MP 1.182/2023 altera apostas esportivas e não avança na proteção dos consumidores
6 de novembro de 2023, 8h00
A partir de 2018, com a edição da Lei Federal nº 13.756, as apostas esportivas foram disciplinadas no nosso país, atraindo o interesse e a atenção de milhares de brasileiros que, sedentos pelo resultado positivo, destinam parte de seus orçamentos em busca do êxito.
O Decreto-Lei nº 3.688/41, intitulado de Lei das Contravenções Penais, no artigo 50, parágrafo 3º, alínea “c””, vedava quaisquer apostas sobre competições esportivas. Nessa senda, durante setenta e sete anos, não se admitiu a mencionada atividade no Brasil, tendo, inclusive, a Lei n.º 13.155/2015 vedado os jogos de azar pela Internet ou qualquer outro meio de comunicação.
Não obstante, o crescimento da dita modalidade por meio de plataformas estrangeiras [1], que se tornaram acessíveis para qualquer pessoa, conduziu o legislador a optar por a admitir, coadunando-se com a realidade que emergia.

Sucede que, em 24 de julho de 2023, a Medida Provisória nº 11 2 alterou o aludido dispositivo e possibilitou a exploração comercial da atividade mediante concessão, permissão ou autorização por parte do Ministério da Fazenda. Deverá ser expedida regulamentação sobre a outorga onerosa para as pessoas jurídicas que atendam aos critérios estabelecidos.
Importante salientar que somente poderão atuar como agentes operadores das apostas esportivas pessoas jurídicas — e não físicas —, nacionais ou estrangeiras, que estejam devidamente estabelecidas no território nacional e que cumpram os requisitos exigidos. No entanto, o Projeto de Lei nº 3626/2023 tenciona prever a regra de que estas devem ser constituídas segundo a legislação brasileira e possuir sede administrativa no Brasil.
O apostador terá que ser uma pessoa física, nos termos do art. 29-A, inciso II, da multicitada Lei, e dúvidas não pairam acerca da sua qualificação como consumidor, eis que é destinatário final de um produto cultural: as competições esportivas [3]. A vulnerabilidade desses sujeitos é patente, nos termos do artigo 4º, inciso I, da Lei n.º 8.078/90, sobretudo para a maioria da população brasileira, que não dispõe de vultosos recursos financeiros e optam por apostas de menor porte.
Ainda que o apostador venha a investir altas somas, não deixa de estar protegidos pelo microssistema consumerista, posto que vulnerabilidade não se confunde com hipossuficiência e engloba também os aspectos informacional, técnico e jurídico [4]. Não podem ser olvidados os recentes escândalos envolvendo esquemas de manipulações de resultados em partidas de futebol profissional no Brasil, que engendraram a instalação, em 26 de abril de 2023, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cujas atividades foram finalizadas em 26 de setembro do ano em curso.
As operações “Penalidade Máxima” e “Jogada Ensaiada”, iniciadas, respectivamente, em Goiás e Sergipe, detectaram falcatruas que se espraiaram para outras unidades federativas no País [5]. Os apostadores, na condição de consumidores, foram aviltados quanto aos seus direitos de participação de um negócio jurídico ético, caracterizado pelo “fair play”, e tiveram as suas legítimas expectativas frustradas em decorrência da patente fraude.
Apesar de não ter avançado, de forma satisfatória, na proteção dos consumidores, as inovações propiciadas pela MP n.º 1182/2023 podem ser examinadas sob quatro enfoques: 1) restrições quanto aos apostadores; 2) deveres dos agentes operadores; 3) atribuições do Ministério da Fazenda; e 4) destinação dos valores arrecadados. Quanto ao primeiro aspecto, não poderão ingressar no universo das apostas esportivas sujeitos que não possuam capacidade de discernimento dada a sua faixa etária e aqueles que possam se valer de sua condição para antever os resultados.
A legislação veda a participação dos menores de 18 anos, mas o ideal seria adotar as regras da incapacidade insculpidas pelo Código Civil. Ademais, estão coibidos o próprio agente operador e todos aqueles que façam parte da sua estrutura societária e de funcionamento, bem como os que estejam interligados com as competições esportivas e possam exercer influência no seu desfecho.
Do mesmo modo, não se admite a presença dos envolvidos com as atividades fiscalizatórias e os que tenham acesso a sistemas informatizados interligados com a sistemática negocia l[6]. Note-se que os inscritos em cadastros de proteção ao crédito não estão autorizados a realizar as apostas, almejando o legislador evitar agravar, ainda mais, o seu estado de desequilíbrio financeiro. No que concerne aos operadores, devem cumprir obrigações legais de natureza: 1) patrimonial; 2) informacional; 3) estrutural; e 4) publicitária.
Além de terem que arcar com o valor da outorga, devem pagar a taxa de fiscalização e reterão 82% do valor arrecado, destinando o restante para a seguridade social, o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Ministério dos Esportes e o setor educacional. Compete-lhes empreender ações para mitigar a manipulação de resultados e a corrupção, comunicando-as, no prazo de cinco dias, para a autoridade competente. Em caso de suspeita de lavagem de dinheiro, são obrigados a noticiá-la ao Coaf.
As pessoas jurídicas, que obtiverem o aval para atuar na seara, ainda sob a ótica estrutural, devem integrar organismo nacional ou internacional destinado ao monitoramento da integridade esportiva. Devem adrede valer-se de mecanismos de segurança e integridade, incluindo o zelo pelos dados pessoais dos consumidores. Não podem adquirir, licenciar ou financiar a aquisição de direitos sobre a exibição de sons e imagens de eventos esportivos, consoante o artigo 33-A, inserido pela MP em epígrafe.
Quanto à atividade publicitária, determina o artgo 33, caput e parágrafo 1º, que, além de atender à regulamentação do Ministério da Fazenda, necessitam promover ações informativas de conscientização dos apostadores para se prevenir o transtorno do jogo patológico. Previu-se a elaboração de códigos de conduta e de difusão de boas práticas com o desiderato de não ser incentivada a compulsão [7].
Malgrado a Lei n.º 13.756/2018 e a Medida Provisória, que a alterou, não se refiram, de modo expresso, às vedações atinentes ao ato publicitário, constantes no artigo 37, do CDC, estas aplicam-se à divulgação das apostas esportivas. De acordo com o parágrafo 2º do citado artigo 33, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária poderá estabelecer “restrições e diretrizes adicionais à regulamentação do Ministério da Fazenda”, bem como “expedir recomendações específicas para a comunicação, de publicidade e de marketing da loteria de quota fixa”.
Não se desconsidera a relevância da autorregulamentação, mas esta não possui o condão de reduzir o poder de atuação do órgão fiscalizador e este terá que atentar para as premissas do microssistema consumerista — conjunto normativo de ordem pública e interesse social —, que se sobrepõe aos demais [8].
O Ministério da Fazenda foi erigido como o órgão encarregado de tratar das questões que envolvam as apostas esportivas e as suas atribuições podem ser congregadas em três conjuntos: 1) regulatória; 2) fiscalizatória; e 3) sancionatória. O detalhamento das regras referentes ao exercício da atividade, a previsão dos requisitos necessários e a outorga decorrerão de ato deste órgão público. O acompanhamento das atividades pelos agentes operadores e a instauração de procedimento administrativo fazem parte da exclusiva órbita da sua atuação.
As infrações administrativas encontram-se elencadas no artigo 35-C, introduzido pela MP nº 1.182, e aglutinam-se em quatro conjuntos, quais sejam: 1) violação ao obrigatório aval do poder público; 2) publicidade ilícita; 3) embaraços à fiscalização; e 4) atos fraudulentos ou interferências indevidas.
Constituem conduta infracional ofertar apostas esportivas sem a prévia outorga do aparato público, desenvolver atividades em desacordo com o ato de autorização e efetivar divulgações antes da chancela estatal. Óbices e embaraços para a fiscalização, incluindo-se a não disponibilização de dados, informações e/ou documentos, ou o descumprimento de prazos, configuram atos atentatórios.
O cometimento de fraudes ou interferências consistentes em práticas atentatórias à integridade, incerteza, transparência, igualdade entre os competidores, lisura ou higidez dos certames esportivos, são também violações. As sanções aplicáveis podem ser a advertência, a multa, suspensão, proibição de nova autorização e/ou de participar de licitação. Salienta-se que, dentre os fatores que podem agravar a penalidade, o artigo 35-B da Lei nº 13.756/2018 fixou o grau de lesão ou de perigo para a economia, o esporte, os consumidores[9] e terceiros.
Digna de registro é a exígua menção à figura do consumidor na Lei nº 13.756/2018 e na MP nº 1182, restringindo apenas ao quanto, acima, externalizado. A despeito de não pairarem dúvidas sobre a aplicação do microssistema consumerista em prol da tutela dos apostadores, considera-se de inquestionável valia a aprovação do PL nº 3626/2023, para estatuir a sua explícita incidência, primando-se pelo reconhecimento dos direitos básicos assegurados pelo CDC.
As prerrogativas sobre a precisa, clara e ostensiva informação nas apostas esportivas e um serviço de atendimento qualificado desvelam-se de crucial mérito, sobretudo no capitalismo “das plataformas”, como aponta Nick Srnicek [10]. Em regra, dada a comodidade, os indivíduos optam pelas apostas no ambiente virtual, tornando-se essencial a presença de uma firme regulação, segundo Woods e Perrin [11], e uma fiscalização ativa por parte do Ministério da Fazenda, que deverá também se valer de uma atuação integrada e coesa com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
[1] Cf.: PASQUALE, Frank. Platform Neutrality: Enhancing Freedom of Expression in Spheres of Private Power, Theoretical Inquiries in Law, vol. 17, nº 2, p. 487-513, 2016, p. 488.
[2] SCHMITT, Cristiano Heineck. O Estado fornecedor de jogos de apostas. Revista Consultor Jurídico, Coluna Garantias de Consumo, 22 de março de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-22/garantias-consumo-estado-fornecedor-jogos-apostas. Acesso em: 14 set. 2023.
[3] SCHMITT, Cristiano Heineck. Jogos de apostas esportivas online: o caminho da legalidade até a proteção do consumidor. Migalhas Contratuais, 5 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/378018/jogos-de-apostas-esportivas-online. Acesso em: 14 set. 2023.
[4] MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Ricardo Lorenzetti trata também do princípio quanto ao momento em que se manifesta, referindo –se à “vulnerabilidade atual” e “potencial”, bem como levando em consideração a dimensão dos atingidos, apontando a “vulnerabilidade geral (estrutural)” ou “especial (conjuntural)”. LORENZETTI, Ricardo L. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni, 2003, p. 87.
[5] Cf.: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/57a-legislatura/cpi-sobre-manipulacao-de-resultado-em-partidas-de-futebol.
[6] De acordo com ao artigo 35-E, parágrafo 1º, da Lei em análise, as proibições estendem-se aos cônjuges, companheiros e parentes, da linha reta e colateral, até o segundo grau.
[7] Cf.: BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2009. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
[8] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 39-64.
[9] Sobre a proteção dos consumidores, cf.: BOURGOIGNIE, T. Droit de la consommation: un droit rebelle. Revista de Direito do Consumidor, 113, 26, p. 19-27, 2017. PAISANT, G. Défense et illustration du droit de la consommation. Paris: LexisNexis, 2015, p. 7-15; 16-22.
[10] SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2018, p. 39.
[11] WOODS, Lorna; PERRIN, William. Online harm reduction: a statutory duty of care and regulator, abril 2019, p. 5. Disponível em https://www.carnegieuktrust.org.uk/publications/online-harm-reduction-a-statutory-duty-of-care-and-regulator/. Acesso em 03 out. 2023.
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