Processo Novo

Onde começam e terminam as competências do Supremo e do STJ

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

15 de março de 2023, 13h10

Coisa julgada é tema de direito constitucional? Ou tema de direito federal infraconstitucional? Ou se trata de questão mista, a um só tempo constitucional e federal infraconstitucional?

Spacca
No artigo anterior de Processo Novo, fiz comentário breve à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal a respeito dos temas 881 e 885. Em apertada síntese, no julgamento concluído há poucas semanas, o STF decidiu que as decisões por ele proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado quanto a relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. Como pano de fundo, a discussão quanto a se saber se a decisão antes proferida pelo STF em 2007 ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade 15 impediria, desde então, o prosseguimento de produção de efeitos de decisões transitadas em julgado em favor de contribuintes [1].

Venho defendendo, em outras publicações e em palestras, que referido entendimento deveria projetar seus efeitos a partir do julgamento agora realizado pelo Supremo. Uma das razões que me conduzem a esse modo de pensar é o fato de o Superior Tribunal de Justiça ter se manifestado em sentido diverso ao decidir o tema repetitivo 340 (REsp 1.118.893, julgado em 23/3/2011). Nesse julgado, o STJ, referindo-se textualmente àquela decisão proferida pelo STF em 2007, firmou o entendimento de que "o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade".

Uma das críticas que venho recebendo assenta-se no seguinte fundamento: coisa julgada é tema de direito constitucional; logo, o STJ não teria autoridade para se pronunciar a respeito.

A Constituição de 1988 criou dois tribunais de cúpula dedicados à definição da inteligência do direito federal: o STF, com competência para se pronunciar a respeito de direito constitucional, e o STJ, sobre direito infraconstitucional. Com essa solução, buscava o constituinte solucionar problema crônico que ficou conhecido como "a crise do Supremo", que se arrastava há décadas, decorrente da quantidade muito grande de processos que chegavam a esse tribunal [2].

Essa divisão de tarefas, à época, parecia dar-se com base em balizas bastante claras, pois assuntos de direito constitucional não se relacionariam com temas de direito infraconstitucional, salvo em situações pontuais. Pensava-se, então, que o conflito que se desse entre tais regras se resolveria em termos de pronúncia de validade ou nulidade de regra infraconstitucional que contrariasse a Constituição (tanto em julgamentos de ações diretas quando de recursos extraordinários, nos casos das alíneas b e c do inciso III do artigo 102 da Constituição). A jurisprudência existente à época do labor do constituinte era refratária a técnicas de controle de constitucionalidade que a doutrina já vinha chamando de "interpretativas", a exemplo da interpretação conforme à Constituição. Em julgado expressivo para indicar o entendimento que, à época, era prevalecente, o Supremo afirmou que, embora admissível, aquela técnica teria aplicação limitada entre nós, já que o Supremo atuaria, apenas e tão somente, como "legislador negativo" (Representação 1.417, relator ministro Moreira Alves, julgada em 9/12/1987).

A Constituição de 1988, no entanto, serviu de influxo ao florescimento de movimentos doutrinários — e, depois, jurisprudenciais — que, para além de reconhecer a efetiva força normativa da Constituição, também defendiam que ela haveria de ser sempre considerada na interpretação e aplicação de disposições infraconstitucionais. Exemplo dessa tendência é a doutrina da "constitucionalização do direito privado" (ou "constitucionalização do direito civil"), a significar que as regras de direito constitucional e de direito privado (ou de direito civil) não viviam em compartimentos estanques, e que valores constitucionais haveriam de ser, sempre, tomados em consideração na interpretação e aplicação de disposições infraconstitucionais. Uma regra específica prevista em lei dedicada a disciplinar relações privadas (como o Código Civil, ou qualquer lei ordinária), assim, poderia ser afastadas pelo Judiciário caso considerada contrária à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República brasileira, a que se refere o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.

Ao mesmo tempo, a jurisprudência do Supremo foi evoluindo, reconhecendo e aplicando não só técnicas "interpretativas" (como a interpretação conforme, acima referida, e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto), mas também técnicas consideradas "atípicas" de julgamento, tais como as decisões manipulativas (substitutivas ou aditivas). Bom exemplo desse salto pode ser observado com a leitura do voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 (relator ministro Ayres Britto, julgada em 5/5/2011). Essa evolução fez-se acompanhar pela acomodação legislativa, como sucedeu com a Lei do Mandado de Injunção. Com efeito, a Lei 13.300/2016 admite a concessão de injunção para "estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los, caso não seja suprida a mora legislativa no prazo determinado" (artigo 8º, caput, II), podendo a decisão ter eficácia ultra partes ou erga omnes (artigo 9º, §1º). O próprio Congresso, assim, age de modo a reconhecer ao STF legitimidade para realizar deliberações que o legislador não pode ou não quis fazer [3].

É evidente, portanto, a expansão observada pelo Supremo, em sua atuação. Diante do cenário apontado acima, todas as questões de direito acabam sendo consideradas potencialmente constitucionais. Afinal, pouco ou nada que interessa à vida das pessoas escapa do alcance de alguma regra da Constituição. Não bastasse, o próprio legislador aceita (ou ao menos tolera) uma atuação expansiva do Supremo, ao menos em relação a temas mais sensíveis que poderiam atrair a cólera do povo.

Tudo isso acaba por "enfraquecer" a força normativa de regras infraconstitucionais, e, a reboque, a força dos precedentes daquele tribunal criado pela Constituição de 1988 com a atribuição de definir a inteligência dessas regras federais infraconstitucionais: o Superior Tribunal de Justiça.

Está-se diante de um evidente estado indesejado de coisas. Afinal, as regras infraconstitucionais têm razão de ser e devem ser observadas, se não porque desempenham relevante função na estruturação dos mais variados institutos jurídicos, ao menos pelo fato de que a própria Constituição erige como direito fundamental a observância à lei como referencial para a criação de deveres positivos e negativos (artigo 5º, caput, inciso II: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"). Ora, se devemos observância à Constituição e às leis, é natural que voltemos os olhos ao modo como o intérprete "oficial" dessas leis — o STJ — ditam seu sentido e alcance.

Esse estado de coisas acabou criando um problema para o Supremo. Se, como se disse, quaisquer assuntos jurídicos podem ser considerados potencialmente abrangidos pelas normas constitucionais, é natural que os conflitos interpretativos daí decorrentes sejam levados ao STF. Mas isso é indesejável, sob pena de se inviabilizar a atuação do próprio Supremo.

Várias estratégias vêm sendo criadas com o propósito de limitar a quantidade de causas que chegam ao Supremo. A mais conhecida é a exigência de que as questões constitucionais veiculadas em recursos extraordinários ostentem repercussão geral (cf. artigo 102, §3º, da Constituição, adicionado pela Emenda Constitucional 45.2004). Outra, a de atribuir à questão constitucional reflexa (ou indireta) o mesmo destino da questão constitucional que não apresente repercussão geral.

Quando o Supremo decide que determinado tema de direito federal não diz respeito diretamente (mas apenas reflexa ou indiretamente) à inteligência da Constituição, espera-se que daí decorra a consolidação (ou o fortalecimento) da competência do STJ para tratar de dilemas relacionados a esses assuntos.

Um exemplo: o STF, ao deliberar a respeito do Tema 660, assim decidiu: "Tema relativo à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal. Julgamento da causa dependente de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Rejeição da repercussão geral" (ARE 748.371 RG, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 6/6/2013).

Essa solução poderia ser considerada satisfatória. Afinal, se observada em plenitude, apenas excepcionalmente se admitiria recurso extraordinário quando o tema constitucional fosse versado em regras infraconstitucionais. "Sua admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na interpretação e aplicação do direito, o Juiz desconsiderou por completo ou essencialmente a influência dos direitos fundamentais, que a decisão se revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do direito ordinário ou, ainda, que se ultrapassaram os limites da construção jurisprudencial", como consta do voto condutor da decisão sobre o Tema 660.

No entanto, com frequência o problema retorna ao exame do Supremo, a quem incumbe, em última análise, deliberar sobre os lindes existentes entre questão constitucional direta e questão constitucional indireta (ou reflexa), que também é infraconstitucional.

Foi o que sucedeu no caso a que nos referimos no início do presente texto. O STJ havia deliberado a respeito da força da coisa julgada formada em ações movidas individualmente por contribuintes contra o Fisco. Bem ou mal, deu uma solução ao problema, que também tem contornos previstos em lei federal infraconstitucional. Acrescente-se que, ao deliberar sobre o tema 660, o Supremo decidira que violação aos "limites da coisa julgada" configuraria ofensa meramente reflexa à Constituição. Recorde-se, como se não bastasse, que o STJ firmou a orientação antes referida ao deliberar sobre tema repetitivo, algo que, consoante informa o próprio regimento interno desse tribunal, não deve ser considerado um pronunciamento qualquer, mas um precedente qualificado.

Não me parece acertado afirmar-se que esse precedente qualificado do Superior Tribunal de Justiça mereceria ser, desde sempre, desrespeitado, sob o argumento de que tocaria ao Supremo decidir a respeito. Ora, o próprio Supremo não deixa tais limites muito claros. No mínimo, há que se dizer que, enquanto não houver deliberação final do Supremo sobre questão constitucional reflexa, há que se observar o precedente qualificado firmado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Esse assunto merece desenvolvimento mais aprofundado. Mas as considerações acima, feitas em resposta às críticas ao entendimento de que o precedente do STJ deveria ser desrespeitado, servem, a meu ver, para justificar que aquela orientação recentemente firmada pelo STF deve ser modulada. Para além disso, deve ser objeto de atenção o problema relacionado aos limites bastante confusos entre as competências constitucionais dos referidos tribunais. Esse problema é grave, pois pode haver assuntos que o Supremo, em dado momento, sequer considere diretamente constitucional (o que ensejaria a atuação do STJ, inclusive com a edição de precedente vinculante), mas depois declare constitucional e reconheça a sua repercussão geral, enunciando tese que faça cair por terra precedente do STJ. A insegurança jurídica decorrente desse estado de coisas é manifesta. A análise destas e de outras nuances ficarão para outras edições desta coluna, pois esta já vai longe, e não se cansar ainda mais o leitor que, com muita boa vontade, conseguiu chegar até aqui.


[2] Escrevemos com vagar sobre a história desses dois tribunais em Prequestionamento, Repercussão Geral da Questão Constitucional, Relevância da Questão Federal (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2017).

[3] Fizemos análise demorada dessas questões na obra Constituição Federal Comentada (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2022).

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM, ex-visiting scholar na Columbia Law School, em Nova Iorque (EUA), ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015, advogado, árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

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