Interesse Público

O debate sobre poder regulamentar e políticas públicas na ADI 4.727

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

23 de março de 2023, 8h00

O Supremo Tribunal Federal vem de julgar, em 23/2/2023, a ADI 4.727, que tinha por objeto a Lei 1.600, de 28 de dezembro de 2011, do estado do Amapá — mais especificamente, seu artigo 8º, que fixava, à administração pública, o prazo de 90 dias para regulamentar essa mesma norma que autorizava a instituição do Programa Bolsa Aluguel. O programa, por sua vez, cuidava de prestação pecuniária a ser ofertada a destinatários que a própria lei previa em favor de beneficiários virtuais, observado um teto de renda per capita até três salários mínimos.

Spacca
O julgamento concluiu, por maioria de votos, pela inconstitucionalidade do preceito que fixava prazo para que a administração empreendesse à regulamentação do referido benefício — a partir do voto divergente do ministro Gilmar Mendes, que requerera anteriormente o destaque da matéria, originalmente submetida ao Plenário Virtual. O fundamento principal da decisão por maioria foi o de necessária observância ao princípio de equilíbrio e harmonia entre os Poderes, que se teria por malferido quando o Legislativo fixa prazo para o exercício pela administração de seu poder regulamentar.

No voto inicialmente condutor, o ministro Fachin descartou o argumento de usurpação de competência privativa do Poder Executivo — suposto vício de raiz também imputado à norma — a partir de uma leitura literal das hipóteses contidas no artigo 61, § 1º da CF. O argumento se dava no sentido de que não obstante a norma efetivamente estabelecesse obrigações em relação ao Executivo, não se tinha em concreto, violação às hipóteses de iniciativa reservada específicas previstas no já referido artigo 61, § 1º CF; tudo na mais estreita consonância com o entendimento fixado na tese de repercussão geral antes enunciada no Tema 917.

Como se sabe, a posição segundo a qual não cabe ao Poder Legislativo fixar prazo para que a administração empreenda à regulação de norma legal não se constitui novidade no acervo de casos da corte [1]. Ocorre que o ministro Fachin vislumbrava, como diferencial da hipótese em concreto, a circunstância de que se estava a cuidar de norma legal concretizadora de direito fundamental, que a seu ver, obrigava igualmente a todos os braços especializados de poder — donde não haveria que se falar em invasão de atribuição, eis que o dever de agir em desfavor da administração seria de extração constitucional, suscetível de censura inclusive pela via da ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão.

A divergência, como já antes referido, foi inaugurada pelo voto do ministro Gilmar Mendes que, fiel à jurisprudência já construída pela corte em relação ao descabimento dessa fixação de prazo para o exercício pelo Executivo de sua função regulamentar, vislumbrava na hipótese violação ao equilíbrio e harmonia entre os Poderes e à reserva da administração. Entre os argumentos apresentados, o ministro Gilmar Mendes aludia à incompatibilidade lógica entre uma lei de natureza puramente autorizativa — como era a hipótese — e a fixação de um prazo peremptório de regulação. O voto divergente, é curioso apontar, não endereçou especificamente à distinção empreendida pelo relator, que via na orientação da norma em crivo à concretização de direitos fundamentais, fundamento suficiente para afastar-se da jurisprudência estabelecida em hipóteses anteriores em relação a normas jurídicas de outro conteúdo.

É de se dizer que o Programa Bolsa Aluguel em si — disso deu conta o ministro Fachin — está em andamento, dado de fato que pareceu oferecer aos ministros conforto para decidir, no (equívoco) suposto de que o que ali se enunciasse não teria efeitos concretos. Digo suposto o equívoco, porque salvo erro ou omissão, a lógica mesmo de enunciar teses, ainda que em sede de controle concentrado de constitucionalidade, é fixar-se um parâmetro para os atores que se movimentam na cena do sistema jurídico. Assim, a tese enunciada na ocasião [2] orienta a compreensão do texto constitucional na matéria do conteúdo possível da ação do legislador quando cogitando de estabelecer obrigações para o Executivo — o que por si já parece ser consequência prática relevante o suficiente.

Fato é que o caso ofertava a possibilidade de analisar-se a posição veiculada pelo ministro Fachin, relacionada a um distinto regime jurídico a se aplicar especificamente à regulamentação de lei garantidora de direitos fundamentais. A hipótese em si se verifica com relativa frequência, e estaria a merecer um exercício de engenharia constitucional orientado à concretização desses mesmos direitos — mas sem perder a abertura à realidade, indispensável à ação do poder público.

O conteúdo da Lei 1.600/2011 traduz uma política pública a ser implementada no estado do Amapá. Não obstante a norma legal tenha se ocupado de dimensões relevantes, como a delimitação de hipóteses fáticas determinantes dos benefícios, e alguns parâmetros relacionados à indicação de seus possíveis destinatários, há um amplo conjunto de elementos relevantes à determinação do conteúdo da ação pública desejável, que não se tinha ali contemplados, e que não dependem exclusivamente de um juízo discricionário a ser desenvolvido pelo gestor de turno.

Regular lei instituidora de política pública é, em última análise, trazê-la para o plano da execução possível — e isso não compreende exclusivamente a dimensão financeira do dever de agir, mas todas as atividades que estão relacionadas à oferta da prestação. E isso, no campo dos direitos socioeconômicos, não se resolve com a proposição consagrada de Seabra Fagundes, segundo a qual administrar fosse simplesmente aplicar a lei de ofício.

É de Bucci (2016)[3] a indicação de componentes mínimos, que permitem uma visão jurídico-institucional de uma política pública — componentes estes, por sua vez, que servirão de ponto de partida, não só para a indispensável avaliação desse programa de ação estatal; mas que igualmente orientarão o eventual exercício de controle por qualquer das estruturas investidas desta função. Tais componentes compreendem elementos como a identificação e distribuição de competências e responsabilidades, além do desenho de mecanismos jurídicos de articulação entre os vários envolvidos, dimensão econômica do programa e estratégias de implantação, dentre outros. São esses, minimamente, os vetores a serem delimitados no exercício da regulamentação de norma legal instituidora de política pública orientada à concretização de direitos socioeconômicos — por isso o estabelecimento apriorístico de prazo pelo legislador, muitas vezes distante dos detalhes do quadro fático real, pode se revelar contraproducente, porque não permita à regulamentação proposta, contemplar todos estes componentes.

Não se pode igualmente desconsiderar o imperativo de que a regulação da política pública instituída originalmente pelo legislador deve conter por si só, elementos que permitam a métrica de seus reais efeitos no grupamento social a que ela se orienta, para que se possa empreender ao aprendizado institucional e aperfeiçoamento que são próprios ao encerramento de um ciclo de temporal. Mais do que o simples dever de agir, a administração tem o dever de produção de resultado — e para que isso seja mensurável, é de se estabelecer as metas e os indicadores de desempenho.

Por estas razões, já se pode verificar que oferecer ao legislador a alternativa de fixar prazo vinculante para que a administração proceda à regulamentação pode abrir ensejo a que se tenha como em tese exigível, uma ação pública que não tem ainda corretamente delineados todos os elementos de que ela necessita para uma execução adequada, apta a empreender efetivamente à tutela do direito fundamental em foco. Em que pese a eficácia imediata dos direitos fundamentais, e dos deveres de ação que deles emanam; fato é que a aspiração constitucional é por uma ação pública adequada; apta a oferecer resposta ao problema social que o direito fundamental enunciado quis enfrentar. E para isso, é preciso que a administração tenha em seu favor, o prazo necessário ao desenvolvimento da atividade regulamentar em toda a extensão que ela deve abranger.

O discurso da eficácia imediata dos direitos fundamentais tem por vezes ensejado uma visão simplificadora sobre como se pode oferecer resposta estatal compatível com os compromissos constitucionais. A mística de que basta a ação legislativa contamina o debate na matéria, e aponta sempre a Administração como a principal instância de bloqueio aos objetivos constitucionais. O problema está em que a precipitação na oferta da prestação "A" ou "B", a partir de um desenho genérico estatuído pelo legislador, pode se revelar em verdade, regressiva [4], por externalidades como a subcobertura, a quebra de nexo de causalidade entre a hipótese fática descrita e o fenômeno a ser combatido, dentre outros aspectos.

Ao fim e ao cabo, o resultado do julgamento da ADI 4.727 alinha-se com aquilo que esta escriba crê seja o melhor equacionamento da matéria — todavia, ainda por conta de argumentos de uma teoria clássica de Direito Constitucional hoje já desafiada [5] e que, quando lhe convém, a própria corte descarta. O risco está em que o argumento de um regime diferenciado para a imposição de deveres de regulamentação, quando se cuide de norma concretizadora de direitos fundamentais, sempre pode recrudescer — e o fascínio retórico da proclamação de um resultado segundo o qual o legislador pode subordinar à administração pode prevalecer.

 


[1] Cite-se, a título de ilustração, as ADIs 4.728 e 4.052.

[2] O acórdão não foi ainda publicado, donde não se tem a enunciação final formulada à tese de julgamento.

[3] BUCCI, Maria Paula Dallari. Quadro de referência de uma política pública. Primeiras linhas de uma visão jurídico-institucional. O Direito na Fronteira das Políticas Públicas. São Paulo: Páginas e Letras Editora e Gráfica, p. 7-11, 2015.

[4] Examinando esse tema, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do. Mercantilização de direitos fundamentais e o potencial regressivo das decisões judiciais. in MEDEIROS, Clayton Gomes de e BRASIL, Bárbara Dayana (org.). Estado, Direito Administrativo e concretização de direitos fundamentais. Estudos em homenagem à Prof. Adriana da Costa Ricardo Schier. p. 371-398.

[5] Discutindo exatamente a insuficiência da teoria clássica de tripartição de poderes, consulte-se ACKERMAN, Bruce. Adeus, Montesquieu. Revista de Direito Administrativo, v. 265, p. 13-23, 2014.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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