Opinião

Ilegalidade na vedação do ANPP antes da Lei nº 13.964/2019

Autores

  • Marcos Eberhardt

    é doutorando e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS professor da Escola de Direito da PUC-RS e sócio do escritório do Marcos Eberhardt Advogados Associados.

  • Nereu Giacomolli

    é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri professor no mestrado e doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e sócio do escritório Giacomolli Advocacia e Consultoria.

7 de março de 2023, 19h38

A previsão do ANPP (acordo de não persecução penal) no Código de Processo Penal encontra vigência há mais de três anos e, apesar disso, o instituto ainda suscita muitas discussões, resultando, na maioria das vezes, em pareceres e decisões restritivas do âmbito de aplicação da ferramenta negocial. É o caso da aplicação da norma do artigo 28-A, §2º, III, do CPP. Na prática, superada a fase do exame de justa causa ao ANPP, além dos demais requisitos e condições, é necessária a análise das hipóteses nas quais é vedado o acordo. Com base no artigo 28-A, §2º, III, do CPP, o Ministério Público tem suscitado óbice à proposição do ANPP diante da existência de transação penal ou suspensão condicional do processo que tenham beneficiado o investigado nos cinco anos anteriores ao fato objeto da atual negociação. Ou seja, na prática, quem aderiu à transação penal ou à suspensão condicional do processo mesmo antes da vigência da Lei nº 13.964/19 está sendo impedido de conhecer eventual proposta de ANPP.

O problema suscita, pelo menos, três abordagens, todas na direção oposta do que vem acontecendo na práxis forense.

a) Primeiro, essa questão deveria passar, antes de tudo, pelo diagnóstico da natureza da norma constante do artigo 28-A do CPP e, nesse ponto, cabe acompanhar o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do HC nº 185.913/DF. O voto do relator, ministro Gilmar Mendes, é pelo cabimento do ANPP para todos os casos não transitados em julgado na data da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, por tratar-se de norma de natureza processual com conteúdo material, atraindo a possibilidade de aplicação da lei mais benéfica (artigo 5º, XL, da Constituição) [1]. A mesma interpretação deve alcançar a norma do artigo 28-A, §2º, III, do CPP. Como restringir o âmbito de aplicação do ANPP para aqueles casos em que o autor do fato tenha aderido a uma transação penal ou suspensão condicional do processo antes mesmo da entrada em vigência da Lei nº 13.964/19? Trata-se de uma norma que possui natureza híbrida e, como tal, não poderá retroagir para prejudicar o autor do fato.

b) Em segundo lugar, aplica-se ao caso o princípio da imediatidade já que, conforme o artigo 2º do CPP, a lei processual penal aplicar-se-á desde logo. Ou seja, mais uma vez a lei não poderá retroagir para prejudicar o autor do fato que tenha aderido à transação penal ou suspensão condicional do processo antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19. Somente a partir da vigência do artigo 28-A do CPP é que se poderá vedar a propositura do acordo para aqueles casos em que, apesar de cumpridos os requisitos e condições, constatar-se que o autor do fato tenha sido beneficiado por ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo dentro do período de cinco anos anteriores ao fato criminoso objeto do atual acordo.

c) Por fim, cabe recordar que o artigo 76, §2º, II, da Lei nº 9.099/95, impede o oferecimento da transação penal aos casos em que o autor do fato tiver sido beneficiado nos cinco anos anteriores por outra transação penal, entendendo os tribunais que essa vedação também alcança a suspensão condicional do processo. Nesses casos, o autor do fato que aderir aos referidos benefícios legais sempre será advertido, formalmente, acerca da proibição. É possível afirmar-se, com segurança, que os agentes que aderiram a estes benefícios, antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, jamais foram advertidos da impossibilidade futura de adesão ao ANPP, o que torna a solução ainda mais evidente: a vedação ao acordo, na hipótese do artigo 28-A, §2º, III, do CPP, aplica-se somente para benefícios penais formalmente aceitos após a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19. A questão também se relaciona com a lealdade processual, exigindo um agir ético dos sujeitos processuais.

Nesse contexto, deixar de ofertar ANPP ao autor do fato que aderiu à transação penal ou à suspensão condicional do processo, antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, reveste-se de flagrante ilegalidade, ultrapassando os limites da discricionariedade do ato administrativo. Exige-se, nesse caso, o controle do ato arbitrário (sem fundamentação adequada) pela instância revisional do Ministério Público (artigo 28-A, §14º, do CPP), bem como o controle jurisdicional da ilegalidade a se dar pela  determinação pela Autoridade Judiciária competente de que o acordo seja oferecido para aqueles casos em que a única motivação para o não oferecimento residir na existência de benefícios legais formalmente aceitos antes do pacote anticrime. Outrossim, é de se admitir a impugnabilidade através dos remédios constitucionais adequados para sanear a arbitrariedade ou a ilegalidade.


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus nº 185.913/DF. Relator: Min. Gilmar Mendes. Plenário. Minuta de voto do ministro Gilmar Mendes. Brasília, 17 set. 2021. Disponível em: <https://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5126375>. Acesso em: 24 fev. 2023.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados, doutor e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), especialista em Ciências Penais pela PUC-RS, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, da Escola de Direito da PUC-RS, professor adjunto da graduação da PUC-RS, coordenador da Especialização em Ciências Penais e da Especialização em Direito Penal e Criminologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS UOL Ed.Tech) e do Núcleo de Prática Jurídica da Escola de Direito da PUC-RS.

  • é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri, professor no mestrado e doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS, e sócio do escritório Giacomolli Advocacia e Consultoria.

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