Anistia, de Pedro Süssekind, é antídoto
a um certo radicalismo
19 de março de 2023, 8h00
No roteiro narrativo da Odisseia, atribuído a Homero (o poeta grego cego que não se tem certeza que existiu, mas que existe, porque sempre nos referíamos a ele, inventado ou não) Ulisses retorna para Ítaca. Penélope, a esposa fiel, o aguarda, tecendo e desfazendo o famoso novelo. Telêmaco, o filho, passara a vida buscando a notícia do pai. Argos, o fiel cão de Ulisses, é quem reconhece o viajante guerreiro. Prova maior de fidelidade e de memória não pode haver.
Pedro Süssekind, em Anistia, um enredo elaborado com muita competência e inteligência, aplica a narrativa da Ilíada a um momento central da recente história brasileira. Livro oportuníssimo como um antídoto a narrativas revisionistas e curiosamente saudosistas que se misturam com certo radicalismo de fanáticos; alguns foram recentemente presos, aqui em Brasília, ainda que tivessem enfatizado que foram presos contra a própria vontade. É tudo muito irônico, se não fosse tudo muito trágico e deplorável. O livro de Pedro Süssekind, que leciona Filosofia e Estética na Universidade Federal Fluminense chama a narrativa à ordem. Um livro oportuníssimo.
O leitor passeia pelo Rio de Janeiro do fim dos anos 1970. A Rua Paissandu, a comida árabe do Largo do Machado (Rotisserie Sírio-Libanesa, talvez), o Largo de Santo Antonio, a Cinelândia, tudo parece tão vivo ainda. Há uma descrição da entrada do Gabinete Português de Leitura. Estive lá dia desses. Parece que o tempo não volta mais. Triste.
Em Anistia, Pedro Süssekind conta-nos a estória de Emílio Riva, jovem estudante. A namorada fora para Paris estudar cinema. A mãe era modista. O pai (Luís Riva, além de outros nomes que protagonizou na clandestinidade) era professor e tradutor. Helenista, Luís Riva é o ponto de ligação entre a estrutura narrativa do retorno de Ulisses após os anos na guerra contra os troianos e a estrutura histórica da saída e da volta dos que enfrentaram o regime instaurado em 1964.
O autor costura esses dois lugares-comuns narrativos, um deles imaginário e distante (no tempo e no espaço) e o outro, real e tão próximo (também no tempo e no espaço). Do ponto da teoria literária, penso, o autor ajustou uma narrativa canônica a uma percepção historiográfica cuja retomada, creio, julgo necessária. Como se lê em texto programa de um crítico memorável (Antonio Candido) a literatura deve ser tratada literariamente, "reivindicando sua autonomia e a sua independência, acima das paixões nem sempre límpidas do momento". Esse postulado estético não significa, necessariamente, que se possa separar narrativa e vida, enredo e circunstância. Dependendo da forma como lido (e creio só possa haver essa forma) Anistia é um livro de militância. O título assim o sugere, o título assim o confirma.
O leitor tem em Anistia ingredientes que aproximam epopeia e romance. Não há indivíduos problemáticos ou reativos à realidade. O personagem central é simples, humano, medíocre até, no que essa expressão carrega de normalidade e de positivo. É uma pessoa média. Não se altera. Não se desespera. Sente a distância do pai, mas com discrição. Sente a distância da namorada, mas com resignação. Sente as dubiedades da mãe, mas com compreensão.
Há, no entanto, uma pergunta que assola o leitor: por que tudo aquilo? A narrativa da prisão é hoje lugar-comum, e não há necessidade de consulta de materiais da Comissão da Verdade. Há também certas passagens que definitivamente inscrevem Anistia na categoria de romance histórico. É que o Ulisses da história teria participado do célebre roubo dos dólares de Adhemar de Barros, na mansão de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde vivia o irmão de Ana Benchimol, ao que consta amante do político paulista que prometia fé em Deus e pedia pé na tábua.
A ficção romanceada não precisa necessariamente chegar na guerra dos emboabas, ou no ofício de Pero Vaz de Caminha ou esquartejamento de Filipe dos Santos. Há farto material mais recente, com também farta universo para pesquisas, sobremodo de jornais e revistas, hoje tudo disponibilizado com um toque de computador junto ao sítio eletrônico da Biblioteca Nacional.
A discussão em torno da anistia, recentemente retomada no contexto da ação de descumprimento de preceito fundamental relatada pelo então ministro Eros Grau é o núcleo historiográfico do livro. O próprio conceito de "desaparecido" que o livro revela como uma metáfora escancarada, faz também parte de acervo crítico que Pedro Süssekind nos sugere.
Parece-me que um livro é genuinamente nacional quando nos vemos em suas páginas. Eu me vi, especialmente do ponto de vista geracional, porque tinha 18 anos em 1979. Talvez eu não percebesse tudo aquilo que ocorria em minha volta, ou talvez não tenho ocorrido daquela forma, ou talvez ainda eu tenha sido suficientemente alienado ou feliz por não ter passado por tanto sofrimento. Lembro-me de meu tio, Josué de Godoi, e de seu desespero para que familiares não o visitassem no presídio. Ele sabia o que ocorreria. Essa compreensão é talvez a chave interpretativa para a viagem infinita do pai do personagem principal. Isto é, e não o consideramos o personagem principal. A Odisseia era mais Ulisses ou mais Telêmaco? Decida o leitor.
Nas minhas anotações eu registrei que criticaria o livro pelo excesso de personagens, muitos não necessários (na minha opinião) para a construção de uma narrativa sólida. Desisti de apontar essa crítica quando li a última frase, fechei o livro e chorei, tomado por muita emoção.
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