Opinião

A defesa da democracia como dever fundamental do cidadão

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

24 de março de 2023, 11h11

Vivemos, hoje, sob a pressão de dois grandes ideais políticos: a democracia e o constitucionalismo. Erguidos em resposta às tragédias do século passado, a esperança é de que, cultivando-os intensamente, os campos de concentração da Alemanha nazista, os gulags do regime soviético e as torturas da nossa ditadura militar brasileira nunca se repitam. A esperança, vale lembrar, de quem cultiva ideias democráticas e segue entendendo a ditadura, tal como ela é: uma ditadura (ABBOUD, 2021, p.25) [1].

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

A democracia é um fundamento constitucional. Sua defesa, pois, não pode ser atribuição de um poder específico, mas, sim, dever intransigente de todo poder público. Neste artigo, pretendemos também defender a ideia de que a defesa da democracia, sob a égide do constitucionalismo democrático contemporâneo, é também um dever fundamental dos cidadãos que desejam operar neste regime.

Começaremos a desenvolver o argumento, portanto, a partir do fatídico dia da infâmia, ocorrido em 8 de janeiro de 2023. Exatamente uma semana após a posse do novo presidente da República, a Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi tomada por supostos manifestantes que invadiram e destruíram o interior e exterior dos edifícios-sede dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em um dos mais tristes, lamentáveis e violentos episódios da história republicana brasileira.

Esse ato golpista somente logrou êxito porque contou com a conivência e o incentivo, ainda que indireto, de diversos atores públicos e privados, de modo que o trágico 8 de janeiro de 2023 foi tão somente a culminação de um desastre anunciado por anos de gestação de narrativas golpistas, violentas e obscurantistas que, de súbito, tomaram a forma de ações concretas, de modo que, assim como Lenio Streck, Rafael Valim, Walfrido Warde e tantos outros, entendemos que o lavajatismo iniciou o processo de elaboração e incubação do ovo da serpente [2].

O dia da infâmia, portanto, representa o mais forte ataque à frágil democracia constitucional brasileira desde a sua criação, em 05 de outubro de 1988. Recentemente, Ayres Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, defendeu que a democracia é o "princípio dos princípios" constitucionais brasileiros, e que todos os demais princípios são conteúdo deste, inclusive o da separação dos poderes. Ayres Brito também falou sobre as depredações ocorridas em Brasília no dia 8 de janeiro, classificando tais acontecimentos como "um deliberado ataque à democracia, grave demais para ser esquecido" [3].

Concordamos com o ministro. De fato, alguns acontecimentos são graves e trágicos demais para serem esquecidos. Este pensamento, inclusive, culminou na publicação da obra Direito Constitucional Pós-Moderno, fruto da tese de livre-docência do professor Georges Abboud, em que se estudou à ascensão do regime nazista, em detrimento da República Democrática de Weimar [4].

A ideia, portanto, é bastante assertiva: Uma vez que, como comunidade civil, estejamos decididos que não podemos de modo algum retornar e retroceder a certos pontos políticos históricos como civilização, precisamos, inicialmente, entender e compreender como se chegou neste ponto indesejável para início de conversa. É preciso compreender para não se repetir.

Conforme mencionamos anteriormente, as democracias constitucionais vêm sofrendo com aquilo que já chamamos em outros textos de "combo obscurantista", caracterizado pela polarização + teorias conspiratórias + fake news [5]. Tudo isso manipulado e estimulado através de plataformas digitais. Neste sentido, por exemplo, dois meses após os ataques golpistas à sede dos três Poderes, em 8 de janeiro, o ministro Gilmar Mendes defendeu a regulamentação das redes sociais e a responsabilização das plataformas por eventuais envolvimentos nos atos antidemocráticos. O ministro citou exemplos de países em que há modelos de regulamentação das mídias sociais, como a Alemanha, sem que a liberdade de expressão seja cerceada, e sim utilizada com responsabilidade [6].

Em semelhante sentido, o advogado-geral da União, Jorge Messias, reiterou discurso em prol da criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia. Nas palavras do advogado-geral da União: "A barbárie protagonizada nessa fatídica data, com a destruição dos prédios-sede dos Poderes da República e de objetos de valor inestimável, mostrou o quanto é necessário que o Estado possua uma estrutura que dê respostas e cobre responsabilidades pelas violações de bens jurídicos de alto valor social".

Este é, pois, o ponto: direitos carregam consigo uma necessária e indissociável carga de responsabilidade, dever e accountability. Em um Estado Democrático de Direito, o cidadão espera, com razão, ser tratado com igual respeito e dignidade, tendo seus direitos e liberdades protegidas. É este o esforço da civilidade moderna. Não obstante, este mesmo cidadão deve, necessariamente, assumir também deveres fundamentais, por coerência lógica e funcional do sistema.

Conforme José Casalta Nabais (2002) [7], os deveres fundamentais seriam a face oculta dos direitos fundamentais. Esta face oculta que, assim como a face da lua, não obstante não se veja, é absolutamente necessária para a correta compreensão do indivíduo, e consequentemente, da condição humana em sede dos direitos fundamentais no âmbito de um Estado Democrático de Direito. Os deveres fundamentais, portanto, assim como os direitos fundamentais, integram o estatuto constitucional do cidadão. Não podemos ter apenas metade desta conversa, por mais inconveniente e impopular que possa parecer.

Por mais óbvio que possa parecer, muito embora atualmente o óbvio precise ser defendido e reforçado, em um Estado que se diz Democrático de Direito, o compromisso com a democracia e o Estado de Direito é, claramente, um dever fundamental. Não há, portanto, "um direito fundamental a defender golpe militar". O já clássico paradoxo de Popper tratou de deixar isso claro. Assim, conforme perfeitamente explicitado por Lenio Streck, não podemos, a partir de um exemplo de hermenêutica dos pés virados, entender que a nova Lei de Defesa do Estado Democrático (14.197/2021) garanta a livre manifestação golpista, desde que feita de forma pacífica [8].

A escalada autoritária que culminou nos trágicos atos terroristas de 8/1/2023 é, portanto, ilegal e inconstitucional. Nesse sentido, o PSOL, entendendo ser dever do STF continuar a garantir as condições de uma esfera pública democrática e orientar a administração pública e o Judiciário no combate a uma série de práticas até então praticamente impunes ou cujas consequências eram inespecíficas, protocolou uma ADPF com o intuito de discutir o entendimento constitucional aplicado ao artigo 142 da Constituição.

De acordo com o partido, a ideia de uma intervenção militar retira a política das mãos dos civis, a quem a Constituição atribuiu o exercício dos Três Poderes independentes e harmônicos Também é prejudicial às próprias Forças Armadas, sobre as quais começa a pesar um "fardo de corresponder a ideais ressentidos e violentos de parte da população".

Na ADPF, a legenda explica que as Forças Armadas não têm a prerrogativa de proteger os Poderes e intervir na vida política da nação. O papel de árbitro dos conflitos entre os Poderes é, na verdade, do STF, considerado o guardião da Constituição e da democracia.

Em outras palavras, aguarda-se que o Supremo Tribunal Federal esclareça que o artigo 142 da Constituição não transformou as Forças Armadas no superego da população. E que as pessoas não possuem o direito de pedir por golpe militar. E mais: que isso é crime.

A democracia e o Estado de Direito somente funcionam através de uma relação mútua, de modo que a existência e sobrevivência de uma pressupõe, necessariamente, a existência e sobrevivência da outra. A democracia é, portanto, mais que um valor moral a ser defendido na sociedade. É, pois, um dever fundamental dos cidadãos. Conforme sintetizou Zakaria (1997, p. 1) [9], quando se fala em democracia no ocidente, estamos na verdade falando sobre a poliarquia liberal republicana, ou seja, um sistema político marcado não apenas por eleições livre e justas, mas também pelo respeito ao império da lei, separação de poderes e proteção de liberdades, como liberdade de expressão, religiosa, propriedade, entre outras.

A ideia, portanto, é que democratas liberais vislumbram uma sociedade tolerante, inclusiva, pluralista e multiculturalista, composta por pessoas que aderem a uma variedade de sistema de crenças, nas quais ideias e heranças se chocam, eventualmente, com outras e competem por adesão na comunidade, de forma que o princípio da tolerância mútua, bem como, o respeito ao império da lei, evitam o conflito entre estes sistemas de crenças antagônicos. Esse common ground, para utilizar uma expressão dworkiana, somente faz sentido no chão comum da democracia. A democracia, portanto, passa a ser condição de possibilidade do Estado Constitucional de Direito.

Sabemos que, no mundo real, uma sociedade pluralista deve enfrentar dificuldades reais (e perigosas) com a convivência: isto porque, em uma sociedade pluralista complexa, não é fácil definir exatamente até onde vai o dever de tolerância mútua sob certas circunstâncias. Contudo, nossos desacordos morais devem ser resolvidos no seio e à luz da democracia. Esta é uma precondição inafastável e inegociável. Novamente, é a lógica do paradoxo de Popper.

Applebaum (2021, p. 19) [10], aduzira que Hamilton, John Adams e Thomas Jefferson, com apoio nas histórias e experiências grega e romana, tentavam descobrir uma engenharia institucional que evitasse que uma nova democracia se tornasse uma tirania, buscando construir uma democracia com base no debate racional, na razão e no compromisso, muito embora soubessem do sempre presente risco de uma explosão humana de irracionalidade, como vimos no dia 8 de janeiro de 2023.

Isto foi resolvido a partir do arranjo institucional de que uma instituição deve possuir o poder/dever de exercer o caráter contramajoritário quando necessário, evitando a tirania da maioria. Conforme Abboud (2021, p. 28) [11], o constitucionalismo forneceu à democracia diversas instâncias contramajoritárias para a proteção da própria ideia de democracia, de modo que o balanceamento entre democracia e constitucionalismo forma, portanto, o tecido social do processo civilizatório da maior parte das democracias constitucionais.

Assim, tem-se que a democracia atua a partir de seus impulsos de igualdade, enquanto o liberalismo atua conforme seu compromisso de proteção à liberdade aos indivíduos na sociedade, e o republicanismo, por sua vez, em sua severa visão das obrigações daqueles que governam (accountability), convergindo todos estes valores em um aspecto fundamental da poliarquia e do Estado Constitucional de Direito: o respeito ao império da lei e da democracia, estando todos, sem exceção, sujeitos a uma forte ideia de accountability.

Desta forma, Alexis de Tocqueville, com clarividência que ainda hoje nos impressiona, dizia com assertividade que a reclamação de direitos e a sua realização não são suficientes; os cidadãos também têm deveres. O dever de respeito e obediência ao império da lei é um deles. O dever de respeitar a democracia também. É este o chão comum que nos une, como dita sociedade civilizada.

A maior demonstração de amor e respeito que um cidadão verdadeiramente patriota pode oferecer ao Brasil deve se dar, em primeiro lugar, na defesa intransigente da democracia e das instituições que a representam e dão voz ao povo brasileiro, sendo condição de possibilidade para o desenvolvimento nacional e promoção de liberdade individual. As instituições nacionais, a divisão e complementação dos poderes, os pesos e contrapesos, e a ideia que ninguém está acima do império da lei e que todos estão sujeitos ao accountability, que somente coexistem no Estado Democrático de Direito, são as garantias para a estabilidade e harmonia entre os cidadãos. Defender a democracia, portanto, é mais que um imperativo categórico: é um dever fundamental do cidadão.

 


[1] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Letramento, 2021, p.21.

[4] ABBOUD, Georges. Direito constitucional pós-moderno. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[7] NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Revista Direito Mackenzie, v. 3, n. 2, 2002. APA

[9] ZAKARIA, Fareed. Illiberal democracy. Foreign Affairs, v. 76, n. 6, p. 22-43, 1997.

[10] APPLEBAUM, Anne. O crepúsculo da democracia. Editora Record, 2021, p.19.

[11] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2021, p. 28.

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