Opinião

Improbidade, corrupção e os quatro gargalos das Emendas Pix

Autor

  • Caio Gama Mascarenhas

    é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

18 de novembro de 2023, 11h26

Na linguagem dos noticiários, a Emenda Pix virou sinônimo de uma espécie de “repasse sem transparência que dribla a fiscalização”, facilitando gastos ruins, improbidade administrativa e corrupção. Por que essa associação ocorre?

Essa provocação reflete uma análise crítica feita em um artigo de nossa autoria chamado “orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção” recentemente publicado na revista eletrônica do PGE-RJ (link de acesso) [1].

A Emenda Pix destaca-se como o recurso predominante utilizado por parlamentares para alocar recursos federais a estados e municípios. Nascida durante a gestão do governo federal anterior, os seus problemas persistem no atual governo. No decorrer deste ano, notícias apontam que o governo federal destinou R$ 25,6 bilhões para redutos eleitorais de congressistas. Desse montante, R$ 6,4 bilhões foram alocados por meio da Emenda Pix, quantia superior aos valores destinados a iniciativas de saúde, educação e infraestrutura.

Por que as Emendas Pix são tratadas como instrumentos de improbidade administrativa?
Quais são os gargalos encontrados nas Emendas Pix?

Em suma, Emenda Pix (ou transferência especial) foi a espécie que representou a verdadeira inovação apresentada pelo texto do artigo 166-A do texto constitucional — introduzida pela Emenda Constitucional 105/2019. Essa modalidade de repasse é realizada diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente da identificação da programação específica no orçamento federal e da celebração de convênio ou de instrumento congênere.

Sua característica mais marcante é a previsão de que seus recursos passam a pertencer ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira, mudando igualmente a competência para controle desses recursos (dos órgãos federais de controle para órgãos locais de controle). Esse tipo de repasse é regulamentado pela Portaria Interministerial ME/Segov nº 6.411/2021 (disponível aqui).

Emendas Pix possuem uma série de condicionalidades nos gastos, nas modalidades proibitivas e impositivas
Previstas no artigo 166-A, as condicionalidades proibitivas aplicam-se a todos repasses de emendas parlamentares individuais (emendas pix ou não), determinando-se que tais recursos: a) não integrarão a receita do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios para fins de repartição e para o cálculo dos limites da despesa com pessoal e de endividamento do ente federado; b) não poderão ser destinados para pagamento de despesas com pessoal e encargos sociais relativas a ativos e inativos, e com pensionistas e encargos referentes ao serviço da dívida.

No caso específico da Transferência Especial, há as condicionalidades impositivas de gastos, porquanto os recursos desta modalidade (calculados pelo total) deverão ser aplicados em despesas de capital em montante não inferior a 70%, na forma do §5º do artigo 166-A da Constituição.

O que esse procedimento específico tem a ver com improbidade ou corrupção
Evidentemente o patrocínio de políticas locais pode envolver corrupção quando os recursos são alocados em violação às normas legais [2]. Embora improbidade não se confunda com corrupção, a lógica de violação das normas legais é igualmente aplicável [3]. Ressalta-se que a lei 8.429/92 não contém apenas os atos de corrupção pública, também entendida pela doutrina como uso de poderes públicos para fins privados, mas também tipifica distorções inerentes à desorganização administrativa, ao desgoverno e à ineficiência endêmica [4].

Elaborada pelo economista Robert Klitgaard e amplamente difundida na doutrina econômica internacional, existe uma fórmula econômica para a corrupção que guia reformas nos sistemas de controle: Corrupção = monopólio + discricionariedade – accountability

Nesse sentido, a corrupção floresce quando alguém tem poder de monopólio sobre um bem ou serviço e possui o poder de decidir (discricionariedade) quanto cada cidadão recebe, ocorrendo onde a responsabilização e a transparência (accountability) são fracas. Portanto, para combater a corrupção, deve-se reduzir o poder de monopólio, mitigar a discricionariedade e aumentar a responsabilização e a transparência de várias maneiras [5].

A partir dessa fórmula, encontram-se os gargalos institucionais — ou seja, circunstâncias que, direta ou indiretamente, mitigam as capacidades estatais ou obstruem, de qualquer outra forma, a implementação adequada e a efetividade de políticas públicas [6].

Em primeiro lugar, em relação ao monopólio, o procedimento das Emendas Pix se move em direção oposta. A descentralização política auxilia a quebrar o monopólio do poder em nível nacional ao aproximar a tomada de decisão das pessoas, fortalecendo a responsabilidade do governo para com os cidadãos. Estes, por sua vez, pressionam por melhor desempenho do governo e exigem ações corretivas para a gestão disfuncional e corrupta.

Os esforços para melhorar a prestação de serviços geralmente obrigam as autoridades a lidar com a corrupção e suas causas. A doutrina internacional adverte, no entanto, que, quando há um Estado de Direito ausente, accountability fraco e interferência política desenfreada no âmbito local, a descentralização, por si só, pode não ser um remédio potente para combater a corrupção [7]. Em suma, federalismo não é um gargalo que gera corrupção, mas uma arma para o seu combate. A descentralização política, contudo, é necessária, mas não é suficiente para combater a corrupção.

Em segundo lugar, não há propriamente aumento legal de discricionariedade por parte dos governos beneficiários, porquanto submetidos às mesmas normas gerais de responsabilidade fiscal, licitações e contratos públicos de antes. O que há é uma mudança na competência de controle de fiscalização dos recursos transferidos.

Em terceiro lugar, deve-se admitir que há problemas com o accountability no procedimento das Emendas Pix (ou transferências especiais). Não se ignora que as transferências especiais se encontram dentro de um contexto de falta de transparência orçamentária que envolve outras questões como o próprio desvio de finalidade das emendas RP9 (vulgo “orçamento secreto”). A diferença é que as emendas RP9, em sua execução, careciam de transparência em relação aos parlamentares que seriam os reais autores das emendas e os gastos no destino (ausência de accountability na origem e no destino) [8].

No caso das transferências especiais, os autores das emendas são conhecidos, o problema residiria na transparência e execução orçamentária dos recursos repassados, não mais submetidos ao controle da Corte de Contas federal (ausência de accountability no destino).

Tradicionalmente se nota que, ao vincular os recursos das transferências à programação orçamentária da União, os órgãos federais de fiscalização ficam responsáveis pelo controle e receberiam a prestação de contas dos entes beneficiários dos recursos. Esse controle, no caso das transferências especiais (emendas pix), passaria aos órgãos subnacionais de fiscalização (TCEs, TCMs, MPE etc.).

Quais são os gargalos das emendas pix (transferências especiais)?
No procedimento das Emendas Pix, há desenhos institucionais que dificultam a fiscalização e incentivam o descumprimento de normas. Ressalta-se que a descentralização fiscal não é um gargalo, mas um instrumento político de governança que mitiga o monopólio de poder estatal. Pode-se dizer que há quatro gargalos: (1) na origem, há a ausência de responsabilização dos entes receptores infratores no momento da definição dos beneficiários das Emendas Pix; (2) a falta de transparência na execução orçamentária; (3) a baixa governança orçamentária de grande parte dos entes receptores; e (4) a ausência de institucionalização da comunicação e cooperação entre Tribunal de Contas da União, de um lado, e Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal (TCE e TCDF) e dos municípios (TCM), do outro.

Por que o primeiro gargalo se refere à ausência de responsabilização dos entes receptores infratores no momento da definição dos beneficiários das emendas pix? A Portaria Interministerial ME/SEGOV nº 6.411/2021 pouco fala sobre impedimentos técnicos, citando apenas erros meramente formais no momento da indicação do beneficiário dos recursos no sistema eletrônico e um genérico trecho mencionando “outras razões de ordem técnica devidamente justificadas[9]. Nada se fala, portanto, sobre o respeito às condicionalidades. Necessita-se de desincentivar o desrespeito às normas, impedindo o recebimento de novos repasses por entes que não cumprem as condicionantes do artigo 166-A.

O segundo gargalo trata da ausência de transparência na execução orçamentária. O artigo 19 da Portaria interministerial coloca o registro da execução dos recursos transferidos na plataforma +Brasil como mera discricionariedade do ente federado beneficiário [10]. Essa norma é ilegal e inconstitucional. Ilegal porque viola o artigo 48 da Lei de Reponsabilidade Fiscal, que cuida da determinação de transparência na gestão fiscal e garante o amplo acesso aos dados da execução orçamentária. Inconstitucional porquanto se descumpre o dever de divulgação dos gastos dos entes subnacionais beneficiários dos recursos de emendas parlamentares em bancos de dados centralizados e de amplo acesso público, previsto no artigo 163-A da Constituição [11].

O terceiro gargalo encontra-se na baixa governança orçamentária de grande parte dos entes receptores. Os recursos das transferências especiais geralmente se destinam à conta única dos entes beneficiários. Considerando que tais recursos são prioritariamente vinculados às despesas de capital (ex: obras de infraestrutura), há o risco da aplicação de seus recursos em outras áreas caso a governança orçamentária seja baixa. Alerta-se para a possível violação da regra de ouro diante da fiscalização falha e baixa transparência. Isso porque gestores locais podem se sentir tentados a utilizar tais recursos para pagamento de servidores ativos e inativos (despesas correntes).

O quarto gargalo localiza-se nos próprios órgãos de controle — ante a ausência de institucionalização da comunicação e cooperação entre Tribunais de Contas.  O Tribunal  de Contas da União, no Acórdão 518/23 – TC 032.080/21-2, entendeu que a competência de fiscalização das transferências especiais é compartilhada entre órgãos federais e órgãos subnacionais de fiscalização da seguinte forma: (1) a fiscalização sobre a regularidade das despesas efetuadas na aplicação de recursos obtidos por meio de transferência especial pelo ente federado é de competência do sistema de controle local; e (2) a fiscalização sobre o cumprimento, pelo ente beneficiário da transferência especial, das condicionantes que a legitimam, previstas no artigo 166-A, são de competência federal.

Destaca-se, contudo, uma impossibilidade operacional de cisão entre o controle das condicionalidades do artigo 166-A, de um lado, e a regularidade geral da execução orçamentária dessas verbas, do outro — acarretando em conflito de interpretações entre diferentes cortes de contas. É necessário que haja uma eficiente cooperação técnica entre os Tribunais de Contas para o controle de tais recursos, abrangendo compartilhamento de dados, tecnologia, capacitação etc. É aqui que as informações passadas por Tribunais de Contas locais poderiam embasar um impedimento técnico para o ente federado faltoso já no ato de indicação de beneficiário da emenda orçamentária.

Os quatro gargalos podem ser enfrentados por um marco legal regulatório sólido. Isso pode ser realizado por normas infraconstitucionais federais, estaduais e municipais.


[1] Para citação: MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: Notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), [S. l.], volume 6, número 1, 2023. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/340/269.

[2] Ibid, p. 30.

[3] A corrupção é espécie do gênero “improbidade”, enquanto que esta é espécie do gênero “má gestão pública”. Fernando Gaspar Neisser explica que são elementos essenciais para a definição da corrupção: (1) a existência de uma vantagem indevida (não necessariamente financeira); (2) presença de ao menos um agente público envolvido; (3) que os interesses próprios deste agente tenham sido perseguidos, em detrimento do interesse público, e; (4) que este agente detenha competência funcional para praticar ou deixar de praticar o ato em questão. Fonte: NEISSER, Fernando Gaspar. A responsabilidade subjetiva na improbidade administrativa: um debate pela perspectiva penal. Tese de doutorado. 2018.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 253.

[4] OSÓRIO, Fábio Medina. Conceito de improbidade administrativa. JUS. Belo Horizonte, ano 43, n. 26, p. 23-51, jan./jun. 2012, p. 25.

[5] KLITGAARD, Robert. Fighting corruption. CESifo DICE Report, v. 9, nº 2, 2011, p 33.

[6] FONTES, Mariana Levy Piza. Direito e implementação de políticas públicas: caminhos para uma agenda de pesquisa. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e2313, 2023, p. 17.

[7] MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição, op cit.

[8] MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição, op cit.

[9] Segundo a norma: Artigo 8º Constituem impedimentos de ordem técnica para a execução das emendas individuais impositivas na modalidade de transferência especial: I – omissão ou erro na indicação de beneficiário pelo autor da emenda no SIOP; II – não indicação de instituição financeira para recebimento e movimentação de recursos de transferências especiais pelo ente federado beneficiário na Plataforma +Brasil; e III – outras razões de ordem técnica devidamente justificadas.

[10] Conforme o dispositivo: Artigo 19. O ente federado beneficiário poderá registrar na Plataforma +Brasil, para fins de transparência e controle social das transferências especiais, os dados e informações referentes à execução dos recursos recebidos, na forma do Decreto nº 10.035, de 1º de outubro de 2019.

[11] Artigo 163-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais, conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União, de forma a garantir a rastreabilidade, a comparabilidade e a publicidade dos dados coletados, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de amplo acesso público.

Autores

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo(USP), mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Corpo Editorial da Revista da PGE-MS.

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