Processo Novo

Supremo deve modular efeitos de decisão sobre coisa julgada

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

15 de fevereiro de 2023, 8h00

Em julgamento concluído em 8/2/2023, o Supremo Tribunal Federal deliberou que as decisões por ele proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado quanto a relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

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O assunto é extremamente complexo e pode ser analisado em várias camadas. Nesta edição da coluna me deterei em alguns problemas relacionados, especificamente, à necessidade de modulação de efeitos da referida decisão, para que a tese firmada seja aplicada daqui em diante, e não retroativamente.

Nas relações jurídicas de trato sucessivo (ou de trato continuado, expressão contida no artigo 505, inciso I do Código de Processo Civil de 2015), havendo alteração do estado de fato ou de direito, a coisa julgada torna-se ineficaz. Note-se que a sentença transitada em julgado não se torna nula, nesse caso. Ela permanece válida, regendo pedido e causa de pedir formulados em atenção ao estado de fato e de direito que a informaram.

É o que ocorre com a sentença que fixa o valor a ser pago a título de pensão alimentícia: havendo alteração da situação financeira das partes, o valor da pensão alimentícia poderá ser revisto. A coisa julgada formada na ação de alimentos não é rescindida, pois ela adere às condições fáticas e jurídicas antes existentes. A superveniência de novas condições (por exemplo, aquele que recebe pensão alimentícia é aprovado em concurso e passa a receber remuneração por seu trabalho) exigirá que novo valor seja estabelecido, já que a sentença antes proferida é ineficaz em relação a essa nova circunstância fática.

O Supremo partiu do pressuposto de que, quando ele decide sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma regra jurídica que tenha sido considerada no julgamento de relações tributárias de trato sucessivo, há modificação de estado de direito. As decisões proferidas anteriormente, assim, tornam-se ineficazes diante do novo quadro normativo decorrente da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Seguiu-se o entendimento de que decisão do Supremo que declare o tributo constitucional ou inconstitucional é análoga a uma nova lei que altere o tributo. Alterada a lei, a sentença anterior é ineficaz em relação à nova circunstância jurídica — embora continue a existir validamente em relação as contingências que existiam previamente. Para os ministros do Supremo, sua declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade operaria de modo similar à nova lei que altera o status jurídico em que se baseara sentença antes transitada em julgado. Assim, o tributo poderia ser doravante devido ou indevido, caso o Supremo declare que o dispositivo que instituiu o tributo legal é constitucional ou inconstitucional.

O primeiro problema reside exatamente aí. Esse entendimento (quanto à ineficácia de coisa julgada formada anteriormente ante a superveniente decisão do Supremo em controle de constitucionalidade), conquanto tomado à unanimidade pelos ministros da corte, não era pacífico na jurisprudência dos tribunais (na sessão realizada em 8/2/2023, aliás, vários dos ministros afirmaram inexistir manifestação do plenário da corte a respeito dessa questão). Tenha-se presente que mesmo o Superior Tribunal de Justiça se manifestara em sentido diverso, tendo, inclusive, consagrado seu entendimento ao decidir o tema repetitivo nº 340 (REsp 1.118.893, julgado em 23/3/2011). O assunto, portanto, carecia de deliberação pelo plenário do Supremo e, enquanto isso, no Superior Tribunal de Justiça sedimentara-se orientação contrária à que veio a prevalecer, só agora, no Supremo Tribunal Federal.

Pode-se afirmar que ao Supremo Tribunal Federal, e não ao Superior Tribunal de Justiça, incumbe dar a "última palavra" a respeito da questão. Mas, assim como tantos outros, também aqui está-se diante de ponto em que há dúvida quanto a se saber se o tema é puramente constitucional, puramente infraconstitucional, ou apenas reflexamente constitucional. Enquanto não houve deliberação do plenário do Supremo Tribunal Federal a respeito, o que havia a nortear não apenas os jurisdicionados, mas também os órgãos jurisdicionais, era a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Há, ainda, outros problemas.

No caso levado em consideração, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que foi tida como aquela que modificou o estado de direito (a que se refere o artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil) seria a proferida pela Corte em 2007, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 15. No caso, pleiteava-se a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 7.689/1988, mas o pedido foi julgado parcialmente improcedente. Consta, da ementa do referido julgamento, naquilo que nos interessa: "Improcedência das alegações de inconstitucionalidade formal e material do restante da mesma lei, que foram rebatidas, à exaustão, pelo Supremo Tribunal, nos julgamentos dos RREE 146.733 e 150.764, ambos recebidos pela alínea 'b' do permissivo constitucional, que devolve ao STF o conhecimento de toda a questão da constitucionalidade da lei".

De acordo com o artigo 23 da Lei 9.868/1999, "efetuado o julgamento" de ação direta pelo Supremo, "proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada". O artigo 24 da mesma Lei, por sua vez, estabelece que "proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória". No caso, e na parte que aqui importa, o pedido veiculado na ação direta de inconstitucionalidade nº 15 foi julgado improcedente, o que conduziria à declaração de constitucionalidade da disposição impugnada.

Sempre consideramos inapropriada a ideia prevalecente na jurisprudência majoritária do Supremo (cf., por exemplo, Rcl 1.880-AgR, 431.715-AgRg) no sentido de que, julgada improcedente ação direta de inconstitucionalidade, a regra atacada haveria de ser considera doravante inatacável, insuscetível de ser considerada inconstitucional por outra causa de pedir. Assim escrevemos, em sede doutrinária: "Segundo nosso modo de pensar, a decisão que declara a constitucionalidade (isso é, que julga improcedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade ou julga procedente pedido em ação declaratória de constitucionalidade) apenas rejeita o fundamento que poderia conduzir à inconstitucionalidade da norma. Os juízes do STF não são oniscientes, não sendo possível declarar, a priori, que inexiste qualquer outra razão que possa levar a que se considere inconstitucional a norma. Dizer, como o STF diz nesses casos, que 'a norma x é constitucional', não significa mais que dizer 'o fundamento y não torna a norma x inconstitucional'. […] Como afirmamos acima, tal conclusão é impossível: o STF não pode a ela chegar, pois não tem condições de afirmar 'a integral constitucionalidade dos dispositivos questionados', já que algum fundamento novo pode vir a ser suscitado no futuro — ou porque 'descoberto' no sistema, ou porque o estado social e econômico, ou mesmo o sistema jurídico como um todo, sofreu alguma mudança" (Constituição Federal Comentada, 7ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, p. 569, em comentário ao artigo 102, § 2º, da Constituição). Essa orientação já foi considerada pelo STF (cf., p. ex., Rcl 4.374).

De todo modo, ocorre que, como destacaram os ministros que votaram a favor da modulação na sessão realizada em 8/2/2023, o reconhecimento da constitucionalidade da regra atacada e a consequente ineficácia das decisões proferidas em favor de contribuintes em demandas individuais anteriores não teriam sido proclamadas de forma tão clara, quando do julgamento ocorrido em 2007. Nessa ocasião, o pedido foi julgado improcedente sob o argumento de que, em outras decisões (estas, em recursos extraordinários), o tribunal já teria se debruçado suficientemente sobre essa matéria. No entanto, o Supremo não deliberou, explicitamente, sobre o destino das coisas julgadas formadas em ações movidas anteriormente por contribuintes.

Note-se que o Supremo nem sempre agiu (ou age) desse modo. Algo diverso, por exemplo, fez a corte ao julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 101, em 2009, quando, expressamente, afirmou-se que, a partir de tal julgamento, doravante cessariam os efeitos de decisões judiciais pretéritas e proferidas com indeterminação quanto ao seu conteúdo temporal, se contrárias ao comando contido no julgamento proferido pelo Supremo.

Há, por fim, um outro ponto a considerar.

De acordo com a tese firmada pelo Supremo, as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado relações de trato sucessivo. Nem sempre, porém, o conteúdo do julgamento proferido pelo Supremo é claro em termos absolutos, quanto ao seu alcance, em relação a sentenças anteriormente proferidas e transitadas em julgado. Em muitas circunstâncias será indispensável confrontar uma a uma as decisões antes transitadas em julgado com aquela proferida posteriormente pelo Supremo, para, então, se poder conferir se seus comandos são efetivamente opostos e excludentes, ou se convivem ao menos em parte. Pode-se, por exemplo, colocar-se em confronto uma decisão transitada em julgado que tenha reconhecido a constitucionalidade de dado dispositivo legal e, posteriormente, sobrevenha julgado do Supremo que tenha dado interpretação conforme à Constituição ao mesmo artigo de lei, de modo a não ficar claro em que medida haverá efetiva oposição entre tais pronunciamentos.

Em tais circunstâncias, como proceder? O ministro Teori Albino Zavascki, cujas lições foram tantas vezes invocadas no decorrer do julgamento concluído em 8/2/2023, sugere a seguinte saída: "Qualquer controvérsia sobre a ocorrência ou a extensão da alteração do status quo, ou sobre as consequências dela decorrentes, pode provocar a iniciativa dos interessados em levar o tema à apreciação judicial". Não se tratará, nesse caso, de ação revisional: "não será para provocar a constituição ou a extinção ou a modificação da relação jurídica certificada judicialmente, mas para declarar que esses efeitos já foram operados pela mudança do estado de fato ou de direito" (Coisa Julgada em Matéria Constitucional: Eficácia das Sentenças nas Relações Jurídicas de Trato Continuado, Doutrina do STJ – Edição Comemorativa -15 anos, p. 121). O ajuizamento de ações com esse propósito é indesejável, inclusive porque, em país com dimensões gigantescas como o Brasil, isso poderia ensejar o ajuizamento de milhares de ações com o propósito de esclarecer se e em que medida a decisão posterior do Supremo tornará ineficazes sentenças anteriores transitadas em julgado. No entanto, não se descarta que isso venha a ocorrer, caso não se modifique a conclusão do julgamento que se encerrou em 8/2/2023.

Para evitar esse indesejável estado de coisas, é de todo conveniente que, ao realizar controle abstrato de constitucionalidade (em ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo) ou ao firmar tese em julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida sobre questões que digam respeito a relações jurídicas de trato continuado (tributárias ou não), o Supremo Tribunal Federal delibere com clareza acerca de quais decisões transitadas em julgados se tornarão ineficazes, evitando, com isso, o surgimento de nova litigiosidade. Caso isso não ocorra no momento apropriado (isso é, quando do julgamento da ação direta, tal como ocorreu naquela de nº 15, julgada em 2007), o termo inicial da ineficácia deverá ser aquele momento ulterior em que o Supremo vier a se pronunciar sobre a questão (seja em embargos de declaração opostos contra a decisão que julgou a ação direta, seja ao solucionar a controvérsia que inevitavelmente tornará a chegar ao Supremo, tal como sucedeu com os temas 881 e 885, que acabam de ser julgados).

Há outras questões a serem consideradas na análise do julgado antes referido. Por exemplo, deve ser tida com reservas a orientação que equipara a revogação de uma lei à decisão do Supremo que declara a inconstitucionalidade de uma lei. Embora essas figuras se mostrem aproximadas naqueles casos em que o Supremo atua como "legislador negativo", não explica os outros modos e as outras formas de controle de Constitucionalidade manifestadas através de decisões interpretativas (interpretação conforme à Constituição, declaração parcial de nulidade sem redução de texto), e muito menos as oriundas de decisões manipulativas (substitutivas, aditivas), a recomendar que a própria tese firmada quanto aos temas 881 e 885 deva ser revista ou, ao menos, esclarecida quanto ao seu alcance. Este é um dos problemas que merecerão análise em edição própria nesta coluna, no futuro.

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  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM, ex-visiting scholar na Columbia Law School, em Nova Iorque (EUA), ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015, advogado, árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

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