Senso Incomum

Ainda a questão dos robôs no Direito: o "case" ChatGPT

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2 de novembro de 2023, 8h00

Outro dia lancei aqui na ConJur minha preocupação com a possibilidade de a promessa de implementar nos tribunais um ChatGPT, feita pelo ministro Barroso, vir a ser cumprida.

Spacca
Não sou contra a tecnologia. Não quero fazer ode ao lápis ou ao giz para escrever na lousa. E nem ressuscitar o ábaco. O que me preocupa é o encantamento pela tecnologia. Se a modernidade desencantou o mundo, agora estamos tentando fazer um rencantamento. Queremos de volta a "tranquilidade" do mito do dado da pré-modernidade. Não queremos qualquer tipo de angústia. Instalamos fábricas de próteses para pensamentos. E tomamos psicotrópicos epistêmicos. Desejamos todas as respostas antes de as perguntas serem feitas.

E não apostamos em nós mesmos. Não nos importamos de ser substituídos por robôs. O problema de usar ChatGPT em decisões judiciais é que, se der certo, dará errado. Porque chegaremos à conclusão que perdemos para as máquinas, como aqui já falei também.

E essa onda robotizante, essa algocracia, essa nova religião chamada inteligência artificial vem junto com o "paradigma da simplificação". Ou a simplificação seria produto dessa "nova religião"?

Estou elaborando um livro sobre o ensino jurídico e sua crise. A obra será um chamamento aos estudantes e professores de direito: não superaremos a crise do ensino jurídico e do direito sem que aprofundemos as pesquisas. Se não trabalharmos duro.

E esse trabalho não se faz simplificando e usando (ou produzindo) resumos e desenhamentos. Não. Coisas como legal design e visual law não salvarão ninguém da ignorância.

Temos de "virar a chave". A comunidade jurídica foi se acostumando com a estandardização. Naturalizamos o "homem comum do direito". Achamos normal esse "império da simplicidade", no qual, como lembra muito bem Julián Fuks, autor, entre outros, de Histórias de Literatura e Cegueira e Procura do Romance:

"eliminar palavras virou um gesto literário por excelência. E assim vamos formando uma geração de escritores infensos ao dicionário, contrários à linguagem; e uma geração de leitores que só buscam histórias fortes narradas limpidamente. Ao escritor cabe sobretudo o medo. Deve temer os termos longos e abstratos, cada um passível de se tornar um peso morto sobre a página, a assombrar os leitores também assustados.
Deve temer as palavras incomuns, as estranhas, as grandiloquentes, as antigas, maculadas pela poeira dos séculos. Deve temer o olhar dos críticos, encarados como fiscais da clareza, e fugir de seu juízo terminante de pretensão excessiva, de vaidade ou pedantismo. Ao escritor cabe a dieta da língua: ingerir apenas palavras magras e nutritivas, que não suscitem qualquer risco de resultarem indigestas aos estômagos sensíveis."

Alio-me a Julián. Da trincheira do direito, defendo também a complexidade, a multiplicidade, a máxima riqueza de sentidos. Também como ele, talvez de forma um tanto quixotesca. A literatura viceja no choque interno entre as palavras, atinge seu efeito com muito mais potência ali onde desponta a ambiguidade, onde alguma obscuridade se relampeja.  Num mundo já tão comprometido com a eficácia, não será em submissão às normas da clareza que ela cumprirá sua vocação, não será se fazendo obediente e ordeira.

A charge que meu leitor Carlos Portugal me mandou resume um pouco isso. Vejam:

Reprodução
                     

Como no poema Espumas Flutuantes, de Castro Alves:

Livros à mancheia! E manda o povo pensar. O livro, caindo n'alma, é gérmen, que faz a palma, é chuva, que faz o mar.

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