Ambiente Jurídico

A proteção do patrimônio cultural brasileiro na visão do STF

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

11 de março de 2023, 8h00

No ano de 1988, com o advento da nova Constituição, alcançamos o mais alto degrau na evolução normativa de proteção constitucional ao patrimônio cultural brasileiro, uma vez que a Carta Magna estabeleceu as competências administrativas e legislativas sobre o tema (artigo 23, III e IV,  artigo 24, VII e VIII), delineou as responsabilidades dos municípios (artigo 30, IX) e, em seu Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto), Seção II (Da Cultura), no artigo 216 disciplinou o assunto de forma abrangente, enumerando exemplificativamente os bens integrantes do nosso patrimônio cultural, definindo a responsabilidade solidária pela sua preservação, elencando instrumentos de proteção e traçando outras diretrizes incidentes sobre a matéria, inclusive no que pertine a sanções por ameaças e danos.

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A constitucionalização da tutela do patrimônio cultural brasileiro traz repercussões extremamente importantes, seja de ordem substantiva, seja de ordem formal.

No que pertine aos reflexos de ordem formal, podemos citar a substituição do paradigma da legalidade do direito do patrimônio cultural (uma que o veículo primário de proteção ao patrimônio é a própria constituição) e a possibilidade do controle de constitucionalidade de  atos normativos e administrativos que envolvam a matéria  (considerando que eles somente serão válidos se estiverem em conformidade com o texto constitucional, de superior hierarquia).

Em tal cenário, mostra-se como de fundamental importância para o efetivo respeito aos postulados estabelecidos sobre o tema pela Constituição, a atuação vigilante do Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião de nossa lei maior, pois a ordem constitucional relativa ao patrimônio cultural reclama uma reflexão pragmática, que deve incorporar teoria e prática, análise dogmática e eficácia concreta, direito exposto e direito em ação, exigindo o indispensável matiz implementador, sobretudo porque é a fonte fundamental e superior de todo o nosso ordenamento jurídico.

Como leciona José Renato Nalini:

"O raciocínio constitucional é relevante. O profissional do direito precisa abandonar a praxe de iniciar o processo de resolução dos problemas a partir das portarias, ordens de serviço, resoluções, regulamentos, decretos, leis ordinárias ou mesmo complementares, se a Constituição oferece alternativas [1]."

Feitas tais considerações, passamos em revista algumas das principais decisões proferidas pela Corte Suprema do nosso país a respeito do tema.

Possibilidade de intervenção do poder judiciários em hipóteses de omissão do poder público
Em razão da natureza indisponível do direito ao patrimônio cultural, temos sustentado que no caso de omissão dos poderes Executivo e Legislativo acerca da proteção e preservação de bens culturais, o Poder Judiciário poderá ser acionado para efetivar a correção, sem que se fale em ingerência indevida, pois o dever de agir a tal respeito toca ao Poder Público como um todo e nenhum tipo de lesão ou ameaça a direito poderá ser suprimida da apreciação judicial, nos exatos termos preconizados pela Constituição em seus artigos 5º, XXXV, 23, III e IV e 216, §1º [2].

Nesse sentido pronunciou-se o STF em recente decisão:

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. Constitucional e administrativo. Ação civil pública. Proteção ao patrimônio histórico-cultural. Reparação e preservação de bem imóvel tombado: Dever legal. Intervenção excepcional do poder judiciário: Possibilidade. Alegada ofensa aos princípios da separação dos poderes e da previsão orçamentária: Inocorrência. Precedentes. Omissão municipal e inércia administrativa: Súmulas ns. 279 e 280 do Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental desprovido". (STF; ARE-AgR 1.408.531; RJ; 1ª Turma; relatora ministra Cármen Lúcia; Julg. 07/02/2023; DJE 08/02/2023).

No mesmo sentido:

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Ação civil pública. Obrigação de conservação do patrimônio histórico e cultural. Existência de omissão do poder público na preservação de imóvel tombado. Necessidade do reexame de fatos e provas e de interpretação de legislação local. Impossibilidade. Súmulas nºs 279 e 280 do STF. Agravo regimental a que se nega provimento. I. O poder judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a administração pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação dos poderes. II. Para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo acórdão recorrido". (STF; Ag-RE-AgR 1.017.511; relator ministro Ricardo Lewandowski; DJE 12/09/2018).

Responsabilidade solidária do poder público na proteção do patrimônio cultural
Em termos de responsabilidade por danos a direitos metaindividuais, entre os quais está o direito ao patrimônio cultural, aplica-se a regra da solidariedade pela reparação com lastro no artigo 216, §1º da CF/88 e  artigo 942 do Código Civil [3], uma vez que  a lesão a bens culturais é considerada fato único e indivisível, não sendo possível individualizar a contribuição de  cada responsável para o mesmo dano.

Essa possibilidade de responsabilização solidária em sede de danos causados a bens que integram o patrimônio cultural abre amplas perspectivas no que tange à viabilidade do chamamento do poder público, que tem o expresso dever constitucional de proteger tal bem jurídico (artigo 23, III, IV e VI, 30, IX e 216, §1º.), ao polo passivo de ações que objetivam a reparação de lesões causadas em decorrência de omissão na vigilância sobre tais coisas [4].

Em tal sentido o STF decidiu recentemente:

"DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL. PODER PÚBLICO. RESPONSABILIDADE. 1. O acórdão recorrido está alinhado ao entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, nos termos do artigo 216, §1º, da Constituição Federal, a expressão Poder Público possui como destinatárias todas as esferas de atuação estatal, seja federal, estadual ou municipal, incluindo a divisão tripartite de poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Precedentes. 2. Para firmar entendimento diverso do acórdão recorrido quanto aos pontos aduzidos pela parte recorrente, seria indispensável o reexame do acervo probatório constante dos autos. Nessas condições, a hipótese atrai a incidência do enunciado da Súmula nº 279/STF. 3. Inaplicável o artigo 85, §11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese, condenação em honorários advocatícios". (artigos 17 e 18, Lei nº 7.347/1985). 4. Agravo interno a que se nega provimento. (STF; ARE-AgR 1.390.160; SP; Primeira Turma; relator ministro Roberto Barroso; Julg. 19/12/2022; DJE 06/02/2023).

Eficácia protetiva do instrumento do inventário
Em nosso ordenamento jurídico o inventário, enquanto instrumento de proteção do patrimônio cultural brasileiro, tem expressa previsão constitucional (artigo 216, §1º da CF/88).  Como garantia do direito fundamental ao patrimônio cultural ele se caracteriza como forma autônoma e autoaplicável de preservação de bens culturais (artigo 5º, §1º da CF/88), prescindindo de lei infraconstitucional para que possa ser validamente utilizado.

O mestre José Afonso da Silva [5]  nos ensina que os meios de atuação cautelar do patrimônio cultural  constituídos por formas, procedimentos ou instrumentos preordenados para promover e proteger tal bem jurídico  estão previstos no artigo 216, §1° da CF/88. Em seguida reconhece que "alguns desses meios são apropriados à formação oficial do patrimônio cultural, por constituírem técnicas jurídicas destinadas a elevar determinado bem à condição de participante desse patrimônio  tais são, por exemplo, o inventário, os registros, o tombamento e a desapropriação".

Em harmonia com tais entendimentos, o Supremo reconheceu a eficácia protetiva do instrumento do tombamento, inclusive para fins de responsabilização em sede criminal:

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. ALEGADA OFENSA AO ARTIGO 216, §1º, DA CF. PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL BRASILEIRO. ARTIGO 67 DA LEI Nº 9.605/98. CONCESSÃO DE ALVARÁ DE DEMOLIÇÃO. IMÓVEL PROTEGIDO POR INVENTÁRIO DO IPHAN. ÁREA DEFINIDA COMO DE INTERESSE CULTURAL SIGNIFICATIVO PELO PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO. VALOR CULTURAL E HISTÓRICO EVIDENTE. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS E DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. OFENSA REFLEXA. SÚMULA Nº 279/STF. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I. '[…] a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco evolutivo em termos de reconhecimento e proteção jurídica do patrimônio cultural brasileiro. Reconheceu-se, a nível constitucional expresso, a necessidade de tutelar e salvaguardar o patrimônio histórico-cultural, enquanto direito fundamental de terceira geração, isto é, de titularidade difusa, não individualizado, mas pertencente a uma coletividade […]' (ACO 1.966-AGR/AM, relatada pelo ministro Luiz Fux, tribunal pleno). II. De acordo com o inteiro teor do acórdão recorrido, a 'Casa Koerich', como era denominado o imóvel demolido, chegou a ser inventariada pelo Iphan. Constou também do julgado que 'o valor cultural e histórico do imóvel era evidente até para quem não possuía conhecimento especializado, tanto por suas características arquitetônicas quanto pela idade da construção (ano de 1926)', bem como que ele se encontrava em área definida como de interesse cultural significativo no plano diretor do município de Angelina/SC. III. O enquadramento da conduta do agravante no artigo 67 da Lei nº 9.605/1998, em virtude do descumprimento do que contido no artigo 216, §1º, da Carta Magna, não tem o condão de violar o referido dispositivo constitucional, muito pelo contrário, confere a ele a eficácia e a aplicabilidade necessárias à proteção jurídica do patrimônio histórico-cultural brasileiro. lV. Para dissentir do acórdão impugnado e verificar a procedência dos argumentos consignados no apelo extremo quanto à tipicidade e à ausência de dolo, seria necessário o reexame do conjunto fático-probatório dos autos. O que é vedado pela Súmula nº 279/STF. E das normas infraconstitucionais pertinentes ao caso, sendo certo que eventual ofensa à constituição seria apenas indireta. V. Agravo regimental a que se nega provimento". (STF; RE-AgR 1.222.920; SC; Segunda Turma; relator ministro Ricardo Lewandowski; Julg. 20/03/2020; DJE 31/03/2020; Pág. 97).

Possibilidade de tombamento de bem da União por estado
Por força do que dispõe a Constituição Federal nos artigos 23, III e IV, 30, IX e 216, §1º, os municípios, os estados, o Distrito Federal e a União são dotados de competência administrativa para a efetivação do tombamento de bens cuja conservação seja de seus respectivos interesses.

Um mesmo bem pode receber a proteção de mais de um ente federativo, não sendo incomum a incidência cumulativa de tombamentos realizados pelo órgão da União (Iphan), do estado e do município onde a coisa se situa.

Também não há qualquer impedimento no sentido de os entes federativos "menores" tombarem bens de propriedade dos entes "maiores", uma vez que a Constituição impõe o dever de qualquer das entidades políticas proteger os bens culturais de seu interesse, não excluindo ou restringindo tal dever em razão do titular do domínio ser ou não pessoa de direito público. Destarte, ao contrário do que ocorre na desapropriação (artigo 1º, §2º, do Decreto-Lei 3.365/1941), os estados e os municípios podem tombar bens de propriedade da União [6].

Tal entendimento foi acolhido pelo STF, com fundamento nos seguintes argumentos:

"AGRAVO EM AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. 2. Administrativo e Constitucional. 3. Tombamento de bem público da União por Estado. Conflito Federativo. Competência desta Corte. 4. Hierarquia verticalizada, prevista na Lei de Desapropriação (Decreto-Lei nº 3.365/41). Inaplicabilidade no tombamento. Regramento específico. Decreto-Lei nº 25/1937 (arts. 2º, 5º e 11). Interpretação histórica, teleológica, sistemática e/ou literal. Possibilidade de o Estado tombar bem da União. Doutrina. 5. Lei do Estado de Mato Grosso do Sul 1.526/1994. Devido processo legal observado. 6. Competências concorrentes material (artigo 23, III e IV, c/c artigo 216, §1º, da CF) e legislativa (artigo 24, VII, da CF). Ausência de previsão expressa na Constituição Estadual quanto à competência legislativa. Desnecessidade. Rol exemplificativo do artigo 62 da CE. Proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico regional. Interesse estadual. 7. Ilegalidade. Vício de procedimento por ser implementado apenas por ato administrativo. Rejeição. Possibilidade de lei realizar tombamento de bem. Fase provisória. Efeito meramente declaratório. Necessidade de implementação de procedimentos ulteriores pelo Poder Executivo. 8. Notificação prévia. Tombamento de ofício (art. 5º do Decreto-Lei nº 25/1937). Cientificação do proprietário postergada para a fase definitiva. Condição de eficácia e não de validade. Doutrina. 9. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 10. Agravo desprovido. 11. Honorários advocatícios majorados para 20% do valor atualizado da causa à época de decisão recorrida (§ 11 do artigo 85 do CPC). (STF; ACO-AgR 1.208; relator ministro Gilmar Mendes; DJE 04/12/2017).

Enfim, verifica-se a existência, no âmbito da Corte Suprema do Brasil, de precedentes  de significado relevo para a concretização, no mundo das coisas, dos dispositivos positivados no texto da Carta Cidadã e que não podem se resumir a uma vã promessa, de inalcançável resultado prático.

 


[1] Direitos que a cidade esqueceu. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011. p. 138

[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i. 2021. p. 36.

[3] Artigo 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

[4] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i. 2021. p. 221.

[5] Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros.  2001. p. 149.

[6] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do Tombamento Comentada. Belo Horizonte: Del Rey. 2014. p. 26-27.

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