Embargos Culturais

De que Populismo Estamos Falando, de Thomás de Barros e Miguel Lago

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

12 de março de 2023, 8h00

O tema do populismo voltou ao proscênio (ou talvez nunca tenha ido para a coxia). Lembro-me, nesse pormenor, de um político hoje esquecido, Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque (1906-1987), o Homem da Capa Preta. Chapéu escuro, com a inconfundível capa preta, sob a qual, ao que consta, carregava uma metralhadora (a lurdinha), Tenório simboliza (até hoje) um estereótipo do político populista.

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Sua vida foi romanceada e levada ao cinema, em inesquecível filme dirigido por Sérgio Rezende, com participação também inesquecível de José Wilker, então no auge de sua carreira. Tenório disputou o governo do Rio de Janeiro contra Carlos Lacerda, em 1960, uma disputa marcada por dois exemplos de políticos chamativos. Lacerda também tinha seus truques. Além do filme (Marieta Severo está lá também), recomendo a leitura do livro da filha de Tenório, Sandra Tenório Cavalcanti, Tenório, Meu Pai, um depoimento fascinante, hoje raro, publicado pela Global. Criador das milícias, segundo alguns, justiceiro implacável, segundo outros, Tenório é um exemplo das contradições e dilemas que marcam uma tentativa de compreensão do populismo.

De que Populismo Estamos Falando, de Thomás de Barros e Miguel Lago, foi editado pela Companhia das Letras. Os autores são cientistas políticos renomados. Ao longo desse pequeno-grande livro, exploram os vários sentidos da palavra "populismo". Em seguida, tratam da história do populismo no Brasil. Concluem identificando as forças que marcam o populismo.

Nos dias de hoje há uma multiplicidade de políticos que podemos associar a perfis populistas: Trump, Boris Johnson, Nigel Farage, Hugo Chávez, Evo Morales, Vladimir Putin, Mélenchon, tanto à direita, quanto à esquerda, apenas para nominarmos estrangeiros, que os autores identificam na sessão inicial do livro. Os autores lembram emblemática passagem de Trump, que perguntado como fazia para navegar nas tempestades nos Estados Unidos teria respondido que ele, Trump, "era a própria tempestade". Essa afirmação, resgatada pelos autores, dá o tom do assunto do livro.

Para os autores, melhor seria falarmos em "populismos” ao invés de "populismo", dada a variedade de circunstâncias, trajetórias e contextos políticos e históricos. A partir de Ernesto Laclau (conhecido cientista político argentino que faleceu em 2014), enfatizam a teatralidade do populista e identificam três pontos centrais definidores do populismo: um discurso que opõe o povo às elites, os "de baixo" contra "os de cima", uma perspectiva estética transgressiva, irreverente e marcadamente popular, qualificando-se um força que detém efetiva capacidade de mudar as instituições. Exemplificam a oposição entre povo e elites com passagem da carta testamento de Getúlio Vargas, intuição que me parece justifica a leitura do livro.

Ilustram o populismo no Brasil com várias referências a Adhemar de Barros (1901-1969), prosaico governador de São Paulo. Como complemento, nesse caso, sugiro a leitura de Amilton Lovato, Adhemar, Fé em Deus e Pé na Tábua, editado pelo Geração. Adhemar foi nomeado interventor em São Paulo por Getúlio, que queria alguém que não lhe representasse nenhum perigo. Conta-se que teve que repetir o nome de Adhemar para Francisco Campos, que redigiria o decreto, e que nunca teria ouvido falar em Adhemar.

Adhemar fizera oposição a Getúlio, a quem mais tarde apoiou. Lê-se nesse muito bem pesquisado livro de Lovato que Adhemar e Jânio rivalizavam-se, inclusive nas excentricidades. Os mais antigos (muito mais antigos e velhos do que eu) lembram-se do jingle: "Hip, hip, hurra, vamos todos saudar Adhemar, que o nosso país vai governar". Adhemar foi importantíssimo no apoio de São Paulo contra Goulart (outro populista) em 1964. Mais tarde, rompeu com os militares, que não convocaram as eleições gerais com as quais contava para ascender à Presidência da República. Adhemar foi cassado. Segundo Lovato, Adhemar era um "prato cheio para os caricaturistas". Era o tempo das caricaturas, hoje substituídas pelos memes.

Em De que Populismo Estamos Falando, os autores exploram também temas como o "populismo econômico" que Roberto Campos imputava à Constituição de 1988, a construção da expressão populismo (em Assis Chateaubriand e Hélio Jaguaribe), o fracassado governo de Jânio Quadros, o "populismo cambial" imputado a Fernando Henrique Cardoso, os populistas da UDN, Brizola e Fernando Collor, entre tantos outros. Os autores referem-se a Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (cientista política belga, que publicou livro importantíssimo sobre Carl Schmitt), para quem "o populismo não é bom nem ruim — é uma lógica política que constrói identidades coletivas".

O leitor pode conferir a qualidade do trabalho dos autores ouvindo ao podcast O Assunto, com Renata Lo Prete, datado de 17 de outubro de 2022, que entrevista Thomás de Barros.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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