Território Aduaneiro

"Modernização" da aduana: lições a partir do balanço da Receita de 2022

Autores

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

  • Raquel Segalla Reis

    é mestranda em Direito (Universidade Católica de Brasília) especialista em Direito da Aduana e do Comércio Exterior (Univali) em Direito Aduaneiro da União Europeia (Universidade de Valência) presidente da Comissão de Direito Aduaneiro Marítimo e Portuário da OAB Subseção de Itajaí e advogada.

28 de março de 2023, 8h00

O desenho de nossas vidas, assim como a chama de uma vela, é continuamente conduzido em novas direções por diversos eventos aleatórios que, juntamente com nossas reações a eles, determinam nosso destino. Como resultado, a vida é, ao mesmo tempo, difícil de prever e difícil de interpretar [1]. Feita, entretanto, de inafastáveis escolhas, somos instados o tempo todo a empregar processos mentais que nos auxiliem na tomada de decisões, no seio de uma vida e sociedade permeadas por incertezas e riscos.

Spacca
Para além da física e da psicologia comportamental, risco e aleatoriedade são tematizados na coluna de hoje em razão do Balanço Aduaneiro 2022 [2], divulgado pela Receita Federal em fevereiro. Trata-se de documento anual que apresenta as principais realizações da aduana brasileira para o período. As informações estão organizadas de acordo com os principais temas aduaneiros, dentre eles o gerenciamento de riscos, eleito nesta oportunidade para análise.

Dentro deste tema, há diversos indicadores do relatório que merecem aprofundamento, sendo aqui, contudo, destacados apenas três deles: a classificação daquilo que a aduana brasileira entende por risco; as técnicas de fiscalização adotadas para o gerenciamento desses riscos, e os objetivos por ela perseguidos ao promover o controle aduaneiro do comércio exterior.

Com relação às técnicas de fiscalização, a RFB indica que o método comumente usado para medir conformidade consiste na seleção aleatória de declarações de importação, as quais acabam sendo submetidas a conferência física das mercadorias no curso do despacho. Para a RFB consideram-se conformes — ou de menor risco — as importações que não tiveram retificações com incremento arrecadatório maior do que R$ 500, nem aplicação da pena de perdimento.

Entretanto, a RFB, há pelo menos oito anos vem fazendo uso de algoritmos e de inteligência artificial (IA) — dentre eles o machine learning [3] — nas atividades de fiscalização aduaneira. A implementação do Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizagem de Máquina (Sisam) fez da aduana brasileira um grande exemplo para o mundo em termos de modernização tecnológica. Por meio do uso de algoritmos e de aprendizado por tentativa e erro, o sistema analisa o histórico de declarações de importação registradas no Siscomex, objetivando ajudar a instituição a reduzir o percentual de mercadorias verificadas no despacho aduaneiro de importação — quer pelo aumento da precisão das seleções, quer ajudando os auditores fiscais a decidir quais delas serão selecionadas, ou ainda, decidindo automaticamente no seu lugar [4].

Trata-se, como sabido, de um novo paradigma de controle presente nas agendas de todas as aduanas (ditas) modernas, que amparadas no uso de robusto ferramental tecnológico procuram equilibrar o exercício de suas funções de intervenção e facilitação do comércio — o que costumeiramente nos referimos como as funções da aduana do século 21.

No entanto, como dito em outra oportunidade [5], os benefícios alcançados pelo uso dessa técnica dependem da discussão sobre os "riscos de gerenciar riscos" por meio de IA. A tarefa de (tentar) reduzir comportamentos, performance e potencial humanos a algoritmos pode ser perigosa, pois além de dependerem de uma adequada seleção de dados para alimentar esses modelos matemáticos, demandam feedback de qualidade a fim de evitar que a máquina continue fazendo análises danosas, sem nunca aprender com os seus próprios erros.

Além disso, como os parâmetros do sistema não são transparentes — ou pelo menos explicáveis —, o que se verifica é uma absoluta incerteza na forma como a seleção aduaneira automatizada está configurada, o que pode ser danoso não apenas para os administrados, ao ficarem presos num looping eterno de fiscalizações, mas também para a aduana, que acaba igualmente refém da opacidade algorítmica ao buscar aumentar sua eficiência, fenômeno conhecido como black box.

Apesar de o Balanço Aduaneiro 2022 ter referido o uso de tecnologia para mapeamento de riscos em tempo real, em nenhum momento esclarece o seu modus operandi, tampouco quais são as suas métricas, oportunidade valiosa — e perdida! — para tornar cognoscível não apenas como a RFB vem gerenciando seus riscos, mas especialmente para tornar público o que considera risco.

Muito embora a abordagem baseada no risco esteja amparada numa lógica claramente utilitarista, que aqui sequer dispomos de espaço suficiente para criticar — bastando mencionar, por ora, que a motivação gira em torno do trinômio: "escolhas racionais", "melhores resultados de fiscalização" e "menores recursos disponíveis" — é preciso entender no que e para que está sendo concentrado todo esse esforço fiscalizatório.

Dito de outro modo: se a definição de risco pode ser resumida ao "efeito da incerteza sobre o alcance de um objetivo" [6], é preciso investigar quais são os objetivos ou os resultados esperados pela RFB, ao promover o controle aduaneiro na importação.

Não se sabe se por distração ou contrição, o Balanço Aduaneiro 2022 nos dá algumas pistas.

O parágrafo inicial da seção sobre Gerenciamento de Riscos trata da conformidade como "o indicador que tenta expressar a real missão da Aduana: o exercício do controle aduaneiro, com aderência máxima dos intervenientes às normas de comércio exterior". Nesse sentido, o relatório ainda destaca que "as ações de gerenciamento de riscos (GR) vinham sendo estruturadas para coibir ilícitos aduaneiros de maior gravidade, que, usualmente, envolviam fraudes".

Não obstante tais diretrizes — as quais vinham igualmente sendo reforçadas nas publicações dos anos anteriores —, o que se verifica é que os resultados de 2022 indicam a permanência de uma atuação fiscalizatória focada em arrecadação. Isso se releva no trecho destacado abaixo:

"O que se viu em 2022 foi o aumento do esforço da seleção (mais seleções sendo proporcionalmente realizadas pelas equipes de GR), porém sem o foco na atuação estruturada com vista ao combate de ilícitos aduaneiros de maior gravidade.

Esse maior esforço de seleção acabou se refletindo no incremento da arrecadação gerada pela seleção em sede de despacho. Mas, por outro lado, acabou por reduzir a eficácia da seleção e, principalmente, por diminuir as ações de fiscalização de combate à fraude em zona primária, o que se refletiu, em última instância, na abrupta redução dos valores de apreensão em 2022. […] Ou seja, globalmente se recolheu mais porque a quantidade selecionada aumentou, mas a efetividade da seleção por DI diminuiu e houve prejuízo às ações mais complexas/estruturadas de combate à fraude, reduzindo o volume de apreensões" [7].

O texto acima revela certa preocupação da aduana com os resultados de 2022 e os rumos da fiscalização, o que deveria servir de estímulo para uma mudança de postura e incremento de ações que visem fortalecer o real objeto do controle aduaneiro: garantir que interesses nacionais como saúde pública, segurança, meio ambiente, entre outros, sejam devidamente preservados e respeitados.

Independente da preocupação registrada, é preciso lembrar que a legislação que rege a gestão de risco e o controle aduaneiro no Brasil é altamente atrelada a interesses fazendários e arrecadatórios. Isso se verifica pelos próprios elementos essenciais previstos na IN SRF nº 1.759/2017, em que de nove critérios taxativamente previstos para gerenciamento de risco, quatro possuem claro intuito tributário — são eles: regularidade fiscal, valor da mercadoria, valor dos impostos incidentes na importação e tratamento tributário.

Mas ainda mais alarmante que o texto da norma são as métricas do sistema de gerenciamento de risco operado por machine learning. Sua configuração está diretamente relacionada ao volume tributário envolvido nas operações de importação, sendo um dos preponderantes fatores para a seleção aduaneira no despacho de importação. E ainda que se defenda que a expectativa de retorno (arrecadação) seja mesmo um dos legítimos critérios de controle aduaneiro e de gestão de risco, a expectativa de perda nunca o será.

É que o Sisam também foi concebido para reconhecer situações em que uma reclassificação fiscal de mercadorias acabe apurando diferenças tributárias favoráveis aos contribuintes. Nesses casos, o sistema dá ao auditor fiscal ampla liberdade de tomar ou não providencias para corrigi-la. Ou seja, a inteligência artificial como que silencia diante do inequívoco dever de repetir o indébito.

Nesse sentido, nos parece que, muito mais do que um ano atípico, os resultados de 2022 refletem a existência de incongruências e contradições na própria forma como a gestão de risco é pensada e exercida no Brasil.

Isto nos leva a um segundo ponto do relatório: a classificação de risco adotada pela RFB para reger o controle de importação. Como se verifica pela explicação trazida no Balanço Aduaneiro 2022, na metodologia adotada todos os importadores são classificados de acordo com o seu grau de risco, o que irá nortear as decisões da aduana sobre alvos, momentos e formas de fiscalização.

Segundo a publicação, a classificação foi desenvolvida com base nos critérios da OCDE, contidos na famosa "pirâmide de conformidade" [8]. Todavia, ao comparar a versão brasileira com a original, vemos que várias premissas relevantes foram afastadas ou distorcidas. A começar pelos comportamentos incentivados.

Enquanto a OCDE traz, na base da pirâmide, como principal foco o comportamento de "conformidade" por parte do importador e, como resposta, propõe uma postura de facilitação por parte da fiscalização, a RFB, em sua versão, traz como foco o Programa OEA, sendo esta a única possibilidade para que o importador seja classificado verdadeiramente como "conforme".

Outra diferença estrutural reside no meio da pirâmide, que trata dos casos em que se tem importadores que tentam, mas nem sempre apresentam a conformidade desejada. Enquanto a OCDE sugere à fiscalização condutas cooperativas e educativas para auxiliarem esse tipo de importador a cumprir com as normas aduaneiras, na versão da RFB a resposta a essa situação é a malha — o que se mostra uma postura tendente à penalização/arrecadação e não traz consigo nenhum viés cooperativo.

Por fim, no topo da pirâmide, embora a adaptação brasileira faça crer que fraudes sejam o principal objetivo perseguido pela aduana, com dissuasão até o desembaraço, o sistema que gerencia essa lógica (Sisam) está primordialmente configurado para capturar erros como o de classificação fiscal, dando prioridade, em verdade, a irregularidades que incrementem a arrecadação e que justifiquem financeiramente o esforço fiscalizatório.

A título de conhecimento, apresenta-se abaixo as duas pirâmides em questão, de forma a permitir uma melhor visualização de suas diferenças:

Reprodução

Ainda que existam outras questões a serem aprofundadas sobre a forma como a gestão de risco vem sendo realizada no Brasil, os breves apontamentos sobre o Balanço Aduaneiro 2022 aqui apresentados nos permitem lançar algumas provocações.

A primeira é: afinal, o que é uma aduana moderna? Seriam apenas as suas técnicas de fiscalização e o seu moderno ferramental tecnológico, ou o espírito e os valores da instituição?

Ainda que existam muitas respostas para esta questão, um bom ponto de partida talvez seja o Framework da Aduana do Século 21 estabelecido pela OMA, no qual indica como algumas das metas estratégicas a busca por integridade e transparência, a tomada de decisões orientada por dados, a identificação e alocação dos intervenientes com base em risco e o aprofundamento das relações cooperativas entre aduana e setor privado [9]. Tais pilares relevam a necessidade de uso tecnológico e de ferramentas adequadas, mas ainda sim dependem de uma Aduana forte e dedicada ao controle aduaneiro e com objetivos claros e adequados por trás de sua atuação. Nesse sentido, o questionamento que fica é: quais são esses objetivos e se eles guardam identidade com os bens jurídicos que as Aduanas do Século XXI por conceito, deveriam tutelar.

 


[1] MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso determina as nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

[2] Recomenda-se a leitura da íntegra do Balanço Aduaneiro 2022.

[3] Machine Learning é o processo baseado em tentativa e erro que vai gerando a catalogação de resultados (logs) e tornando os algoritmos mais preparados para a solução de problemas, na medida em que a continuidade das tentativas os "treina" para serem melhores na apresentação de resultados. FALEIROS JÚNIOR, J. L. de M. A evolução da inteligência artificial em breve retrospectiva. In: BARBOSA, et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 21.

[4] JAMBEIRO FILHO, Jorge Eduardo de Schoucair. Inteligência Artificial no Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizado de Máquina. Prêmio de Inovação e Criatividade da RFB. 14ª Prêmio RFB – 2015. Coletânea de Monografias Premiadas ESAF. Disponível em: <https://repositorio.enap.gov.br> Acesso 24 mar 2023.

[5] REIS, Raquel Segalla. Inteligência artificial e segurança jurídica no controle aduaneiro: reflexões a partir da análise do Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizado de Máquina (Sisam). in PEREIRA, Cláudio; REIS, Raquel Segalla (coord.). Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 331.

[6] Definição trazida pela NBR ISO 31.000, norma utilizada pela RFB como diretriz para o Programa OEA.

[7] RFB. Balanço Aduaneiro 2022. p.31.

[8] OCDE. Compliance Risk Management: Managing and Improving Tax Compliance. 2004. Disponível em <https://www.oecd.org/tax/administration/33818656.pdf>. Acesso 24 mar 2023.

[9] WCO. CUSTOMS IN THE 21ST CENTURY – Enhancing Growth and Development through Trade Facilitation and Border Security. 2008. Disponível em <https://www.wcoomd.org/>. Acesso 26 mar 2023.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

  • é mestranda em Direito (Universidade Católica de Brasília), especialista em Direito da Aduana e do Comércio Exterior (Univali), em Direito Aduaneiro da União Europeia (Universidade de Valência), presidente da Comissão de Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário da OAB Subseção de Itajaí e advogada.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!