Opinião

Imunidade tributária recíproca a concessionárias privadas de serviço público

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18 de novembro de 2023, 7h07

No último mês, o STF (Supremo Tribunal Federal) se deparou com uma questão que, desafiando conceitos constitucionais e tributários, estabelecia a seguinte pergunta: o imóvel público, cedido a pessoa jurídica de direito privado concessionária de serviço público, deve ser beneficiado pelo instituto da imunidade tributária recíproca?

No pano de fundo, a discussão travada na Reclamação nº 60.726 trouxe, em suma, o enfrentamento de dois dispositivos legais responsáveis pelo estabelecimento do fato gerador do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), quais sejam o artigo 156, I da Constituição (CF) — que restringe a hipótese de incidência à existência de propriedade predial e territorial urbana — e o artigo 32 do Código Tributário Nacional (CTN) — que, alargando as possibilidades, prevê, como fato gerador, a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel.

É verdade que a discussão não é recente nos tribunais superiores. Nos últimos 10 anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao se debruçar sobre o alcance da disposição contida no artigo 32 do CTN, firmou jurisprudência no sentido de que a posse ensejadora do fato gerador previsto no dispositivo seria, apenas, aquela exercida com animus domini.

Julgando precisamente casos envolvendo concessionárias de serviço público, o Tribunal da Cidadania decidiu, portanto, pela impossibilidade de cobrança de IPTU, já que, sendo imóvel pertencente à União e estando a posse, por sua vez, completamente incapacitada de modificar a referida propriedade, nem mesmo a ampla redação do artigo 32 do CTN seria capaz de viabilizar tal incidência.

Valendo-se de conceito próprio da doutrina civilista, cumpre dizer que a posse exercida com animus domini é aquela na qual há o propósito de tornar-se proprietário, sendo juridicamente possível fazê-lo (posse ad usucapionem). No caso de imóvel da União cedido a concessionária de serviço público, a própria previsão constitucional veda tal aquisição, sendo que o artigo 183, §3º é objetivo ao estabelecer que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.

Ao longo dos anos, a temática também chegou ao STF — sob distintas roupagens — tendo sido firmadas duas teses emblemáticas no sentido de que a imunidade tributária recíproca não se estenderia à pessoa jurídica de direito privado, cessionária ou arrendatária de imóvel público, quando exploradora de atividade econômica com fins lucrativos (Temas 385 e 437).[1]

Tais teses foram utilizadas como supedâneo para que, em um primeiro momento, fosse julgada procedente a Reclamação nº 60.726, ajuizada pelo município de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte. Em decisão monocrática, o ministro Luís Roberto Barroso — relator do caso — determinou a cassação das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJ/RN), que, até então, haviam determinado o afastamento da incidência do IPTU sobre todo o imóvel cedido à concessionária de serviço aeroportuário.

Acontece que, muito embora à primeira vista, as teses supramencionadas, firmadas em Repercussão Geral pelo STF, parecessem se amoldar perfeitamente ao caso em concreto da Reclamação nº 60.726, a análise aprofundada das situações paradigmáticas conduziria à necessária distinção com o caso em questão.

É que os casos discutidos nos Temas 385 e 437 envolviam situações de nítida exploração econômica com finalidade lucrativa, sendo tal critério expressamente considerado para decidir em favor do afastamento da imunidade tributária recíproca naquelas hipóteses. Naqueles casos — também de relatoria do ministro Barroso — entendeu-se que os imóveis, apesar de formalmente públicos, eram materialmente privados, em virtude da destinação que lhes era conferida.

Em argumentação contraposta, a empresa concessionária envolvida na Reclamação nº 60.726 defendeu a sua atuação como prestadora de serviço público — apesar de ser pessoa jurídica de direito privado — não devendo, portanto, se submeter às conclusões firmadas nos Temas 385 e 437.

Após interposição de agravo interno contra a decisão monocrática que julgou procedente a reclamação, o caso foi levado a plenário, ocasião em que foi parcialmente acolhido o pleito da concessionária para declarar a aplicabilidade da imunidade tributária recíproca apenas sobre a área do imóvel efetivamente utilizada na prestação do serviço público.

Apesar de, na origem, o pleito da empresa concessionária ser mais amplo — isto é, destinado a garantir a imunidade tributária sobre toda a área do imóvel, em virtude da universalidade indissociável que é própria dos sítios aeroportuários —, o recente julgamento não deixa de ser uma vitória para as empresas do setor e para a sociedade, já que a incidência irrestrita do IPTU certamente proporcionaria a incrementação das tarifas atualmente aplicadas aos usuários.

Na verdade, o julgamento da Reclamação nº 60.726 é também uma vitória porque, do ponto de vista constitucional, coaduna com o caráter do IPTU enquanto imposto de natureza real, reforçando a ideia de que o instituto da imunidade tributária recíproca é fundado sob a ótica da perspectiva patrimonial, isto é, a depender da titularidade e da finalidade última do bem.

Historicamente, muito embora já houvesse inúmeros julgados do STF sobre os limites da imunidade tributária recíproca, ainda era tímida a jurisprudência especificamente relacionada à aplicação deste instituto a empresas privadas concessionárias de serviços públicos. De todo modo, a decisão proferida na Reclamação nº 60.726 não é única. Também a segunda turma da Suprema Corte, em caso bastante semelhante, se posicionou favoravelmente à aplicação da imunidade tributária recíproca sobre a parte do imóvel essencialmente utilizada na prestação do serviço público (Rcl nº 50522/DF), demonstrando que, se por um lado é nova a definição a respeito da temática para as empresas privadas concessionárias, por outro a segurança jurídica sobre a matéria já desponta no horizonte.


[1] Tema 385 – A imunidade recíproca, prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos. Nessa hipótese é constitucional a cobrança do IPTU pelo Município.

Tema 437 – Incide o IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo.

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