Justiça tributária

Temas 881 e 885: entre a segurança jurídica e a igualdade concorrencial

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

6 de março de 2023, 8h00

Os Temas 881 e 885 do STF, cujo acórdão sequer foi publicado, já apresenta uma verdadeira enxurrada de problemas jurídicos, que, espera-se, terão fim quando o processo transitar em julgado. Já tratei nesta ConJur dos novos contornos da coisa julgada e seus impactos e da diferença entre irretroatividade e modulação.

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Hoje abordarei a questão sob outro prisma, menos processual e mais principiológico, que é o da escolha política adotada pelo STF, efetuada rigorosamente dentro dos limites constitucionais, entre segurança jurídica e isonomia, mantendo a ressalva de que escrevo antes do acórdão ser publicado.

É sabido que as normas jurídicas se dividem entre princípios e regras. Os princípios veiculam valores normatizados, e as regras implementam, concretizam, um determinado conjunto de princípios. Desse modo, por exemplo, é assegurado em nossa Constituição o direito de propriedade, o qual, se lido isoladamente, acabaria com qualquer espécie de usucapião; todavia, existe também como princípio a função social da propriedade, o que permite contemplar as regras jurídicas atinentes à usucapião previstas em nosso ordenamento. Trata-se de uma ponderação de princípios, que apenas privilegia ou distingue um em face do outro na interpretação das normas, mas ambos permanecem vigindo.

Logo, o uso da expressão "opção política do STF" não se refere à judicialização da política, mas a uma escolha do STF dentre opções constitucionalmente válidas, dentro de um conjunto de princípios, o que gerará a aplicação de certas regras em detrimento de outras.

Penso ter sido exatamente isso que o STF adotou ao aprovar, por unanimidade, a redação da Tese referente aos Temas 881 e 885.

Existe um principio extremamente importante no sistema jurídico, que é o da segurança jurídica, que possui dentre suas mais diversas expressões, o instituto da coisa julgada, com assento constitucional expresso. Existe também o princípio da isonomia, que, dentre muitas outras expressões, se identifica no aspecto concorrencial, a fim de permitir que os agentes econômicos disputem no mercado em igualdade de condições, considerados certos parâmetros. Para esta espécie de isonomia concorrencial, a questão tributária é de fundamental importância, pois obriga que os tributos incidam de forma economicamente neutra para os agentes econômicos na disputa dos mercados.

Assim, o STF adotava uma posição de amplo respeito à coisa julgada (princípio da segurança jurídica) em detrimento da concorrência (princípio da isonomia), o que se revela através da decisão proferida à unanimidade no Tema 733, que teve por relator o Ministro Teori Zavascki, assim lavrado em maio de 2015: "A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495)."

Essa decisão, proferida em sede de Repercussão Geral, determina que, havendo modificação do entendimento do STF, a favor ou contra o contribuinte, é imprescindível: (1) haver interposição do recurso cabível ou a propositura de ação rescisória; (2) respeitado o prazo legal de 02 anos para as ações rescisórias; (3) isto porque a mudança ocasionada pelo novo julgamento não produziria automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente.

É inequívoca a opção realizada pelo STF em maio de 2015, no Tema 733, pelo princípio da segurança jurídica, em especial pela coisa julgada. Afinal, se o prazo de 02 anos para a propositura da ação rescisória já tivesse esgotado, ela se tornaria imutável (deixo de tratar da hipótese de mudança normativa, pois se trata de outro assunto).

Em fevereiro de 2023, passados cerca de 08 anos e com pequena mudança de membros na composição da Corte, o STF mudou sua opção política, dentro da Constituição, privilegiando a isonomia concorrencial. Basta ler a segunda parte do Tema 881 e 885: “Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.”

É inequívoco o giro jurisprudencial adotado, também por unanimidade. Passa-se a privilegiar o princípio da isonomia, sob o enfoque concorrencial, pois, havendo modificação de entendimento do STF, serão interrompidos "automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado".

O uso da expressão "automaticamente" torna desnecessário qualquer recurso ou ação rescisória para desfazer a coisa julgada, o que afasta qualquer limite temporal. Desta forma, privilegia-se o princípio da isonomia, no seu aspecto da concorrência nos mercados, implementando o efeito econômico neutro à incidência tributária, mesmo que este tenha sido abalado por uma coisa julgada, que concedia direitos a quem a detivesse.

Mesmo com essa alteração em prol do princípio da isonomia, a decisão resguarda o princípio da segurança jurídica, pois estabelece que devem ser "respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo". Todas essas expressões refletem um conjunto de normas atinentes ao princípio da segurança jurídica, pois: (1) o tributo não poderá ser cobrado de forma retroativa, isto é, a falha concorrencial existente já foi consumada; (2) e só poderá ser cobrado respeitadas as normas de não-surpresa para o futuro, isto é, a anterioridade, sob seus distintos aspectos.

O princípio da segurança jurídica também está sendo respeitado ao não ser modulada tal decisão para o passado. Logo, quem detinha uma decisão transitada em julgado em seu favor estava constitucionalmente assegurado – exercia um direito que a ordem jurídica lhe garantia e o Tema 733 consolidava no âmbito jurisprudencial. Agora, e tão somente agora, em face dessa virada jurisprudencial, é que deverá passar a pagar os tributos aos quais não estava obrigado por força da coisa julgada proferida em seu favor, e respeitados os diversos âmbitos da anterioridade.

Dois últimos tópicos.

Há muito ruído em razão dessa decisão, havendo mesmo quem esteja propalando o fim da coisa julgada e da segurança jurídica. Não compartilho dessa opinião. A coisa julgada permanece para uma enormidade de situações, exceto quando houver decisão diversa, a favor ou contra o contribuinte, em controle direto ou em Repercussão Geral. Restrinjo-me à análise tributária ao mencionar a palavra “contribuinte”.

Outra característica desse julgamento é que o de se constituir em dois níveis, isto é, um nível para todas as relações jurídicas de trato continuado que ocorrerão doravante, e outro, que é o de sua aplicação concreta para todas as situações em que venha a ocorrer tal dissídio jurisprudencial. Fica evidente que, nestes casos, o princípio da isonomia, sob a ótica concorrencial, passa a se sobrepujar ao princípio da segurança jurídica, porém ambos permanecem válidos em nosso sistema, sob outras dimensões.

Esta decisão do STF harmonizou o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, articulando o difuso e o concentrado, ao estabelecer novos parâmetros principiológicos para sua aplicação, o que ocorrerá doravante, isto é, desta decisão para a frente, sem efeitos retroativos.

Aguardemos o acórdão, para ver se foi mesmo esse o entendimento do STF.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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