Observatório Constitucional

A jurisdição constitucional no século 21 e sua busca por resiliência

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

25 de março de 2023, 8h00

Quando a sede da Corte Constitucional sul-africana estava sendo construída em Joanesburgo, no local antes ocupado pela Old Fort Prison, uma das mais cruéis prisões do período do apartheid, os envolvidos naquele ambicioso projeto arquitetônico avistaram uma torre colocada estrategicamente numa posição capaz de vigiar a tudo e a todos. A torre era o símbolo edificado de uma supremacia branca sobre a esmagadora maioria negra naquele país, um monumento erigido para oprimir, para vigiar e, ao final, para desumanizar. A falta de respeito pelos direitos fundamentais era a lógica do apartheid e essa lógica não habitava apenas os corações de pedra das pessoas do poder, ela ganhava potência na arquitetura dos prédios, especialmente nas prisões.

Spacca
Spacca

A torre foi destruída e as pedras, juntas de suas ruínas, foram recolhidas, tratadas e transformadas em pequenos tijolos que ajudaram a erguer o plenário da Corte Constitucional, o seu espaço mais importante. Dos restos de uma torre de monitoramento numa prisão nasceu a matéria-prima que levantaria o plenário de um local destinado a ouvir súplicas por justiça e a realizar as promessas constitucionais feitas para um povo que soube alimentar em si a bravura dos que não desistem enquanto não sentirem o vento da liberdade soprar em suas faces avisando que um novo tempo chegou.

O gesto dos construtores do edifício da Corte Constitucional da África do Sul simbolizava a capacidade que o Direito dá à sociedade de curar suas feridas e, a partir de um longo processo de cicatrização, converter dor e desespero em alívio e esperança. Essa transição é possível e o primeiro e mais singelo passo era dado ao se tratar as ruínas de uma memória traumática convertendo-a em alívio.

Mas, para reaglutinar uma sociedade dividida, será que fundar uma Corte Suprema basta? Se o grande desafio do constitucionalismo no século 20 foi criar essas cortes — e elas foram fundadas em todo o mundo como nunca antes —, o século 21 entrega a essas instituições uma outra missão: a de ser resiliente, de desenvolver a capacidade de se adaptar e resistir quando estiverem diante de crises extremas ou de ataques sistemáticos em suas bases mais elementares.

A jurisdição constitucional tem dado provas da sua resiliência desde cedo. Nos Estados Unidos, quando o presidente Thomas Jefferson avisou que não cumpriria uma possível determinação judicial obrigando-o a dar posse a um juiz indicado por seu antecessor e oponente, John Adams, a Suprema Corte, em Marbury v. Madson, 1803, evitou um confronto direto, mas não sem antes cobrar uma fatura. Reconheceu-se competente para declarar leis inconstitucionais, num pioneiro exercício de legítima defesa institucional. Tornou-se, com a medida, a Suprema Corte mais poderosa do mundo.

A Alemanha, por sua vez, conta com uma Corte Constitucional que ajudou na limpeza dos escombros materiais e imateriais deixadas pelo nazismo. Nasceu para resistir.

Enquanto essa coluna era concluída, dezenas de milhares de pessoas protestavam pelas ruas de Tel Aviv, em Israel, contra uma proposta de reforma judicial que retiraria o poder de dizer a última palavra em temas jurídicos da Suprema Corte e o entregaria ao Knesset, o Parlamento israelense. Lá, a jurisdição constitucional segue sendo resiliente, mas até quando?

O Estado Constitucional brasileiro não havia mostrado, ainda, esse espírito. Agora, tendo o Supremo Tribunal Federal sobrevivido aos quatro anos de duros ataques sofridos durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), a corte mostra ao mundo que o que ocorreu em países como Venezuela, Guatemala, Polônia e Hungria — cujos governos conseguiram abalar a independência judicial —, talvez seja um acidente, não necessariamente um destino.

O Supremo sobreviveu. Sobreviveu ao governo do presidente Jair Bolsonaro, que foi qualificado, pelo The New York Times, como o governo da "loucura" [1], num claro eufemismo.

No Brasil, os ataques [2] não se circunscreveram ao patrocínio persistente de discursos de ódio contra ministros da Suprema Corte [3]. O presidente da República formalizou, perante o Senado da República, um pedido de "destituição" de um integrante do Supremo [4]. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, rejeitou o pedido [5], mas a iniciativa, sem precedentes em nossa história, deixou claro que a confrontação não se limitava a palavras. É como consta em Hamlet, quando Apolônio diz: "Embora seja loucura, ainda assim há nela um método". A guerra travada pelo Poder Executivo contra a Suprema Corte, apesar de repleta de loucura, tinha método.

A necessidade de correção de atos estatais deixou de ser um exercício excepcional e passou a ocupar a rotina do STF, intensificada por agressões pessoais e discursos inflamatórios por parte do ex-presidente da República contra ministros da Suprema Corte, além de manifestações no sentido de negar a autoridade das decisões do tribunal, o que, com o tempo, passou a reverberar junto à população. "Supremo é o povo" [6] virou o mote em cartazes levados para grandes manifestações, em camisas vestidas por partidários do ex-presidente e em mensagens e convocações populares espalhadas pelas redes sociais.

Mesmo sendo um curto espaço de tempo, ele foi bastante para testemunhar o ex-presidente do país ser protagonista dos seguintes episódios: (1) discursos de ódio proferidos diante de multidões, nas ruas e nas redes sociais, contra ministros do STF [7]; (2) ameaças de descumprimento de decisões da Suprema Corte [8]; (3) participação em manifestações populares cuja demanda era o fechamento da Suprema Corte [9]; (4) formulação de pedido de impeachment contra ministro do Supremo [10]; (5) ajuizamento de ações perante o próprio STF pedindo a abertura de investigação contra ministro da Corte [11]; (6) hostilizações por parte de apoiadores, no Brasil e no exterior, contra ministros do STF [12]; (7) e, por último, a destruição, por apoiadores, do edifício-sede do Supremo [13].

Diante de tantos adversários atuando em planos distintos, como podem, as Cortes Constitucionais submetidas a duros ataques, sobreviver? Elas operam num tipo de sistema dotado da resiliência necessária para se adaptar às adversidades e seguirem adiante cumprindo o propósito para o qual foram criadas? Têm, as Cortes Constitucionais contemporâneas, um aparato institucional capaz de dotá-las de poder suficiente para reagir a ataques e triunfar sobre aqueles que buscam destruí-las? Ou, assim como todos nós, a jurisdição constitucional já nasceu condenada a um dia simplesmente morrer?

Não é possível oferecer um cardápio pronto e acabado capaz de responder questionamentos cujas respostas invocam considerações históricas, sociais, políticas, jurídicas e, especialmente, circunstanciais. Ainda assim, é possível, pela mera observação, apresentar, com seus devidos e necessários recortes, iniciativas institucionais adotadas pelo Supremo Tribunal Federal que podem, quando somadas, ter resultado em maior resiliência da jurisdição constitucional no Brasil.

Os primeiros elementos de resiliência do STF são os passivos. Eles visam a reduzir a tensão entre o Supremo e algum outro Poder por meio de uma postura que pode parecer omissa ou procrastinatória, mas que, em verdade, tenta dissipar parte da energia dispensada àquela relação que começa a ser demasiadamente beligerante, a ponto de colocar em risco a autoridade da jurisdição constitucional. São exemplos: (1) tentativas de conciliação prévias com pessoas políticas, ao contrário de simplesmente determinar, com o uso do poder, o cumprimento de uma decisão; (2) aceitação, ainda que provisoriamente, de efeitos backlash em algumas de suas decisões; e (3) postergação de debates acerca de temas não apenas marcados por desacordos morais relevantes, mas, especialmente, constitutivos de centralidade na agenda política do Poder oponente da jurisdição constitucional.

Há também os elementos de comunicação, voltados a ampliar a potência das suas mensagens nas deliberações jurisdicionais ou administrativas, ou, ainda, usados para esclarecer questões essenciais para a preservação da sua autoridade, ou, também, na reação a ataques e, por fim, na tentativa de granjear suporte internacional ao seu trabalho. É possível ilustrar com os seguintes exemplos: (1) ampliação dos canais institucionais de comunicação por meio dos quais o STF interage com a população; e (2) adoção de iniciativas de diplomacia judicial.

Por fim, os últimos elementos são os reativos. Costumam ser adotados apenas quando se tem, por parte dos demais Poderes — notadamente o Poder Executivo — demonstrações claras de que se pretende atacar diretamente o núcleo essencial de direitos fundamentais, ou iniciar procedimentos de impeachment contra membros da Suprema Corte ou, ainda, descumprir as suas decisões. São exemplos: (1) estabelecimento de uma agenda deliberativa capaz de deixar claro qual a posição da Suprema Corte acerca de um dado tema; e (2) o resgate, ou mesmo a construção, por meio da interpretação, de competências até então não desempenhadas pela Suprema Corte com tamanha intensidade, mas que passam a ser fundamentais para a manutenção da sua autoridade e para a preservação da sua existência.

Comportamentos institucionais como esses são conhecidos. Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos, para sobreviver, em 1937, reverteu sua posição então contrária ao New Deal do poderoso presidente Franklin Delano Roosevelt, ela abriu caminho para a vindicação futura por direitos. Perdeu naquele momento, mas para ganhar no dia seguinte. Nasceu, uma década e meia depois (1953/1969), a Corte de Warren, desmantelando a segregação racial e fazendo muito pela independência judicial.

Esse tipo de resiliência está em linha com a lógica cíclica da realização dos direitos fundamentais. Se é verdade que esses direitos vão se regenerando ou se incrementando com o tempo, em ciclos, não pode ser diferente com a sua realização pelas Cortes. Assim, um passo para trás pode simbolizar dois para frente na jornada de realização de direitos pertencentes às presentes e futuras gerações.

Na trajetória da jurisdição constitucional em todo o mundo, primeiro as Cortes Constitucionais foram criadas. Posteriormente, elas floresceram. Agora, muitas delas precisam resistir. Essas três correntes de elementos — passivos, comunicativos e reativos — ajudaram a Suprema Corte brasileira a sobreviver. Para alguns, é isso o que importa.

 


[2] Não deixa de ser uma "brutalização dos costumes políticos", na expressão de Andreas Voßkuhle. "Verrohung der politischen Sitten". Europa, Demokratie, Verfassungsgerichte. Suhrkamp, 2021, p. 235.

[6] "Em Brasília, bolsonaristas gritam 'Supremo é o povo' e 'Xandão na cadeia'". Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/em-brasilia-bolsonaristas-gritam-supremo-e-o-povo-e-xandao-na-cadeia/.

[8] Eis trecho do discurso de 7/09/2021, em São Paulo, para cerca de 125 mil pessoas: "Temos um ministro do Supremo que ousa continuar fazendo aquilo que nós não admitimos. Logo um ministro que deveria zelar pela nossa liberdade, pela democracia, pela Constituição faz exatamente o contrário. Ou esse ministro se enquadra ou ele pede para sair. Não podemos admitir que uma pessoa, um homem apenas turve a nossa democracia e ameace a nossa liberdade. Dizer a esse indivíduo que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixe de oprimir o povo brasileiro". Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-chama-moraes-de-canalha-e-diz-que-nunca-sera-preso/.

[9] "Bolsonaro Supports Protest against Supreme Court and Congress: Bolsonaro says that the Armed Forces are 'on the side of the people'". Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/internacional/en/brazil/2020/05/bolsonaro-supports-protest-against-supreme-court-and-congress.shtml.

[10] "Bolsonaro pushes against Supreme Court judge – Supreme Court judge Alexandre de Moraes has launched two investigations against Brazil's far-right president Jair Bolsonaro. The politician now wants the judge to be removed". Disponível em: https://www.dw.com/en/brazils-bolsonaro-asks-senate-to-impeach-supreme-court-judge/a-58938384.

[11] A Pet nº 10.368, cujo relator foi o ministro Dias Toffoli, ajuizada pelo presidente Jair Bolsonaro contra o ministro Alexandre de Moraes, o acusava de abuso de autoridade na condução do Inquérito das Fake News. Ao recusar a notícia-crime, o ministro Dias Toffoli anotou: "O Estado Democrático de Direito impõe a todos deveres e obrigações, não se mostrando consentânea com o referido enunciado a tentativa de inversão de papéis, transformando-se o juiz em réu pelo simples fato de ser juiz".

[13] "Brazil: Bolsonaro supporters storm National Congress: Hundreds of supporters of Brazil's former president have stormed seats of political, judicial and legislative power". Disponível em: https://www.dw.com/en/brazil-bolsonaro-supporters-storm-national-congress/a-64320440.

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