Opinião

Artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Lavagem: deveres de cuidado que lhes cabem

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7 de março de 2023, 21h22

A Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) prevê, em seu artigo 9º, as pessoas físicas e jurídicas oneradas com os deveres previstos nos artigos 10 e 11 dessa Lei, destinados à prevenção da lavagem de capitais em determinados setores considerados sensíveis (por serem frequentemente utilizados para a prática de tal crime).

O artigo 10 [1] impõe às pessoas juridicamente obrigadas o dever de armazenar informações relevantes e sensíveis sobre seus clientes e operações financeiras. Trata-se, em última análise, da obrigação de registrar informações e de implementar um compliance eficiente. Aquele dever impõe a necessidade de identificação e registros dos clientes, bem como de operações que excedam os limites fixados pelas autoridades competentes em cada âmbito econômico, entre outros. Ao passo que o compliance se concretiza em medidas de prevenção que tenham por escopo assegurar o exigido pela lei, por meio de procedimentos internos, em conformidade com a atividade empresarial desenvolvida, com o volume de capital movimentado e com os parceiros comerciais.

O artigo 11 [2], por sua vez, impõe o dever de comunicação às autoridades competentes (por exemplo, Conselho de Controle de Atividades Financeiras  Coaf) de operações financeiras suspeitas (por apresentarem indícios da prática do crime de lavagem de capitais) ou que sejam superiores aos limites fixados pelas autoridades e pelas normas responsáveis pela regulação de cada setor.

Resolução ANM nº 129, de 23 de fevereiro de 2023: delimitação do objeto e finalidade
Em fevereiro deste ano, a Agência Nacional de Mineração (ANM) aprovou a Resolução ANM nº 129, destinada à prevenção da lavagem de capitais. A resolução visa regulamentar o cumprimento dos "deveres de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa (PLD/FTP)", sujeitando a tais regras os mineradores produtores de pedras e metais preciosos.

Como consta de seu preâmbulo, a resolução:

Dispõe sobre cumprimento dos deveres de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa  PLD/FTP, legalmente atribuídos na forma dos artigos 10 e 11 da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998.

Busca-se a promoção de mecanismos que permitam à Agência Nacional de Mineração e aos demais órgãos de fiscalização exercer um controle mais efetivo contra a lavagem de capitais que tenha por objeto de ocultação e/ou dissimulação pedras e metais preciosos, especialmente ouro, com enfoque no combate aos garimpos ilegais no Brasil.

Cumpre, então, compreender as normas a partir daqueles deveres previstos nos artigos 10 e 11 da Lei 9.613/98. O que se observa é um detalhamento daquelas obrigações a partir das particularidades da atividade de mineração, com a ressalva de que as disposições de seu Capítulo II são aplicáveis às pessoas jurídicas de pequeno (faturamento anual no valor de até R$ 16.800.00,00), médio e grande portes (faturamento anual igual ou superior a R$ 16.800.00,00), enquanto naquelas do Capítulo III, exclui-se as de pequeno porte.

Em relação às obrigações previstas no artigo 10 (deveres "de identificação dos clientes e manutenção de registros"), aplicáveis às pessoas físicas e jurídicas de todos os portes, a Resolução da ANM subdividiu-os em quatro seções, especialmente vinculadas à estruturação e ao escopo dos programas de cumprimento normativo (compliance) a serem implementados pelos sujeitos obrigados, a saber:

1) "Da identificação e manutenção do cadastro de clientes e demais envolvidos", na qual se regulamenta os procedimentos ligados à identificação dos clientes e de outros envolvidos nas operações vinculadas à atividade de mineração, discriminando quais os dados devem ser coletados, armazenados e sistematizados;

2) "Do registro das operações", o qual estabelece o dever de manutenção de “registro de todas as operações de comercialização de pedras e metais preciosos” realizados pelas pessoas físicas e jurídicas obrigadas (mineradores), discriminando quais dados devem ser coletados, armazenados e sistematizados;

3) "Da política de prevenção", determinando qual a finalidade e a quais procedimentos e controles devem se prestar;

4) "Do monitoramento, da seleção e da análise de operações", determinando a adoção, pelas pessoas físicas e jurídicas obrigadas, de medidas destinadas ao "monitoramento, seleção e análise de operações e situações", a fim de verificar operações suspeitas que indiquem a possível prática do crime, sobretudo, de lavagem de capitais;

5) "Dos procedimentos destinados a conhecer funcionários, parceiros e prestadores de serviços terceirizados", na qual se regulamenta medidas destinadas a assegurar "diligência na sua identificação e qualificação".

Por sua vez, ainda enquanto deveres vinculados ao artigo 10 da Lei de Lavagem de Capitais, menciona-se aqueles destinados às pessoas físicas e jurídicas de médio e grande porte:

1) "Da política de prevenção", a determinar expressamente o dever de implementar e de manter procedimentos internos a fim de garantir a observância aos deveres previstos nos artigos 10 e 11 da Lei de Lavagem de Capitais, determinando os seus elementos básicos;

2) "Da governança da política de PLD/FTP", a determinar que as pessoas físicas e jurídicas de médio e grande porte "devem dispor de estrutura de controle de seu negócio e governança corporativa", voltadas a assegurar o atendimento às políticas de prevenção.

Por fim, especificamente quanto àquele dever de comunicação às autoridades competentes, previsto no artigo 11 da Lei 9.613/98, a Resolução impõe aos sujeitos obrigados, de todos os portes, a obrigação de notificação ao Coaf de operações suspeitas, detalhando o que confere tal condição, as circunstâncias relevantes e como proceder.

Em suas disposições gerais, no que concerne à responsabilidade administrativa em razão do descumprimento das normas previstas na Lei de Lavagem de Capitais, e regulamentadas pela Resolução, a norma ressalta que tanto as pessoas físicas e jurídicas obrigadas quanto seus administradores, caso descumpram os deveres previstos, estarão sujeitos às sanções previstas no artigo 12 da Lei 9.613/98

Possíveis efeitos da violação aos deveres de cuidado, relacionados à prevenção da lavagem de capitais, sobre a responsabilização criminal
Registra-se que o crime de lavagem de capitais não apresenta figura culposa no ordenamento jurídico brasileiro. É dizer, não basta o simples desatendimento aos deveres de cuidado relacionados à prevenção desse crime para que alguém por ele responda criminalmente. Exige-se, à imputação de lavagem de capitais, que o sujeito atue com dolo direto (majoritariamente compreendido como consciência e vontade) ou, como admitido em alguns casos por parcela da doutrina e da jurisprudência, dolo eventual (assumindo o risco da prática ou ocorrência de lavagem de capitais).

E sobre esta última figura (dolo eventual), cabem algumas considerações. Não raro, e embora se trate de construção ilegal, os órgãos de persecução penal (Polícias Civil e Federal, Ministérios Públicos Estadual e Federal) recorrem, diante da ausência de provas do dolo ou para superar alegações de erro de tipo, à violação dos deveres de cuidado relacionados à prevenção da lavagem de capitais como fundamento para imputar o crime a título de dolo eventual. Isto é, a pretexto de buscar embasar a responsabilidade por lavagem de capitais, afirma-se que o desatendimento a tais obrigações seria um indicativo de que o sujeito assumiu o risco de sua ocorrência, sendo comum o recurso à intitulada cegueira deliberada para fundamentar o dolo eventual dos envolvidos.

Para além disso, ressalta-se a previsão da Lei 12.850/13, que disciplina o crime de organização criminosa e circunstâncias a ele relacionadas. No ponto, interessa o delito previsto no artigo 2º, §1º, desse diploma:

"Artigo 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
§1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa."

Embora se trate de estratégia de persecução penal de legalidade questionável (na medida em que o crime em questão exige a "consciência e vontade" de impedir ou embaraçar a investigação), há casos nos quais o desatendimento aos deveres de cuidado ligados à lavagem de capitais (que, a despeito de regulamentados na esfera administrativa e cível, refletem na delimitação da responsabilidade penal) pode ser reputado como estratégia para embaraçar investigação de delito praticado no âmago de organização criminosa.

Por exemplo: na hipótese de acusação por algum crime ambiental relacionado à extração e exploração da atividade de mineração (v.g. artigos 44 e 55 da Lei 9.605/98 etc.), em tese praticado por organização criminosa [3], caso se verifique que a pessoa jurídica descumpriu qualquer dos deveres previstos na Lei de Lavagem de Capitais e detalhados na Resolução da ANM, os seus administradores poderão responder (sem adentrar, aqui, a legitimidade dessa acusação), a título de omissão, pelo delito previsto no §1º do artigo 2º da Lei 12.850/13. Isso se daria, por exemplo, por meio da utilização da estratégia acusatória acima mencionada: recurso à cegueira deliberada para se imputar dolo eventual.

Pois bem, diante da crescente regulação da atividade de mineração, cabe alerta aos operadores desse setor (pessoas jurídicas e seus administradores), para que busquem adequar a organização empresarial às normas correspondentes, visando ao atendimento dos deveres de cuidado impostos e à mitigação do risco de ocorrência de delitos relacionados à atividade empresarial e, consequentemente, de responsabilização criminal.


[1] Artigo 10. As pessoas referidas no artigo 9º:

I – identificarão seus clientes e manterão cadastro atualizado, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes;

II – manterão registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas;

III – deverão adotar políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender ao disposto neste artigo e no artigo 11, na forma disciplinada pelos órgãos competentes;

IV – deverão cadastrar-se e manter seu cadastro atualizado no órgão regulador ou fiscalizador e, na falta deste, no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), na forma e condições por eles estabelecidas;

V – deverão atender às requisições formuladas pelo Coaf na periodicidade, forma e condições por ele estabelecidas, cabendo-lhe preservar, nos termos da lei, o sigilo das informações prestadas.         

§1º Na hipótese de o cliente constituir-se em pessoa jurídica, a identificação referida no inciso I deste artigo deverá abranger as pessoas físicas autorizadas a representá-la, bem como seus proprietários.

§2º Os cadastros e registros referidos nos incisos I e II deste artigo deverão ser conservados durante o período mínimo de cinco anos a partir do encerramento da conta ou da conclusão da transação, prazo este que poderá ser ampliado pela autoridade competente.

§3º O registro referido no inciso II deste artigo será efetuado também quando a pessoa física ou jurídica, seus entes ligados, houver realizado, em um mesmo mês-calendário, operações com uma mesma pessoa, conglomerado ou grupo que, em seu conjunto, ultrapassem o limite fixado pela autoridade competente.

[2] Artigo 11. As pessoas referidas no artigo 9º:

I – dispensarão especial atenção às operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes, possam constituir-se em sérios indícios dos crimes previstos nesta Lei, ou com eles relacionar-se;

II – deverão comunicar ao Coaf, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no prazo de 24 horas, a proposta ou realização:      

a) de todas as transações referidas no inciso II do artigo 10, acompanhadas da identificação de que trata o inciso I do mencionado artigo; e           

b) das operações referidas no inciso I;

III – deverão comunicar ao órgão regulador ou fiscalizador da sua atividade ou, na sua falta, ao Coaf, na periodicidade, forma e condições por eles estabelecidas, a não ocorrência de propostas, transações ou operações passíveis de serem comunicadas nos termos do inciso II.

§1º As autoridades competentes, nas instruções referidas no inciso I deste artigo, elaborarão relação de operações que, por suas características, no que se refere às partes envolvidas, valores, forma de realização, instrumentos utilizados, ou pela falta de fundamento econômico ou legal, possam configurar a hipótese nele prevista.

§2º As comunicações de boa-fé, feitas na forma prevista neste artigo, não acarretarão responsabilidade civil ou administrativa.

§3º  O Coaf disponibilizará as comunicações recebidas com base no inciso II do caput aos respectivos órgãos responsáveis pela regulação ou fiscalização das pessoas a que se refere o artigo 9º.

[3] §1º Considera-se organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional.

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