Opinião

Feminicídios e um sistema de justiça criminal verdadeiramente "dialógico"

Autor

  • Everson Aparecido Contelli

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp) especialista em Direito Processual e em sistemas de Justiça Criminal professor da Academia de Polícia de São Paulo das disciplinas inquérito policial e investigação policial delegado de polícia no estado de São Paulo professor de cursos de pós-graduação e de graduação e autor do livro Acesso à Justiça Criminal entre outros.

8 de março de 2023, 7h08

O sistema de justiça criminal e a função de persecução penal têm absorvido significativamente, e com razoável eficácia — observado o devido processo legal —, as alterações e mecanismos de modernização para a adequada e emergencial prestação jurisdicional em temas relacionados à violência de gênero.

Longe de um pragmatismo penal, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) recebeu, desde sua entrada em vigor, 17 alterações e incrementos, todos necessários a colmatar o desequilíbrio decorrente das diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher como a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Com efeito, se há muito a avançar em políticas públicas [1] de proteção à mulher no país, não é possível visualizar um absenteísmo legislativo, pelo contrário, esse fenômeno legiferante que interfere na dogmática jurídica é revelado quando se analisa, por uma interpretação axiológica e histórica, 20 anos de vigência da Lei Maria da Penha, o que desvela que algo motivador de comportamentos humanos indesejados emite um sinal de alerta, daí a demanda da sociedade por mais leis — que precisam de efetividade.

Mas se o sistema de justiça e de prestação jurisdicional funcionam de maneira célere — existe uma prioridade entre investigação policial, Ministério Público, serventuários e magistrados — e a maioria das mulheres do país tem seus seus pedidos de medidas protetivas analisados em prazos verdadeiramente razoáveis, por que continuamos a contabilizar mortes de mulheres em razão dessa condição de gênero?

Em 2021, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.319 [2] mulheres foram vítimas de feminicídio no país. Segunda o Ipea, no Atlas da Violência, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2019, número abaixo de 2018 que contabilizou 4.519 homicídios femininos (não apenas feminicídios), o que exige uma aproximação nesses cálculos, porquanto a qualificadora do homicídio denominada feminicídio foi incluída no Código Penal somente em 2015 (Lei nº 13.104/2015) e — absurdamente — as informações ainda não são incluídas em todos os bancos de dados.

E, a pergunta deste singelo texto ao cientista jurídico e aos agentes públicos e à sociedade é bem simples. Se o sistema de justiça está funcionando, como explicar tantas mortes por feminicídio? E os órfãos do feminicídio [3] que, afastados levantamentos regionais, não se sabe onde estão ou quantos são? Na região de Presidente Prudente (SP) são 57.

Em primeiro lugar existem falsas percepções sociais, por vezes com uma carga de impotência dos juristas, acerca dos problemas presentes na sociedade que precisam ser enfrentados no processo penal, e de maneira interdisciplinar e transversal com os demais ramos do direito e das ciências — não apenas sociais.

Em um estudo levado a efeito pela Polícia Civil de Presidente Prudente que acaba de ser publicado, verificou-se que 81,58% [4] das vítimas de feminicídio analisadas não dispunham de medidas protetivas de urgência o que, a contrario sensu, revela que mulheres que conseguem iniciar o rompimento do ciclo de violência doméstica têm mais chances de sobreviver. Note-se, ademais, que somente naquela região de Presidente Prudente, em 2022, foram registrados aproximadamente 4.447 [5] casos de violência doméstica contra a mulher e cumpridas pela PC-SP 3.490 medidas protetivas de urgência.

A pesquisa ainda revelou que 75% dos feminicídios ocorreram em finais de semana, com uma maior tendência na madrugada de domingo para segunda-feira e que naquela região, 10 dos 38 agressores, ou 26,31% dos homens cometeram suicído na sequência, o que além de reafirmar a tragédia familiar e humanitária, traz a reflexão sobre a falência pela busca exclusiva da pena privativa de liberdade como simples solução para o comportamento humano indesejado, traduzido aqui como decorrência de problemas sociais, de saúde e segurança pública, que aflige nossa sociedade pós pandemia.

Importante série de pesquisas produzidas pelo instituto Patrícia Galvão revelou que 93% dos entrevistados apontam que em briga de marido e mulher todos devem meter a colher, o que reafirma que mais pessoas e alternativas podem auxiliar o rompimento do ciclo de violência, como a premência da expansão das casas de acolhimento e do aluguel social, conforme a oportuna Lei nº 17.626/2023, sancionada pelo governo paulista.

A solução, por evidente, não é exclusivamente do sistema jurídico que, no entanto, pode contribuir com medidas dialógicas, interdisciplinares, o que perpassa também no difícil debate sobre conservadorismo, machismo estrutural, tratamento e na própria cultura de banalidade do mal, quando o tema é violência contra as mulheres brasileiras, cujos fatores podem ser compreendidos e modulados pela ciência jurídica, seja como fator de mediação ou de imposição. Não podemos esquecer das medidas restaurativas e pedagógicas, em especial com foco na juventude — futuro geracional familiar.

Hannah Arendt aprofunda o conceito de banalidade do mal e ressalta que a massificação da sociedade é suficiente para criar uma multidão incapaz. É possível que as traves na visão funcionem atualmente como muletas de justificação da violência contra a mulher em que, como os atores de tempos sombrios, todos estamos submetidos a um establishment, enquanto fagulhas de iluminação não se unem ou dialogam em busca de um ideal comum nacional.

Por semelhança, na região de Presidente Prudente há um pico de feminicídio envolvendo mulheres de 41 a 45 anos, aumento sem justificativa, possivelmente conectados a homens (doentes), que cumprem ordens, da voz da massificação, sem questionar, no exato momento de transição e libertação dessas mulheres.

O certo é que não existe uma solução pronta, acabada, de maneira que com a expansão dos mecanismos dialógicos do sistema de justiça criminal, mais opções para o rompimento do ciclo de violência, o que vai ao encontro das disposições do artigo 9º da Lei nº 11.340/2006, ao determinar que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada (G.N.) e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema ùnico de Segurança Pública, entre outras normas e políticas de proteção.

E esse custo da violência doméstica inclui, dentre outros:

Custo social – órfãos do feminicídio

Custo econômico – ressarcimento de gastos com tratamento médico

Custo geracional – impacto no patrimônio geracional familiar

E, assim como na criminalidade organizada e nos crimes empresariais, o aspecto econômico pode contribuir na repressão da violência doméstica. Em tempos de anormalidade, analisando a Lei Maria da Penha, extrai-se do artigo 9º, §4º, incluído pela Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019, a possibilidade de medida de repressão financeira, ainda não rotineira nas investigações criminais, ao dispor que:

aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.

Considerando que a maioria dos casos são subnotificados ou a mulher não revela as verdadeiras causas durante o atendimento médico — informações que surgem apenas no bojo da persecução penal —, decorre daí um poder-dever de a investigação criminal (dialógica) a suprir essa lacuna, com consequente provocação, via notificação, pelo que denominamos FCCVD (Formulário de Comunicação de Custos da Violência Doméstica), ao SUS, às Secretarias de Saúde dos Entes Municipais e Estaduais, assim como à União, às Cortes de Contas, Fazendas Públicas e Procuradorias de Estado, dos entes responsáveis pela financiamento público de saúde.

Obviamente, a conclusão não é linear, de maneira a cotejar o efetivo pagamento com a realidade familiar, para não importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes.

O dispositivo, quando aplicado, não enseja em atenuante ou na possibilidade de substituição da pena aplicada, conforme disciplina o §6º do artigo 9º da Lei nº 11.340/2006. Uma alternativa a mais a barrar a barbárie.

Importante recordar, ademais, a proibição de aplicação do Acordo de Não Persecução Penal nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor, nos termos do artigo 28-A, §2º, inciso IV, do Código de Processo Penal, Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019.

Outras medidas dialógicas, de responsabilidade da persecução são necessárias, como o encaminhamento do agressor a programas de reeducação e recuperação e atendimento psicossocial, com uma leitura de justiça restaurativa, (artigo 22, incisos VI e VII); notificação da ocorrência à instituição responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte de armas (artigo 12, inciso VI-A, da Lei 11.340/2006, disposição incluída pela Lei nº 13.880/2019), dentre outros instrumentos que necessitam ser manejados pela investigação criminal.

Embora a investigação criminal e o sistema de justiça encontrem seus contornos na Constituição e na legislação ordinária, uma análise sistemática impõe a adoção imediata, enquanto persistir esse estado extraordinário de graves violações aos direitos humanos no país (feminicídios), de reflexão sobre o conteúdo de letras de músicas ou de publicações que disseminam o ódio contra a mulher. Longe de constituir controle ou censura prévia, o estudo prudentino identificou pelo menos cinco músicas no país cujos textos, na linha das propostas nazistas ou de absurda discriminação racial, determinam a segregação, a agressão ou a morte de mulheres, o que nem de longe constitui liberdade de expressão, com a possibilidade de associações ou entidades de proteção de direitos das mulheres encamparem imediatamente essa bandeira.

Considerando que as funções da investigação criminal dialógica extrapolam a aspectos humanitários, sociais, culturais e econômicos, as ações exemplificativas elencadas constituem simples medidas de urgência, como voz no deserto que pretende o desvelar o véu de la Catrina, de José Guadalupe Posada, o ilustrador da morte e de seu principal incentivador, Diego Rivera, em busca de identificar e acolher os órfãos dessa criminalidade e de estancar os feminicídios, e as veias que sob o viés da indiferença, continuam abertas e expondo famílias de todo o país.

A proposta. Um pacto nacional, com envolvimento da comunidade jurídica e sociedade para a discussão deste tema, a revolver questões sensíveis, culturais, religiosas em amplo debate despido de soluções prontas, mas com um olhar que mire o futuro, quem sabe no otimista 8 de março de 2030 (dia internacional da mulher), com menos feminicídios e impactos familiares geracionais irreparáveis.

Enquanto isso, comemoremos o 8 de março, mas cientes de que mulheres brasileiras estão sangrando diariamente, sob o véu da indiferença e da maldade do não pensar.


Referências:

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000.

ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1987.

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1979;

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. – 6ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BRASIL. Lei Federal nº 13.104, de 9 de Março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

CERQUEIRA, Daniel et. al. Atlas da Violência. Rio de Janeiro, Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Ipea, jun. 2021.

COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law & Economics, v.3, p. 1-44, out. 1960. Disponível em: https://www.law.uchicago.edu/files/file/coase-problem.pdf. Acesso em: 03 mar. 2023.

CONTELLI, Everson A. Acesso à Justiça Criminal: NECRIM’s – Núcleos Especiais Criminais como alternativa Consensual, Restaurativa e Dialógica na Persecução Criminal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

CONTELLI, Everson A.; COSTA, Ilton Garcia. Teoria da Ação de Direito Material no Processo Penal e a Proteção Eficiente da Vítima. In: Ilton Garcia da Costa. (Org.). Direito e Justiça: Aspectos Atuais e Problemáticos. v.1. Curitiba: Jurua, 2015. p.301-320.

CONTELLI, Everson Aparecido. Arca Restaurativa: mikhael em busca do patrimônio familiar geracional. Uberlândia: Flyve, 2022. 85 p.

FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. São Paulo: FBSP, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/anuario-2021-completo-v6-bx.pdf. Acesso em: 03 mar. 2023.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Tradução de Galeno de Freitas. 39ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. 307p. Título original: Las venas abiertas de America Latina. (Coleção Estudos Latino-Americanos, v.12).

LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1979;

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LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. p.49.

NUCCI, Guilherme de Souza. Direitos humanos versus segurança pública: questões controvertidas penais, processuais penais, de execução penal e da infância e juventude. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 2ª ed. São Paulo: RT, 2004.

 


[1] Como medida essencial e atuação de vanguarda, no Estado de São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas sancionou a Lei nº 17.626, de 07 de fevereiro de 2023, que autoriza o Poder Executivo a conceder auxílio aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica em todo o Estado de São Paulo. De acordo com o governador Tarcísio de Freitas, a medida é de fundamental importância, pois garante às vítimas de violência doméstica uma chance de recomeçar a vida longe de seu agressor. “O Estado de São Paulo está ampliando as formas de proteção e acolhimento às vítimas de violência doméstica. O aluguel social é mais um instrumento para auxiliar essa mulher a romper o ciclo de violência e começar uma vida nova com mais segurança e autonomia”. O texto legal será regulamentado em 90 (noventa) dias.

[2] Conforme Atlas da Violência, 2021, a análise das pesquisas com base em danos revela que, enquanto os homicídios de mulheres nas residências cresceram 10,6% entre 2009 e 2019, os assassinatos fora das residências apresentaram redução de 20,6% no mesmo período, indicando um provável crescimento da violência doméstica.

[3] Na pesquisa divulgada pela PCSP de Presidente Prudente-SP foram identificadas 57 crianças e adolescentes órfãos do feminicídio, decorrência dos 38 case, embora nesse aspecto, possivelmente exista uma falha, já que muitas famílias, destruídas que foram, deixaram a região, e não há registros oficiais para confirmar estes dados, sugerindo que a cifra desses órfãos seja muito maior.

[4] Apenas sete mulheres, de 38 vítimas de feminicídio na região de Presidente Prudente detinham uma Medida Protetiva de Urgência.

[5] O número destoa, porquanto área composta de cerca de 1 milhão de habitantes, que fechou 2022 com 14.581 inquéritos policiais a englobar títulos de toda a natureza, não poderia ter um número tão alto de registros de violência doméstica. O sistema jurídico deve continuar com esse direcionamento programado, porém cientes de que a solução é dialógica, compartilhada e interdisciplinar.

Autores

  • é doutorando em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), mestre em Direito pela Uenp, especialista em Direito Processual e em sistema de justiça criminal, professor da Academia de Polícia de São Paulo das disciplinas inquérito policial e investigação policial, delegado de polícia no estado de São Paulo, professor de cursos de pós-graduação e de graduação em direitos humanos, Direito Digital, medicina forense e psicologia jurídica e autor do livro Acesso à Justiça Criminal; Drones, Investigação Criminal e Segurança Pública e de capítulos de livros e artigos jurídicos no Brasil e exterior.

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