Embargos Culturais

O preciosíssimo livro Os Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

26 de março de 2023, 8h00

Há uma literatura atualíssima que investiga as relações entre a democracia e a realidade digital. Essa última tem influenciado a forma de se pensar e viver a política. Surpreende-se a todo o momento com a difusão de técnicas e de narrativas, que criam realidades paralelas, e que se tornam, de algum modo, realidades palpáveis. O deplorável vandalismo ocorrido em Brasília no dia 8 de janeiro último é um exemplo do limite dessa histeria coletiva, a que assistimos recorrentemente.

Spacca
A relação entre tecnologia e política é um desafio para as ciências sociais contemporâneas. Como se lê em Os Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli, vivemos o tempo da política quântica. Colhe-se desse preciosíssimo livro que não se pode fazer política analógica em tempos de política digital.

Constata-se uma inversão entre o real e o irreal, que Giuliano da Empoli ilustra com o Carnaval da cidade de Roma, tal como vivido por Goethe, que lá esteve. Em Viagem à Itália, o poeta alemão faz referências ao Carnaval da cidade eterna (notas de 20 de fevereiro de 1787). Para Goethe no Carnaval havia uma inversão absoluta de papeis: homens viravam mulheres, que viravam homens; pobres viravam ricos, que viravam pobres.

Giuliano da Empoli utiliza-se dessa expressividade poética para caracterizar a realidade paralela criada pelo mundo digital no contexto das disputas políticas contemporâneas. O escárnio que se verifica no Carnaval é o meio como essa nova política dissolve hierarquias e construções narrativas.

Giuliano da Empoli elenca e explica um pouco dos principais responsáveis por essa nova forma de fazer política. Steve Bannon (um dos responsáveis pela eleição de Trump) está no topo da lista. Seguem Dominic Cummings (e sua relação com o triunfo do Brexit), Milo Yiannopoulos (blogueiro inglês, que reputa como o personagem mais pitoresco dessa galeria que engenheiros do caos), Arhur Finkelstein (nova-iorquino que atende Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria desde 2010, principal nome do Fidesz, União Cívica Húngara).

Em Os Engenheiros do Caos, o autor nos mostra a Itália como o "vale do silício" do populismo. Explica as recorrentes visitas de Steve Bannon, a quem entrevistou em Roma. Giuliano da Empoli marca Bannon como o "Trotsky da revolução populista". Entende-se nesse livro o Movimento 5 Estrelas e o papel de Beppe Brillo e de Gianroberto Casalegio (e seu filho também).

O escárnio é total no V-Day, que não é o "dia da vitória"; é o "vaffanculo day", cuja tradução literal para nossa língua nos remeteria a expressões do astrólogo-filósofo dessa nova direita, Olavo de Carvalho. Na Itália o simples fato de que se comentasse o 5 Estrelas já era motivo para que o autor fosse agredido nas redes sociais.

Predomina nessa nova política uma "sabedoria das multidões" que implica na negação absoluta da opinião de especialistas. Todo guerrilheiro do teclado opina sobre tudo. E toda opinião ganha foros de verdade. Emerge uma informática filosófica. A revolução digital redefine os temas clássicos do pensamento ocidental.

Waldo, o pequeno urso digital azulado da série Black Mirror, na opinião do autor, sintetiza essa maldade generalizada. O ursinho, no entanto, é uma criação digital, do mesmo modo que o rinoceronte Cacareco era uma criação política imaginária, e que recebeu quase 100 mil votos nas eleições municipais de São Paulo, em 1959. Cacareco, no entanto, era de um tempo ingênuo, no qual a vassoura, e não o fuzil, simbolizava a luta política.

A ascensão de Donald Trump ilustra os argumentos de Giuliano da Empoli. Trump entusiasma um certo americano médio que são contra "classes criativas multiétnicas que dominam a economia e as mídias enquanto bebericam cappuccinos e sucos de fruta orgânicas nos cafés de Manhattan e de Palo Alto". Cria-se um mundo de absurdos. Hillary Clinton é acusada de "comandar uma rede de pedófilos no porão de uma das pizzarias mais populares de Washington". Obama é acusado de omitir nacionalidade estrangeira. A lista é interminável.

Giuliano da Empoli nos vê numa "gaiola de bolso" uma alusão certeira aos smartphones. Todos se fotografam e se auto fotografam com mais intensidade ainda. A política digital é contemporânea de um narcisismo de massa. O livro analisa um caso curioso de descaso para com gatos pretos.

É o caso do Millwood Cat Rescue. Um senhor que cuidava de gatos abandonados subitamente se dá conta de que gatos pretos eram lançados às ruas. Casualmente, entendeu a razão. Gatos pretos não eram suficientemente fotogênicos para aparecerem em fotos que se reproduziriam em redes sociais. Não seriam "instagramáveis", a valer-me de um neologismo de ampla aceitação. Já há dicionários de equivalência que registram "instagramável" como "adjetivo de dois gêneros", relativo ao "que se pode instagramar ou publicar na rede social Instagram" ou, o "que tem características próprias ou ideias para publicação na rede social Instagram".

O autor é ítalo-suíço. Nasceu em 1973. Cosmopolita, estudou em Roma (La Sapienza), em Paris (Sciences Po), foi secretário de cultura em Florença, conselheiro de Matteo Renzi (primeiro-ministro da Itália de 2014 a 2016), que é florentino. O Mago do Kremlin é uma novela imperdível de Giuliano da Empoli, já publicada no Brasil em competente tradução.

Em Os Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli, o leitor contempla um estilo de lenhador, que golpeia o pensamento a machadadas, a valer-me de uma fortíssima imagem de Sergio Milliet, ainda que em outro contexto. Físicos e matemáticos seriam mais úteis em campanhas eleitorais do que cientistas políticos e jornalistas. É essa a mensagem do livro, em forma de aviso de incêndio.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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