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Projeto de Lei nº 2.486/22: a importância da arbitragem em matéria tributária

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

29 de março de 2023, 8h00

A matéria tributária sob discussão é tão ampla e relevante que muitas inciativas, às vezes, passam despercebidas ou não têm o seu devido valor reconhecido. Há muitos anos diversos estudiosos do Direito Tributário e o próprio poder público buscam caminhos para mitigar o sempre crescente número de disputas nos tribunais, sejam administrativos, sejam judiciais, entre o Fisco, em todas as suas esferas, e os contribuintes. Já o dissemos, o atual movimento com o objetivo de reduzir a litigiosidade opera, apenas, após a criação do contencioso e nunca com a finalidade de evitar/diminuir a imposição de autos de infração.

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Com o objetivo de extinguir o crédito tributário, portanto contencioso já instalado, o Código Tributário Nacional (CTN) contempla, em seu artigo 171, a possibilidade de a lei facultar aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, ponha termo ao litígio e, assim, extinga o crédito tributário. A despeito de sua evidente utilidade, esse instituto só foi regulado, para fins federais, pela Lei nº 13.988/20, que estabelece os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária. As condições desse negócio jurídico vêm, todas, amplamente tratadas no âmbito dessa norma, cabendo à União julgar da oportunidade e conveniência de sua celebração, considerando o interesse público.

Tendo esse mesmo viés, a partir do ano de 2000, as Fazendas federal, estadual e municipal vêm incentivando os contribuintes a liquidarem seus passivos mediante a adoção de programas de financiamento de débitos que incluem redução de juros e de multas. Em geral, esses programas implicam a confissão e o pagamento do valor integral dos tributos, acrescido dos juros de mora e de multas, porém com substanciais reduções, sendo este fator o grande atrativo desse mecanismo de liquidação de tais passivos. Popularmente conhecidos por Refis (Programas de Recuperação Fiscal) têm o objetivo de facilitar a regularização e renegociação de dívidas tributárias de pessoas jurídicas ou físicas. Esses programas têm duas funções que os tornam atraentes para devedores e credores e que merecem ser enfatizadas: (1) o benefício que se concede ao contribuinte, que permite reduzir substancialmente seu passivo e (2) o notório incremento de caixa dos entes tributantes com os ingressos correspondentes.

É certo que há, a nosso ver, um lado perverso nessa modalidade de negociação, o Refis, pois os contribuintes, em situação de normalidade, são fortemente pressionados a cumprir suas obrigações tributárias inclusive por conta das elevadas multas que lhe podem ser impostas pela inobservância da lei, multas essas que, muitas vezes, são discutidas junto ao Poder Judiciário, que as considera como não razoáveis. Dessa forma, quando um programa dessa natureza, o Refis, joga por terra os encargos cobrados, naturalmente os contribuintes se perguntam se devem observar a lei ou, descumprindo-a, aguardar um parcelamento. De toda sorte, o Refis sempre se inseriu na categoria de transação com o poder público, estando, portanto, abarcado no artigo 171, do CTN e legislação que o regulou.

Na busca de soluções para reduzir o contencioso tributário foi apresentado no Senado o Projeto de Lei (PL) nº 2.486/22, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que dispõe sobre a arbitragem em matéria tributária e aduaneira, um dos frutos do relatório final da comissão de juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que "dinamizem, unifiquem e modernizem o processo administrativo e tributário nacional, instituída pelo ato conjunto dos presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal nº 1/2022". Infelizmente, diante da discussão da reforma tributária e de novas propostas de transações introduzidas pela Medida Provisória nº 1.160/23, reguladas pela Instrução Normativa nº 2130/23, da Secretaria da Receita Federal, Programa Litígio Zero, e designadas como autorregularização, não se chegou, sequer, a debater ou comentar com mais força a proposição contemplada no PL 2.486/22.

Inicia-se dizendo que o conteúdo do PL 2.486 não se confunde com qualquer programa Refis, informando a sua exposição de motivos que a arbitragem é um método heterocompositivo de solução de conflitos, ou seja, trata-se de procedimento mediante o qual as partes recorrem a um terceiro, que não as representa e tampouco atua como seu conselheiro/assessor, para decidir a lide. A arbitragem em matéria de direito privado é procedimento consolidado no país, introduzida com a edição da Lei nº 9.307/96 que dela trata com vistas a dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, inclusive aplicável, desde a Lei nº 13.129/15, à administração pública direta e indireta. A partir da Lei nº 9.307/96, os centros de arbitragem se multiplicaram no país e bilhões de reais em contratos de direito privado foram resolvidos em prazos infinitamente menores do que aqueles que o Poder Judiciário leva para dirimir controvérsias, expandindo-se hoje, cada vez mais, na área da administração pública [1].

Um dos pontos mais relevantes do procedimento arbitral é que a Lei nº 9.307/96 não permite que a decisão exarada na arbitragem seja levada para revisão pelo Poder Judiciário, como depreende de seu artigo 31 o qual dispõe que a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. Com isso os usuários da arbitragem ganharam celeridade na solução de seus conflitos, pois eles não se submetem a recursos, seja de que natureza for, próprios do processo judicial.

O PL nº 2.486/22 busca, exatamente, trazer a possibilidade de uso da arbitragem com a finalidade de agilizar o processo decisório e desonerar o Fisco e os contribuintes das perdas decorrentes da demora na solução de conflitos, desde que seja do interesse das partes. Nesse contexto, a exposição de motivos aponta dois relevantes objetivos do projeto: prevenir litígios e, subsidiariamente, resolver conflitos já instaurados no contencioso administrativo e jurisdicional e com isso reduzir o tempo de solução de suas controvérsias, o que interessa ao sujeito passivo e à administração pública. Na primeira hipótese, prevenir litígios, a arbitragem em matéria tributária atingirá as mesmas finalidades da arbitragem em matéria de direito privado, afastando a demora na obtenção de uma solução. Na segunda hipótese, resolver conflitos já instaurados, a arbitragem poderá ocorrer em qualquer fase da existência do crédito público, ou seja, desde a ciência do auto de infração até a sua judicialização, não havendo restrição, por ora, para tanto.

Convém ressaltar que a justificação do projeto de lei dá a entender que se trata de norma de caráter nacional, e não federal, pois se manifesta em seu item 2 no sentido de que a fim de alcançar os objetivos propostos, o Anteprojeto de Lei Ordinária de Arbitragem, regulará esse instituto nos três níveis da federação.

Valendo-se, subsidiariamente, da Lei nº 9.307/96, o PL nº 2.846 reitera a competência do árbitro e a força decisória da sentença, que se aplica a todos os entes públicos de direito interno, dispondo em seu artigo 1°, §1°, que a sentença proferida em arbitragem sobre matéria tributária não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. Observe-se, porém, que nem todos os temas tributários podem ser levados a arbitragem, dispondo o artigo 2° do PL nº 2.486/22 que a Fazenda Pública estabelecerá, por ato próprio, o rol de hipóteses gerais em relação às quais se poderá optar pelo uso da arbitragem tributária ou aduaneira.

Por fim, de acordo com o artigo 3º, a decisão administrativa pela aceitação do procedimento de arbitragem é a etapa preliminar à pactuação de compromisso arbitral e será proferida pela autoridade máxima do órgão responsável pela administração do crédito, de acordo com regulamentação por ato próprio, observados os requisitos legais bem como os elementos de fato e de direito que evidenciam a subsunção do caso concreto ao rol de controvérsias admitidas pelo poder público à arbitragem.

É relevante destacar que à arbitragem em matéria tributária aplicam-se regras específicas muito diversas da arbitragem tradicional em matéria de direito privado. Assim, sob o PL nº 2486/22, artigo 4°, os seguintes aspectos se contrapõem à arbitragem contemplada na Lei nº 9.307/96: (1) vedada a arbitragem por equidade; (2) obrigatória observância do ordenamento jurídico brasileiro, no que tange às normas de direito material que fundamentam a decisão arbitral; (3) obrigatório que o processo de arbitragem se efetive no Brasil e em língua portuguesa; (4) obrigatória publicidade das informações sobre o processo de arbitragem, exceto segredo industrial/comercial e outras por lei; (5) uso da arbitragem institucional (centros/câmaras credenciados junto ao Poder Público), preferencialmente, e não ad hoc; (6) vedada arbitragem de controvérsia envolvendo a constitucionalidade de normas ou discussão sobre lei em tese; (7) vedada a prolação de sentença arbitral cujos efeitos prospectivos resultem, direta ou indiretamente, em regime especial, diferenciado ou individual de tributação.

O PL nº 2.486/22, trata, em seu artigo 8°, dos princípios e prazos do procedimento arbitral. Com isso fica definido que o procedimento arbitral observará os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade dos árbitros e de seu livre convencimento. O prazo máximo para a apresentação da sentença arbitral, contado da data de celebração do compromisso arbitral, é de 12 meses, sem dúvida, um extraordinário ganho para os contribuintes e para o poder público, considerando-se a média de duração dos processos administrativos e judiciais que, em âmbito federal, é muito superior à recomendada internacionalmente (90 dias). O processo administrativo dura em torno de dois anos e sete meses nas Delegacias da Receita Federal, quatro anos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e sobe para nove anos na execução fiscal, a cargo da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional [2]. No que se refere ao Poder Judiciário, esse prazo médio pode chegar, entre o ingresso do processo e o primeiro julgamento, a até 559 dias, de acordo com a Comissão Nacional de Justiça [3].

No que tange aos árbitros, o artigo 2° dispõe em seu inciso V que cada ente envolvido estabelecerá as regras para escolha, indicação e impugnação do árbitro, ou dos árbitros, inclusive os casos em que a ausência de acordo entre as partes dará causa à frustração do procedimento. Os critérios de credenciamento e indicação das câmaras devem observar, pelo menos, que o árbitro esteja no gozo de plena capacidade civil, detenha conhecimento compatível com a natureza do litígio e não tenha relação com as partes ou com o litígio que lhe for submetido, de tal sorte a caracterizar hipóteses de impedimento ou suspeição de juízes, na forma do Código de Processo Civil, bem como outras situações de conflito de interesses previstas em lei ou reconhecidas em diretrizes internacionalmente aceitas ou, ainda, nas regras da instituição arbitral escolhida (artigo 11). A exigência de conhecimento compatível, certamente, é importante aceno para as partes, permitindo-lhes desfrutar de maior segurança quanto à matéria sob discussão.

Por fim, a atuação como árbitro em matéria tributária e aduaneira é considerada exercício de função pública para os fins do artigo 327 do Código Penal. Os entes públicos, de acordo com o artigo 13, serão representados perante o juízo arbitral conforme as competências constitucionais e legais dos seus órgãos de advocacia pública.

A sentença arbitral observará as determinações do artigo 15, do PL nº 2.486/22, de forma bastante similar às sentenças emanadas do Poder Judiciário, sob pena de nulidade. A sentença arbitral proferida com qualquer um dos vícios indicados no artigo 20 pode ser anulada pelo Poder Judiciário, sendo essa a única hipótese de recurso ao Judiciário prevista nesta norma. A sentença arbitral submete-se ao mesmo regime jurídico de cessação de eficácia da coisa julgada aplicável à sentença judicial, nos termos do decidido nos RE 955.227 (Tema 885) e RE 949.297 (Tema 881). Por fim, a interpretação da legislação tributária prestigiada na sentença arbitral se enquadra no disposto no artigo 146 do CTN, ou seja, somente pode ser efetivada quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

Não resta dúvidas de que a arbitragem pode representar um imenso ganho em matéria de decisões de natureza tributária, desobstruindo o Poder Judiciário e trazendo alívio aos contribuintes. Convém destacar que, nos últimos tempos, muitos contribuintes entendem que por desfrutarem de um bom direito, não lhes convêm ingressar em programas do tipo Refis, sendo certo que quando tais programas logram êxito reduzindo os litígios, isso se dá, em última análise, às custas de renúncia fiscal mesmo quando o bom direito está do lado da Fazenda Pública, o que não ocorre quando a resolução se dá por meio de arbitragem, desqualificada como renúncia fiscal pelo próprio PL (artigo 24).

Assim, o PL 2.486/22 é extremamente oportuno e deve ser por todos, operadores do Direito e contribuintes, prestigiado, visto que representa ganhos estratégicos de tempo e de recursos, reduzindo a movimentação do poder público. Sua prioridade não está sendo por nós aqui definida, pois já o foi pela citada Comissão de Juristas, e concretizada pelo Senado no PL aqui analisado.

Por tudo o que se viu, urge que essa iniciativa do Senado seja examinada e aprovado pelas Casas Legislativas, pois este será o primeiro passo em busca de uma efetiva redução de custos, em todos os sentidos, do contencioso tributário.

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  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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