Olavo Bilac, o cronista

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

12 de novembro de 2023, 8h00

É no aliciante livro de Fabio Coutinho, “Crônicas de um leitor apaixonado”, que alcanço um mote e um roteiro para o texto que segue. Fabio enfatiza uma tradição literária que parece nos ser peculiar: a crônica. No excerto “Esse inferno vai acabar” Fabio retoma o legado de Rubem Braga e de tantos outros, começando, naturalmente, por Machado de Assis.

O chamado Bruxo do Cosme Velho (e a referência não pode faltar) parece ser um dos pais fundadores do gênero, inclusive sistematizando-o, na deliciosa “O nascimento da crônica”. Machado não precisa exatamente quando a crônica nascera. Presumia que a crônica surgiu quando duas vizinhas, entre o jantar e a merenda, “sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia”. Falaram do calor, do apetite, das plantações do morador fronteiro, de tudo: “eis a origem da crônica”.

Spacca

Bilac, que estudou um pouco de medicina, talvez influenciado pelo pai, que era médico, e que acompanhou a Guerra do Paraguai, é permanentemente lembrado por seu importante papel na poesia. Por antonomásia, é nosso “príncipe dos poetas”. No cânone é colocado ao lado de Alberto de Oliveira e de Raimundo Correia. É a composição da chamada tríade parnasiana.

Bilac é também lembrado pela obsessão com o serviço militar obrigatório. De fato, não se pode julgar um homem e suas ideias fora de seu tempo. Uma reflexão séria sobre a obra de um autor fundamental não pode ceder ao anacronismo e ao presenteísmo. É o tempo que rege o ato. Bilac notabilizou-se também como cronista. E é esse o tema dos Embargos Culturais desta semana.

Antonio Dias, respeitado professor da FFLCH, da USP, que já coordenou a área de letras da Capes, organizou e disponibilizou as crônicas do cultor da língua nossa (inculta e bela, e a imagem é dele, Bilac), originariamente publicadas na Gazeta de Notícias, no Correio Paulistano, no Estado de S. Paulo, até mesmo na lendária Kosmos. Há também um terceiro volume, com os ensaios de Bilac, o que merece lido e um ensaio à parte. As crônicas transitam de 1880 a 1908. Um panorama inigualável da belle époque brasileira.

Bilac comentou a vida mundana, o teatro, os livros da época, a política, a transição para a República, as dificuldades econômicas das irmãs de Varela (em favor de quem pede subsídio governamental), o positivismo, celebrou Belo Horizonte (o texto é de 1904, com referência à nova capital de Minas), comentou a política internacional, o divórcio, a torre Eiffel (o monstro de ferro, “a satânica invenção da engenharia moderna que maculou em Paris o esplendor da exposição universal de 89”),  o cinema.

Assustou-se com o “Kinetoscópio” e com a mania das invenções, que reputava como uma “ladeira íngreme”; para Bilac, Edison (que chama de o eletricista) havia despencado pela ladeira abaixo e então já não haveria mais meios de “lhe sustar a vertiginosa carreira [da eletricidade]”.

Em “Fim de século” Bilac expunha seus medos com os tempos novos. Vale copiar: “(…) no dia em que se realizar a utopia de Comte, no dia em que se cumprir a profecia do professor de química, no dia em que, tornado inútil o amor, o homem não puder mais prolongar a sua raça pelo único processo delicioso e divino por que ela tem sido prolongada até hoje?..” Assustador, não? Apocalíptico.”

Bilac então transporta a cena para a África. Um país pequeno (onde uma gente pobre e infeliz, ferida de morte, deitada no sol ardente) era destruído pela Inglaterra e pela Alemanha. Apenas a mais forte dessas últimas levaria o despojo. As narrativas se encontram. Uma lição de ciência política extraída da descrição de uma cena trivial, e não menos sanguinária. É ler para conferir.

 Acrescento nesse esforço de compreensão do Bilac cronista o também delicioso romance histórico de Ruy Castro (Bilac vê estrelas). Fábio Coutinho, cujo livro estimula esse ensaio, também parece gostar de romances históricos. É o que faz pensar suas observações sobre Ana Miranda e os trabalhos dessa notável escritora que invocam Augusto dos Anjos (A última quimera), Gonçalves Dias (Dias & Dias), Semíramis (José de Alencar) e Gregório de Matos (também em Musa Praguejadora).

Bilac é diferente, cético, irreverente. Uma figura. Uma lembrança permanente de que há autores brasileiros que falam de nossos dilemas e problemas, de modo atemporal e transcendente, carregados de uma reserva de sentido que qualifica e que justifica a boa leitura. A leitura, teria dito o insuspeito Saramago, é provavelmente uma outra maneira de estar em um lugar. Ao que acrescento, em um outro tempo também.

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