Opinião

NLLC: credenciamento de artistas e uniformização de singularidades

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

2 de novembro de 2023, 9h23

Já tivemos a oportunidade de escrever sobre o tema da "singularidade múltipla" que é o credenciamento.

Assim nos manifestamos[1]:

"A inexigibilidade, corriqueiramente, decorre da singularidade do objeto e do contratado. Na hipótese de credenciamento a circunstância como um todo é que apresenta singularidade e não o objeto ou o licitante.

Aliás, paradoxalmente, a ausência de singularidade é tão profundamente acentuada que o somatório de objetos comuns é uma singularidade somada ou singularidade múltipla.

O objeto do credenciamento apresenta dimensão singular que comporta licitantes múltiplos para a satisfação do interesse público.

Daí a nomenclatura sugerida por nós: "singularidade múltipla", ou "singularidade circunstancial"."

A hipótese que pretendemos debater é distinta: trata-se da "uniformização de singularidades" ou contratação de toda uma singularidade de determinado segmento.

No caso, a singularidade de um setor artístico pode ser destacada pela administração pública de maneira a autorizar a contratação potencial de todo o bloco de singularidades.

A nova lei de licitações previu o instituto no artigo 79 da referida lei. Assim:

"Art. 79. O credenciamento poderá ser usado nas seguintes hipóteses de contratação:
I – paralela e não excludente: caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas;
II – com seleção a critério de terceiros: caso em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação;
III – em mercados fluidos: caso em que a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação inviabiliza a seleção de agente por meio de processo de licitação."

As hipóteses legais podem ser resumidas em uma frase: respeito ao princípio da isonomia sem que haja necessidade de licitação. Ou, replicando Marçal, "inexigibilidade anômala" de licitação.

Por conta de tal peculiaridade é que Marçal Justen Filho [2] confere a denominação de "anômala" à inexigibilidade existente no credenciamento.

Assim:

“(…)
11) Uma manifestação anômala de objeto comum
Não é despropositado afirmar que o credenciamento pode ser adotado em hipóteses de objeto comum, destituído de peculiaridades, em condições similares ao que se passa no caso do pregão. A distinção reside em que não é cabível um procedimento licitatório específico, em virtude de uma anômala inviabilidade de competição.” (grifos iniciais do autor e finais nossos)."

O exemplo pedagógico escolhido por Marçal Justen Filho [3] é colhido na jurisprudência do TCU e refere-se à hipótese de médicos:

"Jurisprudência anterior do TCU
‘O credenciamento pode ser utilizado para a contratação de profissionais de saúde, tanto para atuarem em unidades públicas de saúde quanto em seus próprios consultórios e clínicas, quando se verifica a inviabilidade de competição para preenchimento das vagas, bem como quando a demanda pelos serviços é superior à oferta e é possível a contratação de todos os interessados, devendo a distribuição dos serviços entre os interessados se dar de forma objetiva e impessoal’
(acórdão 352/2016, Plenário Min. Benjamin Zymler)." ( grifos iniciais nossos e finais nossos).

O Blog da Zenite [4] dá outro exemplo de credenciamento: as passagens aéreas. Assim:

"Inclusive, a Instrução Normativa nº 3 de 11 de fevereiro de 2015 da SLTI do MPOG (recém saída do forno) trouxe o credenciamento como ferramenta para ‘habilitação das empresas de transporte aéreo, visando à aquisição direta de passagens pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal."

Merece destaque o fato de que passagens aéreas têm característica de circunstância com multiplicidade singular no âmbito federal, mas não necessariamente terá tal característica na hipótese de um pequeno município. Talvez nessa última hipótese a dispensa de licitação tenha melhor adequação.

A definição do mesmo blog já citado corrobora a característica de singularidade múltipla. Assim:

"O credenciamento é sistema por meio do qual a Administração Pública convoca todos os interessados em prestar serviços ou fornecer bens, para que, preenchendo os requisitos necessários, credenciem-se junto ao órgão ou entidade para executar o objeto quando convocados." (grifos no original).

Alguns procedimentos devem ser feitos pela administração pública de maneira a garantir a efetiva isonomia no caso do credenciamento: chamamento público e cadastramento permanente; distribuição por critérios objetivos quando não for possível a distribuição a todos e não for possível a contratação simultânea.

Pensamos que a contratação de artistas pode, perfeitamente, se enquadrar no credenciamento. Especificamente na hipótese do artigo 79, I do códex licitatório.

Assim:

"Art. 79. O credenciamento poderá ser usado nas seguintes hipóteses de contratação:
I – paralela e não excludente: caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas;"

Corriqueiramente imaginamos a inexigibilidade propriamente dita quando se menciona a contratação de artista. Aliás, é o exemplo clássico de inexigibilidade por inviabilidade de competição e impossibilidade de comparação entre artistas.

Ocorre, porém, que a singularidade entre artistas pode não ser o critério de seleção dos contratados. A Administração Pública tem a prerrogativa de escolher o critério desde que se observe a isonomia.

Pensemos na vida real.

Se uma cidade resolve fazer uma "virada cultural" contratando, digamos, cantores de MPB.

Nessa hipótese, nada impediria que se abrisse um credenciamento pelo preço médio de mercado do cachê cantores de MPB, estabelecendo-se requisitos de habilitação como tempo mínimo de profissão,  número mínimo de inserções em rádios ou em streaming, etc.

Hipoteticamente, pensemos que o critério seria o suficiente para ser preenchido, por exemplo, por Marisa Monte, Chico Buarque, Maria Rita, dentre outros.

Nesse caso, deve a administração estabelecer um período de tempo do show, valor do cachê, tendo uma estimativa do número de artistas que poderiam se credenciar.

Não podemos nos esquecer que o objetivo central da licitação é o respeito ao princípio da isonomia.

Se no exemplo dado todos os cantores de MPB puderem se encaixar na regra e no cachê médio, satisfeito estará o princípio da isonomia e presente a "singularidade uniformizada" exigida para o credenciamento.

Note-se que tal tipo de inexigibilidade exige planejamento do gestor público pois, se houver credenciamento de artistas em número superior ao orçamento do órgão público, duas alternativas surgem ao Poder Público: não contratar ninguém ou estabelecer uma alternância de contratações. Seria possível, por exemplo, que o evento seguinte vedasse a participação daqueles que participaram do evento anterior de maneira a garantir a isonomia até que todos os credenciados fossem contratados em algum momento.

O credenciamento promete ser uma modalidade de inexigibilidade largamente utilizada já que, substancialmente, aplica o princípio da isonomia com maior intensidade do que a licitação tradicional que seleciona um único vencedor em detrimento de inúmeros licitante de elevada qualificação.

______________________

[1] "Inovações da nova lei de licitações", 2ª edição, ed. Dialética, cap.14.1, págs 87 a 89.

[2] "Comentários à lei de licitações e contratações administrativas", Editora RT, Edição 2.021, página 1.130.

[3]"Comentários à lei de licitações e contratações administrativas", Editora RT, Edição 2.021, página 1.133/1.134.

[4] https://www.zenite.blog.br/afinal-o-que-e-credenciamento/

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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