Opinião

Aplicação do princípio da insignificância às ações de improbidade administrativa

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13 de março de 2023, 7h10

Questão controvertida quanto à Lei de Improbidade e que não foi expressamente endereçada pelo legislador na Lei nº 14.230/21 diz respeito à aplicação do princípio da insignificância às ações de improbidade administrativa. A questão pode ser formulada nos seguintes termos: aqueles atos virtualmente enquadrados como ímprobos (tipicidade formal), mas que não se mostram materialmente lesivos aos bens protegidos pela Lei de Improbidade e pela Constituição (tipicidade material), devem ser objeto de sancionamento pela via da improbidade?

Na esfera penal não há maiores problemas quanto à aplicação de tal conceito, embora em hipóteses restritas. Agora, há extensão de sua aplicabilidade também para o âmbito da Lei de Improbidade? A nosso entender a resposta é positiva. Isso porque todo ato, para ser qualificado enquanto improbidade administrativa, deve corresponder a um ilícito grave. O Estado não deve movimentar o seu aparato repressivo ou exercer seu poder punitivo quando o ato praticado pelo agente representar uma violação irrelevante ao bem jurídico protegido.

O princípio da insignificância, nesse sentido, atua como instrumento de interpretação restritiva de normas sancionatórias, possuam ela natureza civil, penal ou administrativa, sendo uma verdadeira expressão da natureza subsidiária da Lei de Improbidade. Em sede jurisprudencial, já reconheceu o STJ a aplicação de tal princípio ao sistema da improbidade nos autos do AgRg no REsp n. 968.447/PR:

"O ato havido por ímprobo deve ser administrativamente relevante, sendo de se aplicar, na sua compreensão, o conhecido princípio da insignificância, de notável préstimo no Direito Penal moderno, a indicar a inaplicação de sanção criminal punitiva ao agente, quando o efeito do ato agressor é de importância mínima ou irrelevante, constituindo a chamada bagatela penal: de minimis non curat Praetor."

O legislador também previu a sua aplicabilidade no âmbito da improbidade, como se vê pelo teor do § 4º do artigo 11 da Lei, segundo o qual os atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento. Contudo, embora tenha o legislador previsto a aplicação do princípio da insignificância de forma expressa somente ao tipo legal de violação aos princípios (artigo 11), entendemos, na linha da jurisprudência do STJ, que se trata de regra a ser estendida a todo o sistema [1]. Aliás, não faria sentido do ponto de vista sistemático defender que a insignificância alcança apenas uma das modalidades previstas, não se estendendo às demais.

O princípio da insignificância, quando menos, é corolário da exigência de tipicidade, que há muito deixou de ser vista apenas em sua concepção formal (subsunção do fato à norma) e passou a ser entendida também em sua acepção material, no sentido de que tipicidade exige a valoração da efetiva lesividade do bem jurídico protegido que, se ínfima, leva à atipicidade material e, consequentemente, à absolvição do acusado [2]. Trata-se, inclusive, do entendimento dominante no STJ, que inclusive diferencia a improbidade dos atos meramente irregulares [3].

Isto é, aqueles atos que virtualmente podem ser enquadrados nas hipóteses previstas nos artigos 9, 10 e 11 da Lei (tipicidade formal), mas não são capazes de efetivamente lesar o bem jurídico tutelado pela lei (tipicidade material), qual seja, a probidade administrativa, não caracterizam improbidade administrativa, mas apenas irregularidades administrativas. Pode-se dizer, nesse sentido, que existem condutas somente formalmente típicas que são irrelevantes para a improbidade e, por isso, não justificam a mobilização do aparato administrativo-judicial do Estado para a sua punição.

Ademais, reconhecendo-se a aplicação do instituto da tipicidade material na improbidade, a incidência do princípio da insignificância se torna mera questão de nomenclatura. O uso de expressões como "mera irregularidade não configura improbidade", "que a improbidade não é mera ilegalidade", entre outras que já se tornaram máximas na doutrina e jurisprudência pátrias, implica o reconhecimento do princípio da insignificância na Lei de Improbidade. Isto porque a não punição de conduta apenas formalmente típica é o resultado alcançado em todos esses casos.

Note-se, então, que o princípio da insignificância atua como uma espécie de filtro de lesividade, mantendo como improbidade somente condutas que de fato agridem o bom funcionamento do Estado e os bens jurídicos tutelados pela Constituição e pela Lei. E nem se fale aqui de inaplicabilidade de tal princípio ao sistema da improbidade em razão do famigerado princípio da indisponibilidade do interesse público. É exatamente o contrário. É a punição de conduta materialmente atípica que ofende o interesse público, posto que não há interesse legítimo na aplicação de uma sanção àquele que não praticou conduta capaz de lesar a lei [4].

Importante notar também que o § 5º do artigo 12 da Lei de Improbidade, segundo o qual os atos de improbidade administrativa de menor potencial ofensivo estão sujeitos somente à pena de multa, não é suficiente para afastar a aplicabilidade do princípio da insignificância ao sistema da improbidade. Isso porque tal princípio não é critério de dosimetria de sanção, no sentido de ser papel do juiz avaliar o "nível da insignificância" no momento de aplicação da sanção, mas instrumento normativo voltado a afastar a aplicação de qualquer sanção de improbidade por atipicidade da conduta. O legislador, ao prever a categoria de atos de menor potencial ofensivo, reconheceu a existência de condutas que, embora materialmente típicas, devem ser penalizadas de forma mais branda. Não há que se falar em insignificância nesse caso [5].

Para finalizar, cumpre destacar que somente uma análise caso a caso pode permitir o reconhecimento do princípio da insignificância, dado que sua aplicabilidade está condicionada à valoração de muitos outros fatores a ele independentes, a exemplo da gravidade da conduta, das condições pessoais do agente (antecedentes criminais, reiteração da conduta etc.), a relevância do bem jurídico violado, dentre outros. O ponto principal, contudo, é perceber que se da análise das circunstâncias e particularidade do caso concreto se chegar à conclusão de que a reprovabilidade social do ato praticado e a ofensa ao bem jurídico são baixas ou irrelevantes, temos a incidência do princípio da insignificância e o reconhecimento da atipicidade material da conduta praticada pelo acusado.

Inclusive, o STF já definiu algumas balizas para nortear a aplicação do princípio da insignificância aos casos concretos que podem ser utilizadas aqui, quais seja: (1) mínima ofensividade da conduta do agente; (2) ausência de periculosidade social da ação; (3) reduzido grau de reprovabilidade do ato praticado; (4) inexpressividade da lesão causada ao bem jurídico [6]. Presentes esses requisitos que, claro, são exemplificativos, e identificada a insignificância do ato/da lesão, a conduta do agente não satisfaz a exigência imposta pela tipicidade material e, portanto, qualifica-se como atípica, a desmerecer qualquer espécie de sancionamento.

 


[1] Por todos, do AgInt no REsp n. 1.409.556/SC.

[2] SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 6.ed. rev., atual. e ampl. Leme: Mizuno, 2022, p. 125.

[3] Por todos, ver a decisão firmada nos autos do AgInt no REsp nº 1.409.556/SC, no qual a corte reafirmou sua jurisprudência pacífica no sentido de que "[…] nem todo o ato irregular ou ilegal configura ato de improbidade, para os fins da Lei 8.429/92. A ilicitude que expõe o agente às sanções ali previstas está subordinada ao princípio da tipicidade: é apenas aquela especialmente qualificada pelo legislador".

[4] ALMEIDA, Pedro Luiz Ferreira. O princípio da insignificância na nova lei de improbidade administrativa. In.: DAL POZZO, Augusto Neves; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Lei de improbidade administrativa reformada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 350.

[5] ALMEIDA, Pedro Luiz Ferreira. O princípio da insignificância na nova lei de improbidade administrativa. In.: DAL POZZO, Augusto Neves; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Lei de improbidade administrativa reformada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 351-352.

[6] Por todos, ver HC nº 123.533/SP.

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