Licitações e Contratos

A habilitação na licitação internacional, segundo a Lei 14.133/21

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

3 de novembro de 2023, 20h29

No novo regime legal de contratações públicas do Brasil, quais são os requisitos de habilitação a serem atendidos, especialmente, pelas empresas estrangeiras?

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1 – A lista geral de requisitos e a isonomia com ressalvas
Considerando a isonomia e a igualdade de tratamento entre licitantes, decorrentes do artigo 37, caput e inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, em tese, os licitantes estrangeiros devem atender a todos os requisitos de habilitação dos artigos 62 a 70 da Lei nº 14.133/21, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ou seja, atentar para a qualificação jurídica, técnica, fiscal, social e trabalhista e a econômico-financeira, como os brasileiros.

Entretanto, na prática, isso não se torna viável, literalmente, em razão da diversidade de normas dos mais diversos países, decorrente da soberania de cada um, concluindo-se que não se pode inabilitar licitante estrangeiro que apresente documentos equivalentes ou nem tenha um certo documento ou outro equivalente no seu país de origem.

Por isso são necessárias ressalvas, visando evitar restrição indevida aos estrangeiros, até porque o artigo 9º, inciso II, da mesma lei possui a proibição de se estabelecer "tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamento, mesmo quando envolvido financiamento de agência internacional".

2 – Os documentos equivalentes
Feitas as considerações do contexto acima, cabe lembrar que no artigo 70, parágrafo único, da Lei nº 14.133/21 consta a regra de que "as empresas estrangeiras que não funcionem no País deverão apresentar documentos equivalentes, na forma de regulamento emitido pelo Poder Executivo federal".

Com máxima vênia, a parte final dessa norma sequer deveria existir, porque cria uma burocracia e uma dependência de regulamento desnecessário, uma vez que, por dezenas de anos seguidos, muitas e muitas licitações internacionais vem sendo realizadas, para os mais diversos objetos, com participação de licitantes de muitos países, sendo evidente que documentos equivalentes são aqueles que, embora não tenham a mesma forma dos documentos brasileiros, possuem elementos capazes de atender à mesma finalidade pretendida.

Alguns exemplos podem ser enumerados:

1) enquanto no Brasil as empresas possuem CNPJ, inscrição estadual ou distrital ou municipal, a depender do caso, em outros países existe somente um número fiscal, um mesmo "Tax ID", para todas as esferas;

2) enquanto no Brasil existe o termo legal "atestado" de capacidade técnica, em outros países se tem termos como "qualification testimonial" ou "past performance", ou seja, comprovando a expertise da empresa em contratações públicas anteriores (em áreas estratégicas, de segurança e de defesa nacional, entre outras, a atestação técnica pode se tornar mais complexa);

3) enquanto no Brasil se tem a certidão negativa de falência em todas as unidades de federação, em vários países, mesmo havendo tribunais de falência, não se tem a emissão do documento com essas características mas, eventualmente, pode haver algum formulário de busca física ou "online" de "records", ou seja, de registros de casos de falência (comentários sobre esse tema constam, novamente, mais adiante), mencionando resultado negativo para esses processos; e

4) demonstrações contábeis ou "financial statements" podem até ser similares em seus critérios de organização de contas, por exemplo, de balanços, mas com certas características diversas, pois em alguns países não se tem o contador assinando tais documentos, mas os próprios sócios da empresa fazendo isso, bem como, em certos países a data de fechamento e de apresentação não irá coincidir com o que se tem no Brasil.

3 – A inexistência de documentos equivalentes
Agora cabe ponderar que em muitas situações será absolutamente impossível obter até mesmo documentos considerados equivalentes, como se tem nesses exemplos:

1) enquanto no Brasil se tem a certidão do Cadastro Nacional de Condenações Cíveis por Ato de Improbidade Administrativa e Inelegibilidade, em muitos países, inclusive com regras até mais rígidas que as brasileiras, como aquelas da disciplina de questões de integridade e anticorrupção, o mesmo tipo de documento, simplesmente, não existe (nem algo aproximado);

2) enquanto no Brasil se tem aquela Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas, emitida no site do Tribunal Superior do Trabalho, em muitos países sequer existe a Justiça do Trabalho como se conhece aqui, em ramo judiciário distinto, sendo impossível conseguir o mesmo documento ou algo similar; e

3) voltando ao exemplo da certidão negativa de falência, que já foi comentada no tópico anterior, a depender do país, o documento sequer similar será possível de ser obtido, pois não existe.

A solução nesses e em outros casos será a inclusão, no edital de licitação, de um anexo específico para que o procurador, representante legal da licitante estrangeira no Brasil, assine a declaração da impossibilidade de atendimento de requisitos com documento similar, fazendo informar em algumas linhas específicas, que ficam reservadas para seu preenchimento, quais documentos inexistem em similares no país de origem daquele licitante.

4 – A questão das diligências
Deve-se lembrar que, em casos de dúvidas pelo agente de contratação, seja ou não provocado por outros concorrentes na licitação pública, o processo deve ser suspenso para diligências de confirmação ou esclarecimento, em relação a determinado documento apontado como similar ou em relação à declaração de inexistência de documento similar no outro país.

5 – A questão das formalidades sobre os documentos
Até o regime da Lei nº 8.666/93, pelo qual se tinha a consularização no país de origem, ou apostilamento, quando fosse o caso (Decreto nº 8.660/2016), mais a tradução juramentada, no Brasil, muitos licitantes ficavam inviabilizados de participar dos certames ou até desistiam, pelo tempo curto e a despesa significativa.

Entretanto, o Decreto nº 10.024/2019, estabeleceu em seu artigo 41 que, quando permitida a participação de "empresas estrangeiras na licitação, as exigências de habilitação serão atendidas mediante documentos equivalentes, inicialmente apresentados com tradução livre", sendo de se notar que o parágrafo único deixou nas formalidades de consularização ou apostilamento e a tradução juramentada apenas para o vencedor e quando do momento de assinatura de ata de registro de preços ou contrato.

Isso foi uma revolução extraordinária no número de pregões internacionais, sendo que, a partir daquela solução, não mais se passou admitir pregões presenciais internacionais e mesmo estados e municípios, que utilizavam sistemas limitados passaram a realizar seus pregões fora daqueles sistemas e passaram a destacar as licitações internacionais para o compras.gov.br, até pelo Sicaf de estrangeiros, liberado em 2020.

Por fim, a Lei nº 14.133/21, a nova Lei de Licitações e Contratos, sequer faz mais menção a consularização ou apostilamento e nem tradução juramentada, havendo nessa lei apenas breve menção a tradução, para documentos de atestação técnica, isso no artigo 67, § 4º, mas isso sem o termo "juramentada".

A solução, agora, para conciliar a segurança jurídica para o ente público e demais interessados, dentro do meio termo que não prejudique os objetivos da licitação, é continuar com a muito consagrada prática de exigir para a licitação apenas documentos com tradução inicialmente livre, então, formalizados com consularização ou apostilamento, e mais tradução juramentada, apenas para assinatura de ata de registro de preços e/ou assinatura de contrato.

Nesse particular, note-se que o artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que se considere as consequências práticas da decisão a ser tomada, sendo que, para o assunto em questão, ninguém mais quer admitir os limitados processos de concorrências ou -pregões internacionais com pouquíssimos competidores, por serem presenciais.

Ante a nova lei, ainda mais, se tornou inadmissível sustentar licitação internacional "presencial", com toda a antiga burocracia documental, sendo que, se a nova lei não mais estabelece isso e já existem registros cadastrais de estrangeiros (ou até se aceita acesso via CPF do procurador), não há qualquer "desculpa" para continuar no passado. Prova disso está na quantidade de pregões internacionais no Painel de Fornecedores Nacionais e Internacionais, Federal, mas com diversos entes estaduais em plena utilização para seus processos. Assim, algo presencial hoje é ilícito, por demais, até porque não há faculdade de se perder dinheiro público. Agora, apenas eletrônico.

6 – Conclusão
Diante dos pontos aqui tratados, tem-se que a habilitação de licitantes estrangeiros nas licitações internacionais não deve ser complicada, mas apenas compreendida em suas particularidades legais e operacionais.

Autores

  • é advogado especialista em licitações e contratos, pós-graduado em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e sócio do escritório Jonas Lima Sociedade de Advocacia.

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