Opinião

(Im)possibilidade de militares e policiais advogarem, mesmo em causa própria

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6 de março de 2023, 6h11

Em 27/2/23, a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 7.227/DF foi incluída na pauta de julgamento virtual do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, com início para o dia 10/3/23 e previsão de término em 17/3/23.

Por meio da ADI, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil busca a declaração da inconstitucionalidade dos §§3o e 4o do artigo 28 da Lei no 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil — Eaoab), introduzidos no sistema jurídico em 3 de junho do ano passado, com a promulgação da Lei no 14.365/22.

A Lei no 14.365/22 realizou uma série de mudanças relacionadas ao exercício da atividade advocatícia, com a inclusão e alteração substancial de diversos dispositivos no Eaoab, modificado em raríssimas ocasiões desde que entrou em vigor, bem como na legislação processual penal e civil.

Em linhas gerais, as alterações foram muito positivas e festejadas pela classe, destacando-se a possibilidade de o advogado contribuir com a elaboração de normas jurídicas "no âmbito dos Poderes da República"; proibição de o advogado firmar acordo de colaboração premiada contra seu próprio cliente; ampliação substancial da pena para o crime de violação de prerrogativas profissionais; suspensão dos prazos processuais penais no período de recesso forense; possibilidade de recebimento de honorários por indicação de clientes a colegas advogados; entre outras.

Chama a atenção, contudo, a relevante alteração que é objeto da ADI no 7.227/DF, promovida no sistema de proibições entre o exercício simultâneo da advocacia com outras atividades profissionais, em especial de natureza pública (Capítulo VII do Eaoab).

Os militares na ativa e os ocupantes de funções vinculadas à atividade policial de qualquer natureza, até então totalmente proibidos de exercer a advocacia, foram expressamente autorizados pela Lei no 14.365/22 a atuar "em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados" (artigo 28, §3o, do Eaoab).

Como se sabe, os "impedimentos e incompatibilidades existem em todas as legislações do mundo sobre a advocacia, desde quando o Imperador Justino, de Constantinopla, no século VI, estruturou legalmente a profissão" [1].

No Brasil, a primeira regulamentação da Ordem dos Advogados do Brasil ocorreu por meio do Decreto no 20.784/31, que foi inspirado no modelo francês (Barreau de Paris), tanto na forma de organização da entidade como nas regras relacionadas ao exercício profissional.

O Decreto, já em seu Capítulo II, tratava "Dos proibidos e dos impedidos de procurar em juízo". Excetuada as hipóteses de restrições, o advogado poderia exercer livremente outra profissão de forma simultânea. Nesse ponto, fomos mais liberais do que os franceses, pois, no sistema deles, "o advogado é só advogado" [2].

Referido decreto sofreu diversas alterações (Decretos nos 21.592, 22.039 e 22.266/32, 22.478/33, 24.185 e 24.631/34; Lei no 510/37; Decretos-Leis nos 2.407/40; 4.803/42; 5.410/43; 7.359/45; 8.403/45; Leis nos 690/49 e 1.183/50), mas sempre com a manutenção do sistema de proibições.

Com a promulgação da Lei no 4.215/63, foi instituído o "Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil", em substituição ao antigo regulamento e suas respectivas alterações. A Lei alterou a nomenclatura utilizada pelo regulamento anterior quanto à "proibição" do exercício da advocacia, passando a utilizar a expressão incompatibilidade.

Além disso, o legislador deixou claro que a incompatibilidade deveria ser compreendida como "o conflito total" de determinada atividade com o exercício da advocacia, ao passo que o impedimento seria apenas "o conflito parcial".

O Estatuto, na linha do regulamento anterior, também apresentou lista de atividades incompatíveis com o exercício da advocacia, mesmo que em causa própria, incluindo aquelas desempenhadas por policiais, militares, serventuários da justiça e magistrados, além de abarcar previsão genérica, no sentido de proibir a o exercício conjunto da advocacia "com qualquer atividade, função ou cargo público que reduza a independência profissional ou proporcione a captação de clientela" (artigo 83).

Efetivamente, a finalidade do sistema de proibições  que é mantida até os dias atuais  é resguardar a independência do advogado quando há coexistência de atividades e, ao mesmo tempo, garantir o tratamento igualitário entre os profissionais inscritos, eliminando qualquer tipo de vantagem oriunda da posição pública ocupada, especificamente a captação de clientela.

Dalmo de Abreu Dallari faz importante advertência sobre a captação de clientela que a incompatibilidade pretende impedir. A captação ilegal e voluntária de clientes pressupõe inscrição ativa e atuação dolosa do advogado. Tal conduta também é reprovável e está prevista como infração disciplinar. Contudo, o que o sistema de proibições pretende evitar, segundo o renomado jurista, é a captação involuntária ou não procurada, pois decorre, "inevitavelmente, da posição ocupada pelo profissional no organismo público, gerando, nas pessoas que com ele se relacionam, ou o temor de represálias ou a esperança de um tratamento privilegiado nas suas relações com o Poder público" [3].

A Lei no 4.215/63 também sofreu alterações ao longo dos anos. No sistema das incompatibilidades, poucas mudanças foram realizadas pelas Leis no 5.681/71 e 6.743/79. Destaca-se, pela pertinência ao presente estudo, que a Lei no 5.681/71 delimitou a proibição do exercício profissional da advocacia apenas aos militares "da ativa", já que, pela literalidade da redação anterior, a incompatibilidade também alcançava os reformados ou os transferidos para a reserva.

Em 4 de julho de 1994, foi promulgada a Lei no 8.906 (Eaoab), que está em vigor até os dias atuais. Quanto às incompatibilidades, optou por enumeração taxativa, excluindo as referências genéricas existentes no Estatuto anterior.

Segundo a atual legislação (artigo 28), a advocacia é incompatível, mesmo em causa própria e ainda que o profissional esteja temporariamente afastado do cargo ou função, com os ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente (atividades meramente administrativas ou de apoio) à atividade policial de qualquer natureza (inciso V), bem como com os militares de qualquer natureza, na ativa (VI).

Muito debate surgiu acerca da necessidade de limitação da restrição do artigo 28, V, do Eaoab, aos órgãos responsáveis pela segurança pública, mencionados no artigo 144 da Constituição Federal, ou se também deveria abarcar aqueles cargos com competência de polícia administrativa, tendo em vista a expressão "atividade policial de qualquer natureza".

Atualmente, a questão está pacificada na doutrina e jurisprudência, pela aplicação abrangente do dispositivo, para proibir tanto aqueles que exercem poder de polícia stricto sensu quanto os agentes com atribuições típicas de polícia administrativa, como fiscalização, autuação, apreensão e interdição, tal como os Agentes de Trânsito (STJ, REsp no 1.377.459/RJ, relator ministro Benedito Gonçalves, DJe 27.11.14).

A tentativa de liberar o exercício concomitante da advocacia por pessoas vinculadas à segurança, pública ou nacional, iniciou-se logo após a promulgação do Eaoab. Em 1996, o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, ainda na condição de Deputado Federal, apresentou o PL no 2.300/96, em que pretendia enquadrar a situação dos militares na ativa apenas na hipótese de impedimento prevista no artigo 30, II, do Eaoab.

Desde então, vários outros Projetos de Lei foram apresentados, buscando, em alguma medida, a liberação do exercício da advocacia aos ocupantes das funções descritas no artigo 28, V e VI, do EAOAB (PL no 4.529/98; PL no 1.373/03; PL no 5.551/05; PL no 97/07; PL no 6.675/09; PL no 7.571/14; PL no 1.390/15; PL no 5.914/16; PL no 8.172/17; PL no 10.102/18; PL no 5.271/20; PL no 363/21; PL no 1.426/21; PL no 2.004/21; e PL no 3.757/21).

Quase metade dos citados Projetos de Lei foi apresentada após 2018, o que se justifica pela forte representatividade que policiais e militares passaram a ter na Câmara dos Deputados [4].

Após mais de 27 anos de vigência do Eaoab, com a promulgação da Lei no 14.365/22, finalmente foi autorizado o exercício da advocacia aos policiais e militares na ativa, desde que em causa própria, "estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados" (artigo 28, §3o).

A referida Lei decorre do PL no 5.284/20, de iniciativa do deputado federal Abi-Ackel, que, de início, não tratava de qualquer alteração no artigo 28, o que só veio a surgir em 26.10.21, com a Emenda de Plenário a Projeto com Urgência (EMP) no 14, do deputado capitão Wagner, que basicamente replicava o texto do PL no 1.426/21, também de sua autoria, mas que foi apensado aos outros projetos que tratam da matéria, mas que não tiveram significativo avanço.

Assim, o legislador, em benefício exclusivo de duas categorias, acabou por formular uma nova hipótese no sistema de proibições, mais próxima do impedimento, já que a incompatibilidade sempre irá implicar na proibição total e absoluta de se exercer a advocacia, inclusive em causa própria.

A partir de agora, então, os policiais e militares na ativa, que, segundo regramentos próprios, estão sujeitos ao regime de dedicação exclusiva, o que, por si só, já torna questionável a liberação, poderão advogar em causa própria, que deve ser compreendida como aquela que envolva estritamente "direitos pessoais".

Portanto, é perfeitamente possível, segundo a redação legal, que um delegado de Polícia, vítima de determinada conduta criminosa, formule pedido de instauração de inquérito policial para apuração dos fatos, além de acompanhar sua tramitação na condição de advogado, pois inegável que a identificação e futura responsabilização do agente envolve a defesa de direitos pessoais.

Poderá, ainda, para respaldar seu pedido, realizar investigação defensiva, promovendo "diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato", nos termos do Provimento CFOAB no 188, de 11 de dezembro de 2018.

Do outro lado, torna-se questionável também a efetividade do autopatrocínio à ampla defesa: o policial ou o militar, na condição de investigado ou réu, apresentado em razão de prisão em flagrante ou no curso de processo administrativo, deverão rebater as decisões de seus superiores dentro da corporação, inclusive com o emprego de linguagem mais contundente peculiar de arrazoados jurídicos e debates orais, o que é incompatível com as diretrizes que regem as carreiras públicas, especialmente o respeito incondicional à hierarquia (Lei no 7.289/84  Estatuto dos Policiais-Militares; Lei no 6.880/80 — Estatuto dos Militares; e Regimento Interno da Polícia Federal).

Considerando ainda que as restrições ao exercício profissional devem ser interpretadas de forma taxativa, também será permitido ao agente de segurança, policial ou militar, advogar contra a Fazenda Pública que o remunera, na medida em que a categoria "permanece" no campo das incompatibilidades, apesar de ter sofrido mitigação.

Mais difícil, porém, será justificar a impossibilidade de ampliação do entendimento para as outras hipóteses de incompatibilidade, já que foi permitido o exercício da advocacia para algumas das proibições mais relevantes do Estatuto.

Portanto, não irá demorar para que agentes fiscais, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, ocupantes de cargos de direção da administração pública requeiram seja ampliado o entendimento para permitir que também possam exercer a advocacia em causa própria, sendo evidente o prejuízo que isso irá ocasionar para a classe e sociedade, em especial ante o risco de indevida influência do cargo, além do manifesto conflito, que esse exercício advocatício, ainda que pontual, pode gerar.

Em suma, vários são os problemas que a autorização conferida pelo Legislador poderão ocasionar, motivando o Conselho Federal da OAB a determinar a suspensão de todos os pedidos de inscrição especial até que seja editado provimento regulamentando a matéria (Ofício Circular no 008/2022-GPR, de 06 de junho de 2022), bem como a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (ADI no 7.227/DF, distribuída em 10.08.22), que foi incluída na pauta de julgamento virtual do Tribunal Pleno (entre 10.03.23 e 17.03.23) e que já conta com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República.

É fundamental que o Supremo Tribunal Federal, tal como fez em 2014 no julgamento da ADI no 3.541/DF (relator ministro Dias Toffoli, DJE 24.03.14), reconheça a importância da incompatibilidade dos agentes de segurança com o exercício da advocacia, com o consequente acolhimento da ADI no 7.227/DF para declarar a inconstitucionalidade do artigo 28, §§3o e 4o, da Lei no 8.906/94, preservando, assim, a importância de cada função destacada pela Constituição.

 


[1] Paulo Lôbo, Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB, 14a ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022, p. 203. Destaca-se, nesse sentido, as legislações de Portgual (Estatuto da Ordem dos Advogados), Espanha (Estatuto General de la Abogacía Española), Colômbia (Estatuto del ejercicio de la abogacía), Chile (Codigo de Etica Profesional), Panamá (Ley de la Abogacía), entre tantas outras.

[2] Ruy de Azevedo Sodré, A ética profissional e o estatuto do advogado. São Paulo: Ltr. 1975, p. 347.

[4] "O número de policiais e militares eleitos para o Legislativo pulou de 18 para 73 na comparação dos resultados das eleições de 2014 e 2018, segundo levantamento do G1, com base nos dados do TSE". (Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml. Acesso em 27.02.23).

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