Interesse Público

Tema 1.199 não restringe retroatividade só na improbidade culposa (parte 2)

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2 de novembro de 2023, 8h00

A Lei 14.230/21 imprimiu diversas alterações na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), apresentando-se, no cenário jurídico nacional, como uma tentativa de "retorno do pêndulo". Quem nunca licitou, contratou ou ordenou despesas na administração pública talvez não se sinta tocado pela necessidade da mudança. Por outro lado, quem conhece as agruras de tomar decisões difíceis na administração pública, muitas vezes com repercussões financeiras de alto relevo, ou mesmo quem se depara com posicionamentos jurisprudenciais mais arraigados, aposta fichas nas alterações legislativas, reivindicando maior segurança jurídica para a tomada de decisão pública.

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Com efeito, tratar meras irregularidades e ilegalidades, destituídas do intuito voluntário e mal são dos agentes públicos (e privados), como condutas típicas previstas nos artigos 10 e 11 da LIA, amplia por demais o conceito de improbidade administrativa, aumentando o risco da pecha indevida por decisões involuntárias e destituídas de finalidades ilícitas, com todos os seus consectários [1].

É certo que após a edição da Lei 14.230/21, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento, em sistema de repercussão geral, do ARE 843.989, ministro Alexandre de Moraes (Tema 1.199) temperou alguns efeitos esperados das alterações da nova lei, particularmente quanto: (a) ao reconhecimento da constitucionalidade da exclusão da modalidade culposa de improbidade administrativa (artigo 10 da LIA, redação original); (b) à aplicação retroativa mitigada da abolitio maleficium (alcançando apenas os processos em curso e excluindo as decisões que estivessem marcadas com o trânsito em julgado); (c) à irretroatividade do prazo de prescrição geral ou intercorrente (divisando a aplicação da prescrição geral de uma e outra lei, balizada pela data da ocorrência do fato, e determinando a contagem da segunda a partir do dia 25/10/2021).  

Na primeira parte deste ensaio, publicada em 10/8/2023, procurei demonstrar que o STF não circunscreveu a aplicação retroativa mitigada da Lei 14.230/21 aos casos em que se imputava aos réus o cometimento de atos de improbidade administrativa na modalidade culposa.

Outras matérias, compatíveis com a ratio decidindi do Tema 1.199, também reclamavam o reconhecimento da aplicação das regras mais benéficas da Lei 14.230/21, o que não raro teria o condão de produzir a atipicidade superveniente das imputações constantes de ações de improbidade administrativa em curso.

Aliás, em decisões monocráticas proferidas pelos eminentes ministros Gilmar Mendes e André Mendonça, já depois da edição do Tema 1199, o STF reconheceu que se devem aplicar as regras da Lei 14.230/21 aos processos em curso, conforme se passa a destacar.  

No julgamento do Ag. Reg. no RE 1.346.594 (j. 25/05/2023), o ministro Gilmar Mendes, admitiu que a alteração do artigo 11 da LIA, com a exclusão da expressão "notadamente" do caput, tornou o rol de conduta dos incisos taxativo. Esse fechamento produziu a impossibilidade de capitulação das condutas apenas no caput do dispositivo, como também a atipicidade superveniente de fatos pretéritos que ali encontravam o alicerce da acusação. Consignou sua excelência:

"[3]. As alterações promovidas pela Lei 14.231/2021 ao art. 11 da Lei 8.249/1992 aplicam-se aos atos de improbidade administrativa praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado.

4. Tendo em vista que (i) a imputação promovida pelo autor da demanda, a exemplo da capitulação promovida pelo Tribunal de origem, restringiu-se a subsumir a conduta imputada aos réus exclusivamente ao disposto no caput do art. 11 da Lei 8.429/1992 e que (ii) as condutas praticadas pelos réus, nos estritos termos em que descritas no arresto impugnado, não guardam correspondência com qualquer das hipóteses previstas na atual redação dos incisos do art. 11 da Lei 8.429/1992, imperiosa a reforma do acórdão recorrido para julgar improcedente a pretensão autoral.
5. Recurso extraordinário com agravo conhecido e provido para reformar o acórdão recorrido e julgar improcedente a ação civil pública de responsabilidade por ato de improbidade administrativa".

Na segunda oportunidade, o eminente ministro André Mendonça do STF, ao relatar o RE 1.452.808/SC (j. 28/8/2023), considerou que a ausência de imputação de dolo específico, e a inexistência de comprovação do dano efetivo ao erário, ensejavam a superveniente improcedência da acusação de processo em curso. Destaca-se a seguinte passagem do voto:

"No presente recurso extraordinário, o recorrente aponta violados os arts. 5º, inc. XL, e 37, § 4º, da Constituição da República. Discorre sobre a impossibilidade de aplicação retroativa da Lei nº 14.230, de 2021, a qual alterou a redação da Lei nº 8.429, de1992. Sustenta que a retroatividade benéfica é instituto do Direito Penal que não pode ser estendido à Lei de Improbidade Administrativa, considerada a natureza “do regime jurídico próprio do Direito Administrativo, cujos alicerces constitucionais exigem a tutela da probidade da Administração Pública, a fim de assegurar a integridade do seu patrimônio”. Requer o provimento do recurso, a fim de ser restabelecida a sentença condenatória (e-doc. 25).

(…)

Ao contrário do alegado no recurso extraordinário, o Colegiado de origem decidiu em harmonia com a jurisprudência do Supremo, na forma acima transcrita, considerado o entendimento do Plenário desta Corte no julgamento do Tema RG nº 1.199, no sentido de aplicar a Lei nº 14.230, de 2021, aos processos de conhecimento em curso, ante a ausência de comprovação de dolo e de prejuízo à Administração Pública".

Como se vê, as decisões dos eminentes ministros reconheceram que o Tema 1.199 do STF não circunscreveu a aplicação das disposições da Lei 14.230/21 aos processos de improbidade administrativa em curso, cuja discussão se encontra centrada apenas na capitulação de comportamentos culposos no artigo 10 da LIA. A ratio decidindi do ARE 843.989, ministro Alexandre de Moraes diz mais: a tese vencedora no julgamento, a da retroatividade mitigada da Lei 14.230/21, traz consequências absolutórias mais amplificadas do que isso.

 


[1] Tratei da diferença entre ilegalidade e improbidade administrativa bastante antes da Lei 14.230/21, aqui na

ConJur. Ver FERRAZ, Luciano. Entre os conceitos de ilegalidade e improbidade administrativa, disponível em https://www.conjur.com.br/2016-jul-07/interesse-publico-entre-conceitos-ilegalidade-improbidade-administrativa. Acesso em 1/11/2023.

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