Instrumento de política criminal: por um acordo de ANPP até o trânsito em julgado
27 de março de 2023, 20h50
Origem e natureza jurídica do Acordo de Não Persecução Penal
O acordo de não persecução penal (ANPP), instituto de justiça penal negociada, foi inserido na prática forense brasileira por meio do artigo 18 da Resolução nº 181/2017, editada pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), e, posteriormente, inserido no artigo 28-A do CPP, com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19.
Referido instituto alia-se a outros instrumentos de direito penal negocial (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de colaboração premiada) com o escopo de reduzir a sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário (e por consequência, a morosidade na prestação jurisdicional), a superlotação das unidades prisionais e servir como ferramenta para viabilizar que o sistema de justiça criminal se ocupe das infrações penais que causem, efetivamente, maior potencial ofensivo à sociedade.
Comungamos do entendimento de que o acordo de não persecução penal tem natureza mista de norma processual e penal (já que seu cumprimento configura causa extintiva de punibilidade), devendo ser aplicado imediatamente aos processos em curso, independentemente se já houve ou não o recebimento da denúncia (tema que será analisado de forma pormenorizada em tópico ulterior deste artigo).
Justamente por deter forte conteúdo material, incide a regra da lex mitior, devendo o artigo 28-A do CPP retroagir para beneficiar o investigado/acusado, mesmo que o delito tenha sido supostamente praticado antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19.
Dissertando sobre o tema, Aury Lopes Jr. preceitua que "(…) essa seria uma norma mista, com prevalentes caracteres penais (…) que retroagem para beneficiar o réu. Portanto, pode ser aplicado aos processos nascidos antes da vigência da Lei 13.964 (…)" [1].
Sustentamos, ainda, que o acordo ora examinado constitui instituto de justiça restaurativa, que não se preocupa apenas — na vertente da prevenção especial negativa — com a punição do suposto autor do delito (justiça retributiva), mas, também, com a reparação dos danos causados à vítima.
Abre-se um verdadeiro espaço de diálogo em um processo penal até então cristalizado e emoldurado com limites instransponíveis, no qual ocorre a valorização da vítima e a preocupação em aplicar uma responsabilização ao agente que possa reverter em prol da sociedade (como ocorre, por exemplo, com a doação de bens a Conselhos Tutelares e a órgãos incumbidos da persecução penal).
Essa ampliação da possibilidade de consenso no processo penal é tendência internacional, tal como pode ser constatado nas Convenções de Palermo e de Mérida, promulgadas, respectivamente, pelos Decretos de nºs 5.015/2004 e 5.687/2006.
E é importante frisar que, diferente do plea bargaining norte-americano (instrumento do common law — em que há negociação ilimitada acerca da quantidade de pena sem que haja processo instaurado – instituto que constava na proposta inicial do denominado "Pacote Anticrime", acertadamente rejeitada pelo Congresso Nacional), o ANPP tem seus limites claramente regulados no artigo 28-A do CPP e destina-se, essencialmente, aos crimes de médio potencial ofensivo, não havendo, pois, que se cogitar de rebaixamento de standard probatório para aplicação de pena privativa de liberdade, que continua demandando a instauração de processo penal e produção de prova em contraditório.
Direito Penal não resolve tudo; uma luz no fim do túnel
Conforme consta do Relatório Justiça em Números do CNJ de 2021, "ingressaram no Poder Judiciário, no ano de 2020, 1,9 milhão de casos novos criminais, sendo 1,2 milhão (63,2%) na fase de conhecimento de primeiro grau (…)" [2].
Extrai-se, ainda, do citado documento que "a Justiça Estadual é o segmento com maior representatividade de litígios no Poder Judiciário, com 65,6% da demanda, na área criminal essa representatividade aumenta para 91,1%".
É preciso ter em mente que o direito penal não resolve todos os problemas da sociedade; pelo contrário, se mal utilizado, ele pode se tornar mais um dos males que assola o meio social.
A diferença entre o remédio e o veneno está na dose.
Isso pode ser percebido pelo grau de ineficiência na apuração dos delitos no Brasil. Em nosso país, segundo dados do instituto Sou da Paz, mais da metade dos homicídios cometidos permanece sem solução [3].
E isso se deve, segundo nosso entendimento, 1) em razão do investimento insuficiente em órgãos de segurança pública (principalmente, no setor de inteligência) e 2) pela falta de uma política criminal (pensada de forma nacional, organizada e integrada) que dispense especial atenção aos delitos mais graves e dotados de grau de complexidade mais elevado.
Ou seja, no Brasil criminaliza-se tudo, apura-se (ou se diz apurar) tudo, mas, ao final, não se pune o que, efetivamente, deve ser punido.
E assim, prende-se demais (e mal), sobrecarrega-se um sistema prisional que convive há décadas com um estado de coisas inconstitucional (reconhecido, inclusive, pelo STF [4]) e não se preocupa, efetivamente, com a ressocialização dos internos, que, via de regra, voltam ao convívio social marginalizados quando do término do cumprimento da pena, aptos a retomar, infelizmente, o ciclo vicioso.
Dissertando sobre o tema, Alejandro César Rayo Werlang prescreve que [5]:
"(…) sem poder enfrentar problemas sociais e econômicos, o ente estatal faz uso do sistema repressivo-penal a fim de legitimar a sua novel ideologia. O menos estado social é compensado com mais Estado penal. (…)
Em última análise, a política criminal dos últimos anos, como pretensa forma de resolver problemas de ordem social, bem como para diminuir a criminalidade crescente, tem-se concentrado tão-somente na expansão do Direito Penal."
O Direito Penal, então, torna-se uma bandeira demagógica a favor de determinados discursos de ocasião; voltados não a promover a segurança pública da sociedade, mas, sim, a dar rápidas respostas vazias aos reais problemas enfrentados pelo país na área criminal, procrastinando-se (diria até, evitando-se) a adoção de soluções que sejam, de fato, eficientes.
ANPP e processos em curso: a persecução penal ainda respira
Fixada a premissa de que o artigo 28-A do CPP detém natureza jurídica de normal penal mista, não há razão para recursar-se a incidência desse dispositivo até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, fato que irá, inexoravelmente, contribuir para o aprimoramento da prestação jurisdicional, reduzir a sobrecarga do sistema penitenciário e viabilizar que as instituições do sistema de justiça que atuam na área penal ocupem-se dos reais problemas que assolam o país em sede de política criminal.
O acordo é de não persecução penal e a persecução só termina com o trânsito em julgado da sentença condenatória e o respectivo início de cumprimento de pena. Mais clara que essa constatação, talvez só a luz solar.
Tratando do cenário relativo ao termo final de cabimento do ANPP, tem-se que, atualmente, ambas as Turmas de Direito Penal do STJ têm entendimento firmado no sentido de que o referido acordo pode ser oferecido aos processos instaurados antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, mas desde que não tenha ocorrido o recebimento da denúncia. Confira-se: AgRg no REsp nº 2.025.469/SP, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe de 16/3/2023; AgRg no REsp nº 2.035.799/SP, relator ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, DJe de 22/2/2023.
A posição do STJ retrata o entendimento de que o ANPP esgota-se na etapa pré-processual, revelando-se incompatível, com o propósito do instituto, admitir-se a proposta do citado acordo quando encerrada a prestação jurisdicional nas instâncias ordinárias.
Verifica-se, ainda, que a Terceira Seção da Corte Cidadã, nos autos do REsp nº 1.890.343, afetou a questão ao rito dos recursos especiais repetitivos (Tema nº 1.098), delimitando a controvérsia com a seguinte redação: "(im)possibilidade de acordo de não persecução penal posteriormente ao recebimento da denúncia". A matéria está pendente de julgamento.
No mesmo sentido, é a posição adotada pela Primeira Turma do Pretório Excelso: ARE 1.374.064 AgR, relator ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 21/06/2022; ARE 1.367.838 AgR, relator ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 16/05/2022.
Soma-se a esse entendimento firmado pelo STJ e pela 1ª Turma do STF, a tese dos que defendem ser descabida a proposta de ANPP quando já proferida sentença condenatória, sob o argumento de que a confissão do acusado, nesses casos, não traria mais nenhum benefício à persecução penal.
Sobre o tema, Rodrigo Leite Cabral aduz que "uma vez já tendo sido proferida sentença (condenatória), o acusado não poderia mais colaborar com o Ministério Público com a sua confissão, que é, como já visto, um importante trunfo político-criminal para a celebração do acordo" [6].
Ocorre que tal tese desconsidera a real natureza de barganha do referido acordo, que denota a ausência de carga probatória da confissão nele formalizada.
Aliás, nesse sentido, Aury Lopes Jr. preceitua que, em caso de rescisão do acordo, a confissão "não poderá ser utilizada contra o réu, devendo ser desentranhada e proibida de ser valorada" [7].
E foi justamente com esse entendimento que o ministro Gilmar Mendes prolatou voto nos autos do HC nº 185.913 [8]:
"(…) não se pode, em nenhuma hipótese, afirmar que o ANPP, ao estabelecer uma obrigatoriedade de confissão circunstanciada, tenha por finalidade a busca dessa confissão como prova ao processo. (…)
Diante disso, é inadmissível sustentar que a confissão realizada como requisito ao ANPP poderia ser utilizada para fundamentar eventual condenação se houver o descumprimento do acordo."
Verifica-se, portanto, que a confissão, formalizada nos autos do ANPP, busca tão-somente evitar a denúncia, não detendo carga probatória em eventual processo instaurado em face do acusado.
Feitas essas considerações acerca da natureza da confissão firmada no ANPP e demonstrado o entendimento do STJ e da 1ª Turma do STF acerca do termo ad quem para oferecimento do acordo, passamos a expor as razões pelas quais sustentamos que o acordo de não persecução penal é cabível até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Partindo do pressuposto de que o artigo 28-A do CPP constitui norma de natureza mista, resta afastado o disposto no artigo 2º do Código de Processo Penal, sendo, de rigor, a incidência do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal e o cabimento da proposta até o trânsito em julgado da sentença.
Nessa toada, Alexandre Morais da Rosa assevera que "considerando a lógica negocial do instituto pautado no consenso e na autonomia privada das partes, Ministério Público e defesa possuem o direito de negociar um acordo mesmo em uma ação penal já instaurada, com denúncia oferecida e recebida, caso seja essa a sua vontade" [9].
No mesmo diapasão, Aury Lopes Jr. enuncia que o ANPP "pode ser aplicado aos processos nascidos antes da vigência da Lei nº 13.964 e pode ser oferecido até o trânsito em julgado" [10].
É preciso ter em mente que "a lei não contém palavras inúteis" e que "onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir" (princípios basilares de hermenêutica jurídica), razão pela qual, em nosso entendimento, a corrente que sustenta que o ANPP somente pode ser oferecido até o recebimento da denúncia não encontra suporte legal (no artigo 28-A do CPP), tampouco subsídio em uma interpretação sistemática do processo penal, analisado à luz da Constituição (artigo 5°, XL e LXXVIII).
Conforme retromencionado neste artigo, o instituto ora examinado representa mais uma ferramenta à disposição da justiça penal negociada e apresenta correlação direta com a opção de política criminal que deve ser adotada pelo nosso país.
Pode ser muito mais benéfico à sociedade e eficiente para a pacificação social que o referido acordo seja proposto, inclusive, em grau de recurso em processo no qual conste sentença penal condenatória. O Direito Penal deve ser, de fato, a ultima ratio, reservando-se as penas privativas de liberdade para os delitos que causem maior dano ao meio social.
Teremos, caso formalizado o acordo nessas circunstâncias, uma responsabilização penal diversa da pena privativa de liberdade e que pode ser mais interessante para a vítima, tão desprezada pelo Direito Penal com viés estritamente retributivo.
Aliás, é nesse sentido o voto exarado pelo Min. Gilmar Mendes nos autos do retrocitado HC nº 185.913:
"Primeiramente, limitando-se a uma análise terminológica, o instituto é denominado de 'acordo de não persecução penal' e não 'acordo de não oferecimento da denúncia'. (…)
Portanto, penso que o limite temporal para obstar o oferecimento do ANPP em processos em curso quando da vigência da Lei 13.964/2019 seria somente o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Isso porque, com o trânsito em julgado, inicia-se a execução da pena e encerra-se a persecução penal, perdendo sentido o ANPP em sua função essencial de simplificar e antecipar a sanção ao imputado com a sua conformidade."
Na mesma toada, o ministro Edson Fachin, nos autos do ARE 1.419.411/SC [11], concluiu pelo cabimento do ANPP, inclusive, em grau recursal:
"Com efeito, o recebimento da denúncia ou mesmo a prolação da sentença não esvaziam a finalidade do ANPP, pois a sua celebração evita prisão cautelar, condenação criminal e seus efeitos (cumprimento de pena, reincidência, maus antecedentes, etc) e o próprio processo (com todas as fases recursais). Tais marcos processuais não excepcionam a garantia constitucional de retroatividade da lei mais benéfica, mesmo sob o argumento da utilidade do instituto para o órgão de acusação."
Soma-se a todos esses argumentos de ordem processual, constitucional e de política criminal, que a realidade do sistema de justiça criminal nos apresenta 1) pautas aglutinadas de audiências e 2) sessões de julgamento de Tribunais com centenas de processos sujeitos a sustentação oral, fatos que consomem o tempo dos operadores do direito, oneram o Estado e repercutem em uma maior demora na prestação jurisdicional.
Efeitos deletérios que podem ser minorados com a adoção da tese ora exposta e que irá, inclusive, reduzir o tempo de resposta estatal ao suposto delito praticado.
E neste ponto, é sempre bom rememorar a advertência feita por Rui Barbosa na Oração aos Moços (texto publicado em 1921 e que, infelizmente, ainda se revela atual em nosso país), "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta" [12].
[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. Ed. São Paulo: Saraiva, 2021. P. 220/221.
[2] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf.
[3] Disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/no-brasil-maioria-dos-homicidios-ainda-fica-semsolucao/> Acesso em 19 mar. 2023
[4] ADPF 347 MC/DF, Tribunal Pleno, relator ministro Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015
[5] WERLANG, Alejandro César Rayo. A política criminal na modernidade líquida. Lisboa: Chiado, 2018. P. 107.
[6] CABRAL, Rodrigo Leite. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: JusPodivm, 2020. P. 213.
[7] Op. Cit. P. 222.
[8] Tribunal Pleno, pendente de julgamento
[9] DA ROSA, Alexandre Morais. Guia do Processo Penal Estratégico. 1. Ed. Florianópolis: Emais, 2021. P. 84.
[10] Op. Cit. P. 221.
[11] Julgado em 10/03/2023
[12] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/342613/oracao-aos-mocos–de-rui-barbosa-completa-100-anos> Acesso em 19 mar. 2023
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