Ambiente Jurídico

ADI 4.757 e as competências em matéria ambiental: o que há de novo no front?

Autores

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

  • Lucas Cavalcante Gondim

    é procurador do estado de Goiás advogado pós-graduado em Direito Público e bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

25 de março de 2023, 8h00

No último dia 17 de março, publicou-se o aguardado inteiro teor do acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.757/DF, ajuizada pela Asibama [1] Nacional, em face de diversos dispositivos da Lei Complementar nº 140/2011, e relatada pela ministra Rosa Weber. Com mais de uma década de vigência, o diploma federal supriu uma lacuna que emergiu na década de 1980, com a instituição da Política Nacional de Meio Ambiente e o projeto constitucional de 1988: a dinâmica institucional do exercício das competências federativas em matéria ambiental.

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Diz-se cooperativo o federalismo à brasileira por, dentre outras características, contemplar a categoria das competências comuns (artigo 23), superando o modelo divisional-excludente de matriz norte-americana. Na última década, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se diversas vezes sobre a problemática do exercício comunitário das competências em matéria ambiental, algumas em episódios emblemáticos, como o julgamento das ações diretas propostas em face do Novo Código Florestal [2] e o caso amianto-crisotila [3].

Caso a caso, decantaram algumas premissas doutrinárias que, por seus robustos impactos hermenêuticos, foram por muito tempo de difícil assimilação pelos operadores do Direito. Menciona-se: o reconhecimento da normatividade da vedação ao retrocesso ambiental [4] e a superação do prisma hermético e estanque com o qual se enxergava a dinâmica das atribuições entre os entes federativos.

Nesse contexto, o que a conclusão do julgamento da ADI nº 4.757/DF traz de novo é uma certa radicalização dessas premissas, fazendo-as incidir sobre o regime da Lei Complementar nº 140/2011. Se, antes, o Código Florestal teve certos dispositivos temperados pela proibição da proteção deficiente, chegou a vez das engrenagens do licenciamento e da fiscalização — em suma, do poder de polícia ambiental em todas as suas fases.

Calha revisitar essas premissas.

A inscrição das atividades administrativas ambientais no rol das competências comuns entre as unidades federadas pressupõe a adoção de uma metódica funcionalista, em que o parâmetro de validade é dinâmico, variando conforme a melhor proteção oferecida ao bem jurídico-ambiental (artigo 225 da CF). Aqui, deve-se compreender o federalismo não como uma estrutura de repartição de poder, mas como um princípio, exigindo, portanto, uma "correlação positiva entre os efeitos da conduta adotada e o estado de coisas que deve ser promovido" [5].

Indo além, a linha decisória construída no Supremo Tribunal Federal aponta para uma fidelidade aos princípios constitucionais da prevenção e da precaução como parâmetro de controle da validade [6] tanto de medidas legislativas (exercício da competência concorrente), quanto de medidas administrativas (exercício da competência comum). Nas palavras da ministra Rosa Weber, o princípio federativo está "vocacionado à instrumentalidade requerida pela dinâmica das relações entre as instituições republicanas".

Substitui-se a noção de poder, faculdade ou responsabilidade para atuar por um paradigma de responsividade: deve-se indagar, afinal, que órgão do Sisnama possui a melhor capacidade técnica e operacional para conciliar, no caso concreto, o rigor da técnica, a proteção mais adequada ao meio ambiente e, ainda, a eficiência no oferecimento de respostas aos administrados. Esses são os parâmetros necessários para o discernimento nos juízos do porvir, quais sejam, o arbitramento das disputas entre as unidades federadas. Tem-se, pois, a assunção de uma perspectiva quase tópica [7] para a dinâmica das competências interfederativas.

Quanto à ratio da decisão, esses são os "novos" e principais ensinamentos colhidos. Sob o prumo da parte dispositiva do acórdão, tem-se profundas modificações na mecânica de dois dos dispositivos da Lei Complementar nº 140/2011: o artigo 14, § 4º, que trata da prorrogação automática de licenças ambientais em caso de omissão ou mora da administração; e o artigo 17, § 3º, quanto ao conflito de sobreposição de autos de infração.

É despiciendo registrar a importância da norma insculpida no artigo 14, § 4º para a segurança jurídica dos empreendimentos. Inverte-se o ônus temporal, impede-se que a mora decorrente de culpa exclusiva da administração obstaculize a continuidade de uma instalação ou de uma operação. Contudo, o texto permitia uma situação que fragilizava o princípio da prevenção, pois não fixou qualquer consequência para o órgão ambiental que extrapolasse o prazo de 120 dias.

A licença ambiental poderia, portanto, prorrogar-se automaticamente e sine die, visto que, partindo de uma visão estanque das competências ambientais, não havia como sobrepujar a discricionariedade da esfera detentora da atribuição de licenciar. Nota-se, nesse ponto, a boa técnica decisória da Corte Suprema: recorreu-se à interpretação conforme porque não se está a afastar uma interpretação inconstitucional, mas um consectário concreto da insuficiência material daquele parágrafo. De se recordar, aliás, que a licença ambiental é o mais importante instrumento de concreção do princípio da prevenção.

De agora em diante (a depender da modulação advinda dos aclaratórios), a mora imotivada e desproporcional do órgão licenciador terá de responder a dois senhores: ao empreendedor, criando uma situação precária em que poderá continuar operando, e ao bem jurídico-ambiental, instaurando a atuação supletiva dos demais entes da Federação. Destaque para os adjetivos, pois não é qualquer extrapolação dos cento e vinte dias que permite a avocação supletiva, já que, por exemplo, "o órgão ambiental na coleta de informações necessárias pode demandar tempo para além dos 120 dias prescritos na regra do §4º" [8].

Ocorre que a parte dispositiva da decisão não foi esclarecedora quanto à manutenção da prorrogação automática da vigência da licença expirada. O ministro Nunes Marques, nas razões expostas em seu voto-vogal, apontou para o fato de que "a perda de vigência automática, tão somente pelo decurso de tempo, não se justifica, sobretudo porque o particular, em princípio, não deu ensejo à mora administrativa" [9]. Assim, propôs que a interpretação conforme mantivesse a prorrogação automática da vigência, em caráter precário, sem prejuízo da fiscalização dos órgãos suplementares e que "não colida com o entendimento do órgão primariamente responsável pela fiscalização" [10].

O posicionamento divergente do ministro Nunes Marques não teve adesão dentre os demais membros da corte; contudo, ele sinalizou uma omissão importante a ser discernida nos embargos de declaração. Nesse sentido, nos aclaratórios opostos pela Petrobras no último dia 24 de março, pede-se que a Suprema Corte deixe "expresso no acordão que a instauração da competência supletiva não afasta a garantia de renovação automática das licenças ou autorizações ambientais" [11].

Igualmente lacunosa é a previsão dos meios para o exercício da supletividade, evitando a sobrecarga dos outros órgãos ambientais. Não é razoável transferir ao empreendedor o ônus de, extrapolados os 120 dias, protocolar o mesmo pedido renovatório em outro órgão do Sisnama. É mais condizente admitir uma margem de discricionariedade para as demais esferas da federação, que exercerão a avocação (uma vez presente a fattispecie da mora imotivada e desproporcional) de acordo com o grau de impacto do empreendimento, focalizando a mobilização dos escassos recursos de pessoal para aquilo que seja mais relevante. Matéria, enfim, para os embargos.

Se, por um lado, a discussão do artigo 14, § 4º ainda enfrenta muita nebulosidade, o redesenho do artigo 17, § 3º é mais tangível e inteligível. Isso porque a norma foi antevista para oferecer uma responsividade a danos ou ilícitos ambientais em curso, em que o aspecto cautelar da a(u)tuação se sobressai.

Em síntese, a interpretação constitucionalmente adequada para o dispositivo é a que privilegia a tutela do dano ou do ilícito ambiental. Se a ação fiscalizadora do órgão licenciador for inexistente ou insuficiente, instaura-se a atuação supletiva, que autoriza até mesmo o exercício das tutelas inibitórias e reparatórias [12], sob o regime jurídico das medidas cautelares administrativas [13].

A interpretação conforme, da maneira como redigida, desperta duas indagações. Primeiro, qual o parâmetro para a aferição da omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória pelo órgão fiscalizador (dúvida que consta, inclusive, do petitório dos embargos opostos pela Petrobras). Segundo, a quem cabe dirimir o conflito porventura existente entre o licenciador e o autuador supletivo.

À primeira vista, o Supremo Tribunal Federal não parece ser a instância adequada para a discussão e definição desses parâmetros. Não há como fugir da casuística, pois cada aspecto da tutela administrativa ambiental (poluição do ar, poluição da água, resíduos sólidos, supressão vegetal, outorga de recursos hídricos, dentre outras) possui peculiaridades técnicas que fazem com que apenas a análise do caso concreto permita que se chegue à conclusão quanto à insuficiência da tutela protetiva.

Logo, chega-se à importância da segunda indagação. Para a segurança jurídica, é fundamental que exista uma instância legitimada técnica e politicamente para dirimir a sobreposição de ações e omissões fiscalizatórias (auto de infração sobre auto de infração, ou auto de infração sobre inação). Os conselhos de meio ambiente despontam, assim, como foro para soluções. Um conflito entre município e estado quanto à aplicação do artigo 17, § 3º pode ser dirimido pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente, que, em sua composição, deve maximizar a pluralidade de interesses, conformando-se a uma "sociedade aberta de intérpretes" [14].

 


[1] ASIBAMA – Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e Pecma.

[2] No STF, cabe mencionar as ADIs nº 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF, 4.937/DF, além da ADC nº 42.

[3] STF, ADI nº 3937/SP, Plenário, rel. min. Marco Aurélio, red. p/ acórdão min. Dias Toffoli.

[4] Artigo 11, Protocolo de San Salvador (Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais).

[5] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 18ª ed., 2018, p. 107.

[6] STF, ADI nº 4.757/DF, rel. min. Rosa Weber. Inteiro Teor, p. 38.

[7] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília, Imprensa Nacional, 1979.

[8] STF, ADI nº 4.757/DF, rel. min. Rosa Weber. Inteiro teor, p. 109.

[9] STF, ADI nº 4.757/DF, rel. min. Rosa Weber. Inteiro teor, p. 128.

[10] STF, ADI nº 4.757/DF, rel. min. Rosa Weber. Inteiro teor, p. 134.

[11] STF, ADI nº 4.757/DF, peça nº 67, 24 mar. 2023.

[12] STF, ADI nº 4.757/DF, rel. min. Rosa Weber. Inteiro teor, p. 112.

[13] CABRAL, Flávio Garcia. Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2021.

[14] HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: constituição para e procedimental da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997.

Autores

  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

  • é procurador do estado de Goiás, advogado, pós-graduado em Direito Público e bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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