Garantias do Consumo

O caso da 123 Milhas e a responsabilidade dos anunciantes

Autores

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

  • Lúcia Souza d’Aquino

    é professora adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF - Campus de Macaé) doutora e mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université de Savoie-Mont Blanc/UFRGS líder do Grupo de Pesquisa CNPq "Vulnerabilidades no Novo Direito Privado” e diretora do Instituto de Direitos Humanos ‘José do Nascimento’.

15 de novembro de 2023, 8h00

O caso do cancelamento de passagens e reservas feitas por meio da 123 Milhas desencadeou uma série de problemas ao consumidor, desde a impossibilidade de viajar tal como planejado à não devolução, pela empresa, dos valores desembolsados para tanto.

A intenção da empresa era realmente oferecer um serviço diferente, popularizando as viagens nacionais e internacionais pelo oferecimento de valores baixos de pacotes turísticos no mercado, considerando que o cenário pré-pandêmico possibilitava tal conduta, especialmente diante do crescimento do mercado de milhas no país. Contudo, manter a venda desses pacotes promocionais durante a pandemia, partindo do pressuposto de que o mercado iria voltar ao cenário anterior foi temerário, não só porque a própria forma de fazer turismo poderia mudar, como também outras variantes poderiam emergir.

Pesquisas realizadas sobre o setor turístico apontam que os consumidores-turistas, hoje, estão atuando com mais cuidado e planejamento para fazer turismo, optando por pacotes com distâncias mais curtas (chamado de turismo de entorno), as quais podem ser realizadas de carro, assim como por pacotes que envolvam um maior contato com a natureza ou mesmo para algum entretenimento cultural (religioso, musical ou esportivo). [1]

As viagens mais longas, porém, não desapareceram, pois aqueles que tinham o hábito de viajar para destinos mais afastados ou mesmo fora do país queriam voltar a realizá-las. [2] Todavia, esse tipo de viagem depende de uma maior oferta de rotas aeronáuticas por parte das empresas, de uma queda do valor do querosene (que, diante da guerra russo-ucraniana, não há perspectiva de melhora), além da própria oferta de hotéis e passeios no destino, os quais restaram largamente afetados durante a pandemia, tendo sido fechados ou mesmo descontinuados.

A própria Organização Mundial para o Turismo (UNWTO) teceu que em 2022 seriam alcançados apenas 65% dos níveis turísticos pré-pandêmicos. [3] As projeções da organização para 2023 são de apenas 80%. [4]

Ou seja, a manutenção de ofertas promocionais como fez a 123 Milhas foi evidentemente uma aposta, à qual qualquer empresário que opera no mercado está susceptível. A empresa, notando que o preço exerce um papel fundamental na influência das escolhas dos consumidores-turistas[5], optou por manter essa forma de negócio, sendo uma escolha unicamente sua, recaindo contra si os riscos intrínsecos inerentes ao mesmo [6].

Culpar o ‘comportamento do mercado’ tal como fez o sócio da empresa, Ramiro Júlio Soares Madureira, diante da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as Pirâmides Financeiras no dia 6 de setembro de 2023 [7], não poderia servir como justificativa para que ela se esquive das responsabilidades assumidas perante os consumidores-turistas. Não há aqui, pois, uma culpa exclusiva do consumidor, como o Código de Defesa do Consumidor traz no artigo 14, inciso II, mesmo que seus preços fossem muito mais baixos do que aqueles oferecidos por outras operadoras de turismo.

Entretanto, diante da impossibilidade de cumprir com os contratos de consumo assumidos, a empresa suspendeu em 18 de agosto de 2023 os pacotes vendidos na categoria promocional com embarque previsto de setembro a dezembro deste mesmo ano, impondo ao consumidor-turista que resgatasse um voucher no valor do pacote, com correção monetária de 150% do CDI, para ser utilizado na própria empresa[8] — uma medida explicitamente ilegal consoante o CDC, que impõe, à escolha do consumidor, por exemplo, em seu artigo 19, a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos, que poderiam emergir de reservas feitas com outros fornecedores no destino final.

Por força disso, diversas solicitações foram feitas pelos Procons de diversas cidades e estados do Brasil, como Porto Alegre [9], São Paulo [10], Rio de Janeiro [11], Amazonas [12], Acre [13], Paraná [14], Espírito Santo [15], Santa Catarina [16], para citar alguns. A intenção era não só questionar a proposta de reembolso via voucher, mas também de tentar efetivar os contratos, com base nos artigos 30 e 35 do CDC. Note-se que a 123 Milhas não compareceu às audiências de conciliação [17], tendo contra si aplicadas diversas multas ancoradas no artigo 56, inciso I, do CDC, a exemplo de São Paulo, onde a sanção administrativa do Procon chegou à R$ 2,5 milhões [18].

Como os problemas persistiram, muitos consumidores optaram por ingressar na via judicial contra a empresa buscando assegurar a viagem (com base nos já aludidos artigos 30 e 35 do CDC) ou mesmo seu crédito junto à empresa. Isso porque, em 31 de agosto de 2023, a 123 milhas solicitou recuperação judicial junto à justiça mineira, onde está sua sede, suspendendo quaisquer ações e execuções contra ela pelo prazo de 180 dias [19]. Outrossim, pautando-se no artigo 28 do CDC, em 13 de setembro de 2023, a justiça mineira igualmente determinou o bloqueio de R$ 50 milhões dos sócios da 123 Milhas, antecipando-se à eventual liquidação de bens, para garantir a eventual execução das obrigações da empresa [20] — valor este que, no entanto, não chega perto dos R$ 1,6 bilhão em débito que a empresa atualmente detém [21].

Embora a recuperação judicial tenha sido suspensa a pedido de um dos credores, mais especificamente, o Banco do Brasil, no dia 20 de setembro de 2023, em virtude de inconsistências documentais no processo de recuperação judicial[22], os consumidores-turistas não conseguem ainda rever o montante investido ou ter a sua viagem realizada.

Assim, pensando em alternativas a essa situação, entende-se que poderia haver um outro caminho a seguir. Indagamo-nos se os anunciantes da 123 Milhas poderiam ser responsabilizados. Mais especificamente, quando empresas como a Trivago anunciam os preços da 123 Milhas em suas publicidades televisionadas e transmitidas pela internet, não poderiam ser elas responsabilizadas?

Trata-se de uma questão interessante, pois o que se vislumbra na atual jurisprudência pátria é que anunciantes, em geral, por não operarem como intermediadores do negócio jurídico, tal como ocorre com outras plataformas, como Airbnb, Expedia, Mercado Livre e Americanas, elas não poderiam ser responsabilizadas. Isso porque entende-se que essas empresas precisariam estar na cadeia de consumo de alguma maneira para que fossem solidariamente responsáveis, nos termos do artigo 7º, parágrafo único, e artigo 25, § 1°, do CDC. O argumento utilizado é sempre que, para ser responsabilizada, a empresa possibilite a realização da contratação e aufira lucro com a operação [23], atuando como intermediador do negócio firmado entre o hotel, o site de reserva e os consumidores.

Ocorre que, mesmo cientes que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entenda que o provedor de busca não seja intermediário [24], acreditamos que se a reserva foi feita via Trivago ou qualquer outro anunciante, este também deveria integrar a relação de consumo, mesmo que se trate de um site de busca e comparação de preços. Isso porque já há inclusive jurisprudência do STJ reconhecendo que o veiculador de anúncio publicitário que não age com a devida diligência e apresenta anúncios fraudulentos é solidariamente responsável pelos danos causados aos consumidores. [25]

Veja-se que o Código de Defesa do Consumidor, como microssistema de proteção da parte vulnerável, possui uma interpretação mais aberta no sentido de ser mais flexível ao identificar os possíveis fornecedores, que serão responsabilizados em caso de danos aos consumidores.

O fator primordial, já abordado no presente texto, é a percepção de lucro a partir do anúncio, configurando uma cadeia de fornecimento. Veja-se que é exatamente o caso da Trivago que, em seu site na internet, afirma que “os sites pagam uma taxa ao Trivago se o usuário clicar em uma oferta específica” [26]. Ora, a partir do momento em que existe a obtenção de lucro pela empresa, deve ela atuar com a diligência necessária para não induzir o consumidor a erro ou levá-lo a uma publicidade enganosa ou a uma empresa que não tem condições de cumprir as ofertas realizadas, o que parece ser o caso da 123 Milhas.

Ainda no que diz respeito ao modelo de negócios da empresa, a Trivago afirma que mostra ofertas que seu algoritmo recomenda como uma boa opção, o que leva em consideração “diversos fatores importantes, como os critérios de busca (localização e datas da estadia), o preço da oferta e a sua atratividade geral, além da precisão das tarifas fornecidas pelos sites de reserva”. “Também levamos em consideração a remuneração paga pelos sites de reserva quando um usuário clica em uma oferta.” [27]

Veja-se que é evidente a participação ativa da Trivago na decisão a respeito de quais anúncios veicula, de sua posição nos resultados e na previsão de precisão das tarifas, além de classificar os resultados enquanto bons com base na remuneração percebida, o que o coloca na posição de não um mero exibidor de anúncios, mas uma empresa que faz parte de uma cadeia de consumo, ao decidir quais critérios o algoritmo levará em consideração ao apresentar as ofertas.

Não por outra razão, já se reconheceu a responsabilidade de empresas deste tipo por falha na prestação do serviço de publicidade, eis que “o tipo de serviço prestado pela ré atrai inúmeros consumidores justamente porque a ideia transmitida é garantir a segurança, por meio da sua plataforma, na operação de compra e verificação da hospedagem. É justamente essa razão que motiva o surgimento de empresas como a da ré, assim como, por exemplo, Trivago, Hoteis.com, Decolar, Hurb, etc. Assim, não há que se falar em isenção de responsabilidade, independente (sic) de ser ou não intermediadora. Em outros termos, se TODOS LUCRAM com o negócio, TODOS RESPONDEM por ele (quem aufere o bônus, também arca com o ônus)”. [28]

Dessa forma, e tomando em consideração a teoria do risco-proveito, os anunciantes como a empresa Trivago devem, a partir da identificação de sua atuação não-diligente na qualidade de anunciantes, ser responsabilizados pelos danos experimentados pelos consumidores, por fazerem parte de inequívoca cadeia de fornecimento que captura e direciona os consumidores ao anunciante que paga pelo clique, utilizando como critérios a precisão no preço e atratividade da oferta, questões subjetivas e que diferem de um mero buscador que apresenta resultados de buscas objetivos.


[1] https://americachip.com/turismo-pos-pandemia/ ; https://gente.globo.com/pesquisa-infografico-turismo-pos-pandemia-o-que-esperar-para-o-setor/; https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2023/03/quem-sao-e-para-onde-vao-os-novos-viajantes-que-estao-turbinando-o-turismo-pos-pandemia.shtml

[2] https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2023/03/quem-sao-e-para-onde-vao-os-novos-viajantes-que-estao-turbinando-o-turismo-pos-pandemia.shtml

[3] https://www.unwto.org/news/tourism-recovery-accelerates-to-reach-65-of-pre-pandemic-levels

[4] https://www.unwto.org/news/tourism-on-track-for-full-recovery-as-new-data-shows-strong-start-to-2023

[5] https://gente.globo.com/pesquisa-infografico-turismo-pos-pandemia-o-que-esperar-para-o-setor/;

[6] Como bem explica Maria Luiza Traga, trata-se da teoria ‘risco-proveito’, “que significa que, em virtude do proveito econômico obtido a partir da disponibilização do serviço ou produto no mercado de consumo (bônus), arcam com os riscos inerentes ao seu negócio (ônus)”. Cf. https://www.conjur.com.br/2023-set-13/garantias-consumo-hurb-123-milhas-necessidade-manter-pes-chao#author  

[7] https://www.poder360.com.br/congresso/socio-da-123milhas-culpa-comportamento-do-mercado-por-polemica/#:~:text=O%20s%C3%B3cio%20da%20123Milhas%20Ramiro,comunicada%20pela%20123Milhas%20em%20agosto.

[8] https://veja.abril.com.br/economia/123-milhas-suspende-pacotes-promocionais-e-sugere-voucher-como-compensacao

[9] https://prefeitura.poa.br/smdet/noticias/procon-investiga-quantas-viagens-empresa-de-milhas-suspendeu-partir-de-porto-alegre

[10] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/08/19/procon-sp-diz-que-notificara-123-milhas-apos-suspensao-de-pacotes-de-viagem-e-emissao-de-passagens-promocionais.ghtml

[11] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/08/24/procon-rj-vai-a-justica-contra-a-123-milhas.ghtml

[12] http://www.procon.am.gov.br/procon-am-notifica-123-milhas-apos-cancelamento-de-pacotes-de-viagens/

[13] https://agencia.ac.gov.br/procon-notificara-123-milhas-apos-anuncio-de-suspensao-de-pacotes-aereos/

[14] https://www.aen.pr.gov.br/Noticia/Procon-PR-notifica-123milhas-por-descumprimento-de-contrato-com-consumidores

[15] https://procon.es.gov.br/Not%C3%ADcia/procon-es-notifica-123-milhas-por-cancelamento-de-viagens

[16] https://estado.sc.gov.br/noticias/procon-sc-notifica-empresa-de-passagens-aereas-123-milhas/

[17] https://www.colunaesplanada.com.br/caso-da-123-milhas-continua-apos-empresa-se-recusar-a-participar-de-audiencias-de-conciliacao/

[18] https://www.infomoney.com.br/consumo/123milhas-recuperacao-judicial-procon-sp-pede-informacoes-para-auxiliar-consumidores-com-ressarcimentos/#:~:text=Multa,defesa%20dos%20interesses%20dos%20consumidores

[19] https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2023/09/01/123-milhas-recuperacao-judicial-congela-processos-contra-empresa-temporariamente.ghtml

[20] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2023/09/13/bloqueio-socios-da-123-milhas.ghtml

[21] https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-09/justica-suspende-recuperacao-judicial-da-123milhas

[22] https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-09/justica-suspende-recuperacao-judicial-da-123milhas

[23] TJPE. Recurso Inominado Cível n. 0030661-85.2019.8.17.8201. Rel. Anamaria de Farias Borba Lima Silva, Julgado em 15/07/2022.

[24] STJ. Recurso Especial n. 1444008/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 25/10/2016, DJe 09/11/2016

[25] STJ. Recurso Especial n. 1.391.084/RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 26/11/2013, DJe 25/2/2014.

[26] https://support.trivago.com/hc/pt-br/articles/360016002114-O-que-%C3%A9-o-trivago-

[27] https://support.trivago.com/hc/pt-br/articles/360016108153-Como-o-trivago-determina-o-filtro-Sugest%C3%B5es-

[28] TJSP. Juizado Especial Cível, Foro de Campo Limpo Paulista. Proc. n. 0000342-88.2022.8.26.0115 – Juiz Marcel Nai Kai Lee. Julgado em 30/11/2022.

Autores

  • é professora de Direito Internacional e Direito do Consumidor da UFRGS e professora do PPGD/UFU e do PPGRI/UFSM, mestre pela Unisinos. Doutora em Direito Internacional pela UFRGS, com período-sanduíche junto à University of Ottawa, membro da ILA-Brasil e do Brasilcon.

  • é professora adjunta na Universidade Federal Fluminense (UFF - Campus de Macaé), doutora e mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université de Savoie-Mont Blanc/UFRGS, líder do Grupo de Pesquisa CNPq "Vulnerabilidades no Novo Direito Privado” e diretora do Instituto de Direitos Humanos ‘José do Nascimento’.

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