Ambiente Jurídico

Aspectos do tombamento provisório de bens culturais

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

4 de novembro de 2023, 10h50

O tombamento, enquanto instrumento de estatura constitucional (artigo 216, § 1º, da CF/88) voltado à proteção do patrimônio cultural brasileiro, constitui um processo administrativo do qual decorre restrição concreta, sui generis, ao direito de propriedade e impõe à coisa protegida a qualidade de bem de interesse público, sujeitando-a a um especial regime jurídico no que toca à disponibilidade, à conservação e à fruição.

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A finalidade do tombamento é a conservação da integridade dos bens acerca dos quais haja um interesse público pela proteção em razão de suas características especiais, a exemplo de valores de antiguidade, raridade, monumentalidade, beleza e vínculo com fatos históricos.

No que tange ao objeto, o tombamento pode ser aplicado aos bens móveis e imóveis, públicos ou privados, de interesse cultural ou ambiental, quais sejam: fotografias, livros, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, ruas, praças, cidades, regiões, florestas, cascatas etc.

Quanto aos efeitos do ato protetivo, fala-se em tombamento provisório e tombamento definitivo, considerando que o Decreto-Lei nº 25/37 (norma geral regulamentadora do instituto), assim prevê:

"Art. 10. O tombamento dos bens, a que se refere o art. 6º desta lei, será considerado provisório ou definitivo, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo.

Parágrafo único. Para todas os efeitos, salvo a disposição do art. 13 desta lei, o tombamento provisório se equiparará ao definitivo."

O instituto do tombamento provisório, previsto em norma editada há mais de oitenta e cinco anos, consiste na mais antiga positivação do princípio da prevenção em prol da preservação do patrimônio cultural brasileiro, antecipando, em muito, o surgimento de tal preceito em relação ao meio ambiente natural.

Em razão da infungibilidade e irrepetibilidade ínsitas aos bens culturais, que são singulares e não reproduzíveis, o Direito do Patrimônio Cultural — mais do que o Direito ao Meio Ambiente Natural — tem sua atenção voltada essencialmente para obstar a consumação de danos, valorizando a adoção das medidas de caráter preventivo. A prevenção origina-se, etimologicamente, do verbo praevenire, que significa "chegar antes", enunciando a ideia de que, com ela, evita-se que algo indesejável aconteça, mediante a adoção das medidas de cautela necessárias.

Com efeito, a prevenção de danos ao patrimônio cultural é uma das mais importantes imposições no que tange à matéria sob análise, sendo de se lembrar que nosso legislador constituinte estatuiu que meras ameaças (e não necessariamente danos) ao patrimônio cultural devem ser punidas na forma da lei (artigo 216, § 4º). Ou seja, em termos de patrimônio cultural nosso ordenamento está orientado para uma posição de caráter fundamentalmente preventiva, voltada para o momento anterior à consumação do dano — o do mero risco.

Em tal contexto, o tombamento provisório constitui-se um meio célere e eficaz para impedir a destruição da coisa objeto do processo, uma vez que para todos os efeitos legais ele se equivale ao tombamento definitivo, exceto no que tange à averbação da proteção no registro de imóveis.

Como já decidido pelo TJ-SC, se não existissem os efeitos do tombamento provisório, "bastaria a esperteza de se efetuar desde logo o desfazimento da construção antes do término do processo, hipótese que a moral condena e o direito repele" [1].

Também sobre o tema já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

"PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TOMBAMENTO PROVISÓRIO. EQUIPARAÇÃO AO DEFINITIVO. EFICÁCIA. 1. O ato de tombamento, seja ele provisório ou definitivo, tem por finalidade preservar o bem identificado como de valor cultural, contrapondo-se, inclusive, aos interesses da propriedade privada, não só limitando o exercício dos direitos inerentes ao bem, mas também obrigando o proprietário às medidas necessárias à sua conservação. O tombamento provisório, portanto, possui caráter preventivo e assemelha-se ao definitivo quanto às limitações incidentes sobre a utilização do bem tutelado, nos termos do parágrafo único do art. 10 do Decreto-Lei n. 25/37. 2. O valor cultural pertencente ao bem é anterior ao próprio tombamento. A diferença é que, não existindo qualquer ato do Poder Público formalizando a necessidade de protegê-lo, descaberia responsabilizar o particular pela não conservação do patrimônio. O tombamento provisório, portanto, serve justamente como um reconhecimento público da valoração inerente ao bem. 3. As coisas tombadas não poderão, nos termos do art. 17 do Decreto-Lei n. 25/37, ser destruídas, demolidas ou mutiladas. O descumprimento do aludido preceito legal enseja, via de regra, o dever de restituir a coisa ao status quo ante. Excepcionalmente, sendo manifestamente inviável o restabelecimento do bem ao seu formato original, autoriza-se a conversão da obrigação em perdas e danos. 4. À reforma do aresto recorrido deve seguir-se à devolução dos autos ao Tribunal a quo para que, respeitados os parâmetros jurídicos ora estipulados, prossiga o exame da apelação do IPHAN e aplique o direito consoante o seu convencimento, com a análise das alegações das partes e das provas existentes. 5. Recurso Especial provido em parte." (STJ; REsp 753.534; Proc. 2005/0086165-8; MT; 2ª Turma; rel. min. Castro Meira; Julg. 25/10/2011; DJE 10/11/2011).

Condição essencial para que o tombamento provisório ocorra diz respeito à notificação do proprietário da coisa cuja proteção se pretende, de sorte a ficar demonstrado que a pretensão do poder público quanto à inclusão do bem no rol das coisas protegidas chegou ao conhecimento do titular do direito de propriedade, viabilizando que ele possa exercer o direito ao contraditório e à ampla defesa [2].

A notificação à qual nos aludimos deve se dar, em regra, por meio de comunicação pessoal ao proprietário, por correspondência com aviso de recebimento ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. Na hipótese de se desconhecer o proprietário ou dele se encontrar em local incerto ou não sabido, a notificação pode ser realizada por edital, com publicação oficial. Havendo mais de um proprietário, todos devem ser notificados, conquanto a notificação de um deles já antecipe cautelarmente os efeitos protetivos do tombamento.

Sem que haja a comprovação da notificação, por qualquer modalidade, não há se falar em formalização do tombamento provisório.

Sobre o tema, a I Jornada de Direito do Patrimônio Cultural e Natural promovida pelo Conselho da Justiça Federal (2023), assentou:

"ENUNCIADO 17 – O tombamento provisório − previsto no art. 10 do Decreto-Lei n. 25/1937 − e os efeitos dele decorrentes somente se iniciam com a ciência do titular do domínio ou posse, por notificação formal ou simplificada, ou por outro meio equivalente."

Superada tal formalidade essencial, como já assinalamos, o tombamento provisório se equivale ao definitivo em relação a todos os efeitos protetivos e apenas não autoriza a averbação do ato à margem do registro imobiliário, medida que se dá apenas após a conclusão do processo de tombamento, com a inscrição no respectivo livro do tombo.

No que tange ao dever de preservação, uma vez que o tombamento provisório antecipa os efeitos do tombamento definitivo, o proprietário da coisa tombada provisoriamente tem a obrigação de conservá-la adequadamente, abstendo-se de demoli-la, destruí-la ou mutilá-la [3]. A reparação, restauração ou pintura do bem tombado provisoriamente deve ser previamente autorizada pelo órgão tombador [4].

O tombamento provisório também cria limitação para os bens situados em seu entorno (área de ambiência), não sendo lícito realizar na vizinhança da coisa tombada construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes.

De igual sorte o tombamento provisório qualifica o bem sobre o qual incide seus efeitos como objeto material dos crimes que atentam contra o patrimônio cultural brasileiro. Desta forma, quem destruir, deteriorar ou inutilizar bem tombado provisoriamente estará sujeito, além da responsabilidade civil e administrativa, às sanções penais do artigo 62 da Lei nº 9.605/98. Já quem alterar o aspecto do bem tombado sem autorização do órgão competente fica sujeito às penas previstas no artigo 63 da Lei 9.605/98 [5].

Por derradeiro, o proprietário do bem tombado provisoriamente tem direito à obtenção de benefícios fiscais e financeiros conferidos aos bens tombados em geral, pois os efeitos da tutela cautelar conferida pelo tombamento provisório não se resume às limitações ao direito de propriedade, alcançando também as vantagens de caráter econômico concedidas aos proprietários de bens protegidos, a exemplo da isenção de Imposto Predial Territorial Urbano [6].

 


[1] TJ-SC; AC-MS 2009.044757-3; Jaraguá do Sul; Primeira Câmara de Direito Público; Rel. Des. Vanderlei Romer; DJSC 10/12/2009; p. 239.

[2] Nesse sentido: TOMBAMENTO PROVISÓRIO. BEM IMÓVEL. PROCESSO ADMINISTRATIVO. NOTIFICAÇÃO. 1. O tombamento é ato administrativo privativo da administração pública, que exige a observância do procedimento previsto no Decreto-Lei nº 25/1937 e da respectiva Lei Municipal. Sem a realização de regular processo administrativo de tombamento, a administração pública pode incentivar a conservação de bem imóvel, mas não pode exigi-la. 2. O tombamento provisório que visa a preservar o bem de forma precária e preventiva até o fim do processo administrativo se inicia apenas com a notificação do proprietário para anuir à inscrição no livro de tombo ou impugná-la no prazo legal. Trata-se de formalidade essencial cuja inobservância constitui violação ao contraditório e à ampla defesa. A nulidade, contudo, por falta de tal notificação não impede a realização de novo processo administrativo para decretação do tombamento do imóvel, porquanto tal iniciativa se encontra nos limites da discricionariedade da administração pública. Recurso provido. (TJRS; AC 0138342-59.2015.8.21.7000; Osório; Vigésima Segunda Câmara Cível; Relª Desª Maria Isabel de Azevedo Souza; Julg. 25/06/2015; DJERS 01/07/2015)

[3] Nesse sentido: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TOMBAMENTO PROVISÓRIO. DEMOLIÇÃO DO BEM. VEDAÇÃO. REPARAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CONDENAÇÃO. 1. O tombamento tem por objetivo a preservação de bens de valor histórico, cultural, arquitetônico e ambiental para a coletividade, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados. 2. O tombamento provisório, para todos os efeitos, equipara-se ao definitivo. 3. Os danos ao patrimônio histórico e cultural, enquanto espécies de dano ambiental, ensejam a responsabilização objetiva de seus causadores. (TJ-MG; APCV 0028522-90.2013.8.13.0148; 19ª Câmara Cível; Rel. Des. Carlos Henrique Perpétuo Braga; Julg. 30/03/2023; DJEMG 04/04/2023).

[4] Nesse sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MEDIDA LIMINAR – PARALISAÇÃO DE OBRAS – IMÓVEL LOCALIZADO EM ÁREA TOMBADA PROVISORIAMENTE – AUSÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO IEPHA/MG – "FUMUS BONI IURIS" E "PERICULUM IN MORA" – PRESENÇA – RECURSO PROVIDO. 1. Deve ser restaurada a liminar deferida em favor do Ministério Público Estadual, no sentido de se paralisar as obras “sub judice”, diante da plausibilidade das alegações de que elas, embora realizadas em imóvel tombado provisoriamente, não foram previamente autorizadas pelo Iepha/MG, sendo suscetíveis de descaracterizar o patrimônio histórico e cultural.
2. Recurso provido. (TJ-MG – Agravo de Instrumento Cv 1.0456.12.003073-3/001, Rel. Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto, 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 31/01/2013, publicação da súmula em 14/02/2013).

[5] Nesse sentido: TRF 3ª R.; ACr 0004592-32.2012.4.03.6181; Primeira Turma; Rel. Des. Fed. Hélio Nogueira; Julg. 20/05/2016; DEJF 23/05/2016.

[6] Nesse sentido: EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. TOMBAMENTO PROVISÓRIO. ISENÇÃO DE IPTU. EFEITOS INCIDENTES SOBRE O IMÓVEL. IDÊNTICOS ÁQUELES OCASIONADOS PELO TOMBAMENTO DEFINITIVO. AUSENCIA DE DIFERENCIAÇÃO LEGAL. DIREITO RECONHECIDO. DECRETO MUNICIPAL. EXIGÊNCIA DE REQUERIMENTO ANUAL PARA FRUIÇÃO DA ISENÇÃO CONCEDIDA POR LEI. IMPOSSIBILIDADE. BENEFÍCIO CONCEDIDO POR LEI. CARÁTER COMPENSATÓRIO. RECURSO PROVIDO. Tendo em vista que o tombamento provisório e o tombamento definitivo produzem os mesmo efeitos sobre o imóvel, não prevendo a Lei nº 5.839/90 qualquer diferenciação entre tais situações, deve ser reconhecido, em ambas, o direito à isenção do IPTU. A isenção de IPTU incidente sobre imóveis tombados apresenta- se como um benefício concedido ao particular em decorrência de ônus imposto pelo Poder Público sobre imóvel de sua propriedade, a bem do interesse público. Desta feita, tratando-se o tombamento de ato que pretende a conservação de imóveis que possuem importância para a sociedade, ao Poder Público deve ser imposto o dever de fiscalização, constituindo excesso a imposição ao particular de "prestar contas" acerca de tal imóvel com vistas à manutenção de benefício concedido com caráter compensatório. (TJ-MG; APCV 1.0024.12.165655-7/001; rel. des. Alyrio Ramos; Julg. 29/01/2015; DJEMG 09/02/2015)

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