Embargos Culturais

"O Naufrágio das Civilizações", do jornalista e romancista Amin Malouf

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

5 de março de 2023, 8h00

"O mais importante, numa obra literária, não é a mensagem que o autor quis nos transmitir, mas os nutrientes intelectuais e afetivos que cada leitor pode extrair dela." Essa afirmação, para mim um postulado inegável, está em O Naufrágio das Civilizações, de Amin Malouf. O autor nasceu no Líbano e é radicado na França. Destaca-se como jornalista e romancista.

Spacca
Entre seus livros, As Cruzadas Vistas pelos Árabes; o título que já revela uma forma alternativa, diferente e inteligente de ver o mundo. À luz de uma interpretação árabe (ou levantina, como o autor prefere) não há espaço para interpretações simplistas de reconquista de Jerusalém, como sugere a obra clássica do poeta sorrentino Torquato Tasso (1544-1595).

O Naufrágio das Civilizações encanta pelos nutrientes intelectuais (um estudo profundo sobre a tragédia das políticas identitárias) e pelos estímulos afetivos (o encontro com um mundo esfacelado, que de algum modo já não é mais o nosso mundo). É um livro triste. Há lamento, nostalgia, melancolia. O autor nos comprova que "as ondas identitárias envenenaram a atmosfera do planeta". É uma obra de quem escreve "ao anoitecer da vida com infinita tristeza". É o que vemos a nossa volta.

No Oriente Médio os conflitos são intermináveis. É esse o ponto fundamental do livro, que enfrenta basicamente três assuntos: o esfacelamento da cultura árabe (por conta de guerras intermináveis), as expressões do pensamento conservador (e o abandono de agendas de fraternidade) e a concepção de uma vida controlada (o que o autor denomina de "deriva orwelliana"). O autoritarismo é o ponto comum que liga esses três temas. Vivemos um tempo paradoxal: "tudo que não é proibido é obrigatório".

A sessão relativa ao esfacelamento da cultura árabe (e não muçulmana, bem entendido) é um testemunho pessoal do autor, que é libanês e viveu no Egito; hoje mora na França. Faz referências a cidades que um dia foram esplendorosas: Beirute, Aleppo, Alexandria, Cairo, Teerã, Riad. Conflitos entre cristãos, judeus, muçulmanos, e entre divisões internas, sunitas, xiitas, coptas, em todos os lugares, sempre com base na ilusão perversa da homogeneidade étnica e cultural. É o choro do paraíso perdido.

Para Malouf, mesmo em ambientes democráticos (que não é o caso do Oriente Médio) difícil o exercício do papel de cidadão sem referências a etnia, religião e convicções pessoais. O identitarismo é um apelo permanente à guerra civil. O autor ilustra essa tensão com a criação da Índia, e concomitante criação do Paquistão, quando se dividiu a colônia inglesa entre hindus e muçulmanos. No Paquistão, no entanto, havia o conflito entre os bengalis e os panjabis.

Os bengalis se separaram e adotaram o nome de Bangladesh. Um terrível ciclone tropical deixou 250 mil mortos. A fome tornou-se regra. Os mais antigos nos lembramos de George Harrison conduzindo um concerto humanitário em Nova Iorque. Eric Clapton estava totalmente drogado (o guitarrista conta o fato em sua autobiografia). Bob Dylan levou o Madison Square Garden ao delírio ao interpretar Blowing in the wind, canção que é o emblema musical de uma época.

Os tempos eram outros. Malouf faz referência a Gamal Abdel Nasser, líder nacionalista egípcio, que falava abertamente na desnecessidade do uso do véu, afirmação que hoje seria inaceitável no mesmo ambiente. A guerra dos seis dias, em 1967, com a esmagadora presença de Israel na região, ampliando os territórios ocupados, teria hostilizado um orgulho que iria explodir novamente em 1973, com a crise do petróleo. Malouf é porta-voz de uma incurável angústia para coma deterioração do mundo árabe.

Em O Naufrágio das Civilizações o autor enfatiza a importância de 1979. Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos pregavam novas normas e práticas para a boa gestão pública: a diminuição do governo na vida econômica, a limitação das despesas sociais, uma maior importância para os empresários e a redução da influência dos sindicatos. Para o autor, o texto-credo desse novo tempo era A Revolta de Atlas, de Ayn Rand, imigrante russa que vivia nos Estados Unidos. Nesse importante livro (um cartapácio de 1215 páginas na tradução da Editora Arqueiro), os grevistas são os operários. Os grevistas são os empresários, constrangidos pelo excesso de regulação. Por outro lado, se para Reagan o Estado era o problema, pergunta Malouf se a ausência do Estado não seria um problema ainda mais grave.

Para Malouf a Revolução Iraniana também foi uma revolução conservadora, que nos remete a 1979. Malouf entrevistou o Aiatolá Khomeini, com quem falava em árabe clássico (que o líder iraniano entendia, mas que respondia em persa, com tradução para o entrevistador. A revolução no Irã era atípica, segundo o autor, conduzida por um clérigo conservador. Malouf acrescenta a tomada do poder por Deng Xiaoping na China em 1978, os anos finais da União Soviética e a queda muro de Berlim em 1989.

A revolução tecnológica, segundo Malouf, pode tornar boa parte da humanidade formada por indivíduos que seriam vistos como supérfluos, incômodos, parasitários e potencialmente danosos. Assim, conclui, a "própria noção de humanidade, pacientemente construída ao longo de milênios, estaria, então, esvaziada de sentido".

Uma derrota. Parafraseando o autor, a derrota, por vezes, pode ser uma oportunidade. Talvez nós não conseguimos percebê-la. A vitória, ainda nessa paráfrase, pode ser uma armadilha, que não conseguirmos evitar.

A tradução do livro é do competentíssimo Arnaldo Bloch, que também traduziu Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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