Opinião

Outorga do serviço de transporte mediante autorização e o "fretamento colaborativo"

Autores

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

  • Rafael da Silva Alvim

    é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília especialista em Direito Administrativo pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

30 de março de 2023, 18h27

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Está formada, no âmbito do Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal), maioria de votos no sentido da constitucionalidade de alterações legislativas que permitiram a outorga do transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros por meio de simples autorização — portanto, sem a necessidade de prévio procedimento licitatório. Trata-se das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 5.549 e 6.270, ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pela Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros (Anatrip).

De acordo com notícia publicada no próprio sítio eletrônico do STF [1], o entendimento do relator das ADIs, ministro Luiz Fux, é de que "uma interpretação sistêmica da Constituição admite a autorização do serviço sem o processo licitatório, mediante o respeito aos princípios da administração pública (…)", tendo observado, ainda, que a atual legislação sobre a matéria "estabelece, em substituição à licitação, a realização de processo seletivo público com previsão de critérios como capital social mínimo, comprovação de requisitos relacionados à acessibilidade, segurança, capacidade técnica, operacional e financeira".

Considerando o cenário que se desenha, a partir dos votos já proferidos pela maioria dos ministros integrantes do Supremo, é relevante que se esclareça que a discussão em curso na Corte Suprema não se refere ou aproveita a uma outra, que também vem ganhando os holofotes do noticiário especializado, referente ao chamado "fretamento colaborativo", modelo proposto por plataformas eletrônicas de intermediação (aplicativos) como a Buser, por exemplo.

Em primeiro lugar, cabe frisar que a discussão ora havida no Supremo se refere à possibilidade de que a administração pública outorgue a particulares a prestação do serviço público de transporte terrestre interestadual e internacional de passageiros mediante autorização, como decorre da redação do artigo 21, XII, "e", da Constituição. Importante salientar, assim, que o debate se cinge às modalidades possíveis de outorga de serviço público titularizado pela União, em que apenas a exploração pode ser delegada a agentes particulares.

Noutra perspectiva, a discussão atinente ao fretamento se encerra nos domínios do Direito Privado, na medida em que se trata de atividade econômica em sentido estrito, franqueada a agentes econômicos que cumpram determinadas condições estabelecidas pelo poder público — e a serem por ele verificadas —, e que o exploram no contexto do regime jurídico de direito privado, no qual prevalecem a liberdade de iniciativa, a busca do lucro, a livre oferta e a livre competição entre os particulares.

A ressalva feita pelo ministro Luiz Fux, mencionada linhas acima — no sentido de que devem ser respeitados os princípios da administração pública —, torna ainda mais claro que a discussão não tem relação com o caso do fretamento.

É interessante esclarecer, a propósito, que a própria Lei Federal nº 10.233/2001 traz em seu bojo duas formas de autorização: a autorização da prestação regular de serviços de transporte (serviço público, objeto das ADIs — artigo 13, V, "e") e autorização da prestação não regular (serviço privado — artigo 13, V, "a"), ambos sujeitos a regimes jurídicos distintos, como acima se afirmou.

Em segundo lugar, há que se ressaltar que as controvérsias que pairam sobre o modelo denominado "colaborativo" da atividade econômica de fretamento são completamente diversas daquelas submetidas à apreciação do Plenário da Corte Suprema por ocasião do julgamento das ADIs 5.549 e 6.270. Lembre-se que o "fretamento colaborativo", a pretexto de intermediar viagens de autorizatárias do serviço de fretamento eventual, na prática, acaba por prestar serviço com todas as características do transporte regular.

Noutros termos, o "fretamento colaborativo" vale-se da retórica da inovação e da disrupção para explorar o transporte coletivo particular em moldes idênticos aos do serviço público, mas sem os mesmos ônus regulatórios suportados pelas concessionárias (como as gratuidades, por exemplo).

As ditas plataformas de intermediação do fretamento operam sempre em conjunto com as empresas que, de fato, detêm a autorização do poder público para explorar a atividade (muito embora, ao atuarem nos moldes propostos pela Buser e congêneres, tais empresas extrapolem manifestamente os limites das autorizações que lhes foram conferidas pela administração pública). Portanto, a autorização outorgada aos fretadores não é a mesma autorização para a prestação do serviço público de transporte coletivo, ora em discussão no STF.

Em terceiro lugar, a prestação do serviço de fretamento (transporte privado) pressupõe o atendimento a certos requisitos previstos em normas federais e estaduais sobre o tema, não aplicáveis ao serviço público de transporte regular de passageiros. Cabe apontar, por exemplo, que tanto o Decreto Federal 2.521/1998 (em seu artigo 3º, XI) quanto a Resolução ANTT nº 4.777/2015 (em seu artigo 31) determinam que o fretamento deve observar o requisito do circuito fechado, no qual um mesmo grupo de passageiros, com motivação comum, realiza os trajetos de ida e volta. A possibilidade — admitida pelo STF — de que o serviço público de transporte regular de passageiros seja outorgado mediante autorização em nada flexibiliza ou mitiga os requisitos que as normas específicas incidentes sobre o fretamento impõem aos seus prestadores.

Portanto, ao contrário do que vem sendo noticiado, o entendimento majoritário do Plenário do STF nem de longe é no sentido de "permitir o serviço de transporte coletivo terrestre de passageiros sem necessidade de licitação prévia, conforme oferecido por empresas como a Buser" [2]. Isso porque, conforme se buscou demonstrar, a discussão jurídica acerca do modelo proposto pela Buser e congêneres tem contornos muito distintos — e ainda não examinados pelo Supremo — da discussão acerca da possibilidade de prestação do serviço regular de transporte terrestre mediante autorização.

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