Público & Pragmático

A Instrução Normativa 91: a solução consensual na pauta do TCU

Autor

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

26 de março de 2023, 8h00

Em 22 de dezembro de 2022, o Tribunal de Contas da União publicou a Instrução Normativa 91, assinada pelo ministro Bruno Dantas [1], com objetivo de pautar procedimentos voltados para a solução consensual de controvérsias e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da administração pública federal.

De acordo com a Instrução Normativa, a solicitação da solução consensual pode ser feita por autoridades competentes para formular consultas no TCU, conforme o artigo 264 do seu regimento interno [2]; pelos dirigentes máximos das agências reguladoras e pelo relator do processo em trâmite no TCU, devendo conter requisitos mínimos, como: (1) indicação do objeto, materialidade do risco e relevância; (2) parecer técnico e jurídico sobre a controvérsia e dificuldades na solução do problema; (3) indicação dos envolvidos na controvérsia, incluindo particulares; (4) indicação de precedente no TCU que trate sobre mesmo objeto da causa e (5) manifestação formal das partes públicas envolvidas sobre o interesse de uma solução consensual.

A Instrução Normativa prevê a criação de uma Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso), competente para requerer diligências e fazer o exame de admissibilidade do pedido. Na sequência, o presidente do TCU deve decidir discricionariamente sobre a admissibilidade do pedido de solução consensual, considerando a relevância e urgência da matéria, a quantidade de processos consensuais em andamento e a capacidade operacional do TCU para atuar nos processos consensuais. Não serão admitidos pedidos de solução consensual se seu objeto estiver pendente de julgamento de mérito no TCU. A não admissão do pedido causará o arquivamento do processo. Destaca-se que não caberá recurso de nenhuma das decisões proferidas no curso do processo de solução consensual, considerando a natureza dialógica do mesmo.

Caso haja conexão com temas já em andamento no TCU, o processo de solução consensual será encaminhado ao relator, que pode ratificar ou não a admissibilidade recomendada pelo presidente do TCU. Se admitido, os temas em andamento serão sobrestados. Caso contrário, o processo de solução consensual será arquivado.

Uma vez admitido o processo, uma portaria designará a Comissão de Solução Consensual (CSC), composta por (1) um servidor da SecexConsenso; (2) um representante da unidade de auditoria responsável pela matéria e (3) um representante de cada órgão ou entidade da administração pública federal que tenha solicitado ou manifestado interesse na solução consensual. Avaliadas as circunstâncias, é possível permitir a participação de um representante do setor privado. Ademais, especialistas na matéria podem ser convidados a participar das reuniões, desde que não estejam diretamente ligados à causa.

A partir de sua constituição, a comissão tem 90 dias corridos para elaborar a proposta de solução, prorrogáveis por 30 dias. Em caso de desatendimento, o presidente do TCU tomará ciência e determinará o arquivamento do processo.

Havendo unanimidade dos membros da CSC quanto a proposta de solução, o processo será remetido ao Ministério Público junto ao TCU para manifestação em até 15 dias. Após, o processo segue à Presidência do TCU para sorteio do relator, o qual deverá submeter a proposta à apreciação do Plenário em 30 dias, prorrogáveis por igual período.

Através de acórdão, o Plenário do TCU poderá acatar, recusar ou sugerir alterações na proposta de solução elaborada pela CSC. No último caso, os membros da comissão terão 15 dias para se manifestarem e, caso discordem das alterações sugeridas, o relator determinará o arquivamento do processo e cientificará o Plenário. O resultado do processo de solução consensual deverá ser juntado aos autos dos temas eventualmente conexos com o objeto em discussão.

A formalização da solução será realizada através do termo firmado pelo presidente do TCU e pelo respectivo dirigente máximo dos órgãos ou entidades da administração pública federal que tenha solicitado ou manifestado interesse na solução consensual, em 30 dias após a deliberação final do Plenário. O cumprimento do termo será feito através de monitoramento, nos moldes do artigo 234 do Regimento Interno do TCU [3].

Por fim, com o fito de acompanhar a implementação dos procedimentos estabelecidos na Instrução Normativa (assim como seus resultados), será criada uma Comissão Temporária de Acompanhamento de Procedimentos de Solução Consensual. Ela será composta por três ministros do TCU e contará com o apoio da SecexConsenso. Ao final de 360 dias contados da publicação da Instrução Normativa, a Comissão Temporária encaminhará à Presidência do TCU o relatório de suas atividades, com proposta para se tornar definitiva ou extinguir-se, além de propostas de aperfeiçoamento do procedimento de solução consensual.

Primeiras observações
Não é novidade que a análise da autoridade de controle — por vezes exageradamente conservador — pode levantar barreiras à iniciativa do gestor público em acordar com o setor privado.

Em uma virada positiva, visando conferir maior segurança jurídica e efetividade às ações consensuais, o TCU publicou a Instrução Normativa 91 demonstrando a importância de se definir regras claras voltadas ao consenso (conforme, inclusive, já defendido em obra acadêmica) [4]. Incentiva-se a utilização de meios alternativos à resolução dos litígios, com soluções dotadas de maior legitimidade e eficiência.

Contudo, algumas críticas merecem destaque.

Em primeiro lugar, nota-se a impossibilidade de recorrer de qualquer decisão tomada no âmbito do procedimento de solução consensual. A justificativa seria que a natureza dialógica da relação impediria lançar mão do instrumento recursal. Discorda-se nesse ponto, vez que nem sempre o questionamento está eivado de adversariedade: por vezes, ele serve ao esclarecimento de um ponto específico, para demonstrar a omissão de algum acordo firmado ou para solicitar a retificação de informações. Ademais, a Lei nº 9.784/1999 garante a interposição de recurso administrativo em face das decisões administrativas, seja pelos titulares de direitos e interesses envolvidos no processo (no caso, a Administração Pública), seja por aqueles cujo direito ou interesse será diretamente atingido (eventuais particulares envolvidos) [5]. Logo, seria possível debater sobre a própria legalidade de tal proibição recursal prevista no normativo infralegal.

Outro destaque está na participação do representante do setor privado condicionada às circunstâncias casuísticas. Isto é, mesmo em situações em que ele seja parte ou diretamente afetado pelo acordo a ser firmado pela administração pública, não é certo que o particular estará diretamente envolvido no processo de solução consensual. Importante notar, igualmente, que a norma não traz a possibilidade do particular, diretamente, pedir a instauração do processo consensual perante o TCU.

Apesar de o particular não ser o foco de controle do TCU, é certo que seus interesses subjetivos podem estar envolvidos no assunto em debate. Entende-se que a participação do acordante privado poderia ser bastante proveitosa na avaliação de relevância e eficiência do acordo. Relembre-se que o acordo ocorre em um cenário de sinergia e esforço conjunto das partes para se chegar na melhor solução [6] e, por isso, a compreensão conjunta das intenções das partes poderia conferir maior clareza ao TCU no momento de admitir, acatar ou porventura modificar algum item proposto pelas partes.

No tocante à admissibilidade do procedimento de solução consensual, um dos critérios de avaliação do presidente do TCU é a "capacidade operacional disponível no Tribunal para atuar nos processos de SSC". Aparentemente, condiciona-se a admissão do processo à força de trabalho disponível no TCU, o que não se reputa adequado. O processo consensual traz efetividade ao caso concreto e não pode depender de questões operacionais que não lhe dizem respeito. Uma vez instituído um procedimento de avaliação do consenso, necessário dispor de estrutura suficiente para dar sequência às solicitações e qualquer exame de admissibilidade deve considerar apenas e tão somente questões atinentes ao processo em si.

Um ponto de atenção está nas possíveis alterações impostas pelo Plenário do TCU à proposta de solução consensual elaborada pela CSC. Considerando que eventual discordância das autoridades causará o arquivamento do processo, é importante fiscalizar a ocorrência de eventuais distorções das intenções do acordo, advindos do órgão máximo de controle.

Conclusão
Ultrapassados os desafios iniciais de implantação do procedimento de solução consensual (o próprio TCU tratou de colher informações para aperfeiçoamento de tal fluxo, passados 360 dias do seu início), entende-se que se tem um bom instrumento de viabilização de acordos, fortalecendo ainda mais as soluções consensuais que tanto beneficiam as partes e a sociedade.

 


[2] Art. 264. O Plenário decidirá sobre consultas quanto a dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes à matéria de sua competência, que lhe forem formuladas pelas seguintes autoridades: I – presidentes da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal; II – Procurador Geral da República; III – Advogado Geral da União; IV – presidente de comissão do Congresso Nacional ou de suas casas; V – presidentes de tribunais superiores; VI – ministros de Estado ou autoridades do Poder Executivo federal de nível hierárquico equivalente; VII – comandantes das Forças Armadas

[3] Art. 243. Monitoramento é o instrumento de fiscalização utilizado pelo Tribunal para verificar o cumprimento de suas deliberações e os resultados delas advindos.

[4] CARNAES, Mariana. Processo administrativo negocial: balizas normativas para efetivar a negociação no âmbito regulatório. Londrina: Editora Thoth, 2022.

[5] Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito.

[…]

Art. 58. Têm legitimidade para interpor recurso administrativo:

I – os titulares de direitos e interesses que forem parte no processo;

II – aqueles cujos direitos ou interesses forem indiretamente afetados pela decisão recorrida;

[…]

[6] CARNAES, Mariana. Processo administrativo negocial: balizas normativas para efetivar a negociação no âmbito regulatório. Londrina: Editora Thoth, 2022.

Autores

  • é advogada especialista em Direito Regulatório, membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Processo administrativo negocial e Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

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