larga tradição no sentido de deferir aos juízes a prerrogativa de examinar questões constitucionais, esse fortalecimento passou pela abstrativização do controle de constitucionalidade – mediante clara incorporação de procedimentos, técnicas e institutos típicos da Verfassungsgerichtsbarkeit de matriz kelseniana.

Importante destacar que a proposta de Hans Kelsen, que associava a jurisdição constitucional à democracia, tinha suas balizas exatamente no fato de que a atividade jurisdicional atua na defesa ou na proteção das minorias representativas. Como se sabe, devemos a Kelsen a associação sistemática da jurisdição constitucional a esse aspecto importante do conceito de democracia, que é, exatamente, a possibilidade de sobrevivência e de proteção das minorias 1.

Na famosa conferência proferida perante a Associação dos Professores de Direito Público da Alemanha, Kelsen deixou claro que a jurisdição constitucional haveria de ter papel central em um sistema democrático moderno, afirmando que “A simples ameaça do pedido ao tribunal constitucional pode ser, nas mãos da minoria, um instrumento capaz de impedir que a maioria viole seus interesses constitucionalmente protegidos, e de se opor à ditadura da maioria, não menos perigosa para a paz social que a da minoria.” 2

Nesse contexto, os entes de representação devem agir dentro de limites prescritos, estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos. Essas constituições pretendem, portanto, que os atos praticados pelos órgãos representativos possam ser objeto de crítica e controle. Trata-se, em verdade, de um modelo de fiscalização democrática dos atos do Poder Público.

Essa colocação tem a virtude de ressaltar que a jurisdição constitucional não se mostra incompatível com um sistema democrático, que imponha limites aos ímpetos da maioria e discipline o exercício da vontade majoritária. Ao revés, esse órgão de controle cumpre uma função importante no sentido de reforçar as condições normativas da democracia.

Assim, o estado da arte evidencia o lugar central que ocupa a jurisdição constitucional na estrutura do Estado Constitucional, bem como a importância que aquela revela para a garantia desse regime político – padrão no qual inequivocamente se filia a Constituição Federal de 1988.

Nesse contexto, o Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional assume, já em seu título, essa centralidade. Reconhece, outrossim, o papel determinante exercido por Kelsen — no plano científico e em sua atuação profissional — para o desenvolvimento de artefatos jurídicos que deixaram os Tribunais Constitucionais em condições mais adequadas para enfrentar os problemas apresentados por uma sociedade cada vez mais complexa.

Focado em fomentar uma interlocução produtiva entre Teoria da Constituição, Controle de Constitucionalidade e Democracia, o Centro tem como propósito a organização de palestras, debates e seminários que são configurados com a simultânea finalidade de apresentar aos estudantes o ambiente da pesquisa jurídica de ponta, e de franquear aos operadores do direito a possibilidade de refletir, com substrato teórico, acerca de suas práticas profissionais.

Em linha com a proposta do IDP, de prestigiar a internacionalização do ensino, pesquisa e extensão, o Centro Hans Kelsen eleva a comparação jurídica à condição de elemento estruturante de suas ações e projetos, como exemplifica o diálogo institucional que já mantém com o Hans Kelsen-Institut, de Viena, e, de modo geral, com a República da Áustria, por meio de sua Embaixada no Brasil. Aliás, o lançamento do Centro Hans Kelsené mais um passo importante na relação entre nossos países, marcada por uma agenda positiva e de conexões históricas e culturais únicas. Nunca é demais lembrar o papel fundamental que a Arquiduquesa Leopoldina, filha do Imperador austríaco Francisco I e esposa de D. Pedro, teve na Independência do Brasil, no ano de 1822.

Dentre os projetos, o Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional promove a curadoria da Coleção Áustria-Brasil, voltada à tradução de publicistas austríacos ou de obras dedicadas à jurisdição constitucional, de preferência na língua alemã, e abriga a Coleção “Constitucionalismo Contemporâneo”, que investe no objetivo de divulgar, para a audiência brasileira, os posicionamentos teóricos mais destacados da atualidade. O lançamento do livro “Jurisdição Constitucional e Democracia: Ensaios Escolhidos”, do Prof. Dieter Grimm, que ocorrerá no dia 21 de novembro, na Biblioteca Victor Nunes Leal, do STF, marca a brilhante estreia dessa Coleção.

A propósito, merece destaque a presença do próprio Prof. Grimm nesses eventos. Ele – que está no Brasil realizando uma série de palestras a convite da Embaixada da Alemanha — também é membro do Centro Hans Kelsen, ao lado de um grande time de pesquisadores de diversos países, como, por exemplo, Clemens Jabloner e Thomas Olechowsky, vinculados ao Hans Kelsen-Institut, de Viena; Harald Dossi, diretor do Parlamento austríaco; Matthias Jestaedt, da Universidade de Freiburg; Leticia Vita, da Universidade de Buenos Aires e, do Brasil, o Ministro Edson Fachin, ligado ao Centro Universitário de Brasília. Destaco, ainda, a participação de Beatriz Horbach e de Paulo Sávio Maia como coordenadores-executivos, sob a minha liderança.

Em vista disso, é com muita alegria que anuncio o lançamento do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional. Estou seguro de que esse novo projeto em muito contribuirá para uma produção acadêmica de qualidade relacionada às áreas de Teoria da Constituição, Controle de Constitucionalidade e Democracia, passando a ser importante referência — nacional e internacional — para o desenvolvimento dessas áreas.

Eventos:

20.11.23 – Lançamento do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional – 10h – IDP Asa Sul, seguida da Palestra “O que exatamente é político na revisão judicial”, do Prof. Dieter Grimm (em inglês, com tradução simultânea).

21.11.23 – Lançamento do livro “Jurisdição Constitucional e Democracia: Ensaios Escolhidos”, na Biblioteca Victor Nunes Leal, do Supremo Tribunal Federal, a partir das 18h. Antes, a partir das 16h, o Prof. Grimm proferirá a palestra “Nova crítica radical à jurisdição constitucional”, na Sala de Sessões da Primeira Turma.


1 KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2a ed. 1929, p. 101.

2 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 181-182.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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