Garantias do Consumo

Planos são obrigados a custear cirurgia de esterilização para planejamento familiar

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31 de maio de 2023, 8h00

A estruturação responsável da família  base da sociedade conforme preconiza o artigo 226, caput, da Carta Maior de 1988  decorre da livre decisão do casal e compete ao poder público propiciar o pleno exercício deste direito [1].

Cumprindo os ditames constitucionais e com esteio na dignidade da pessoa humana [2], a Lei nº 9.263/96 previu que o planejamento familiar é "direito de todo cidadão" [3]. Consiste no conjunto de ações para a regulação da fecundidade mediante a garantia de prerrogativas, a serem exercidas, em igualdade de condições, pela mulher, pelo homem ou pelo casal, com o fito de constituição, limitação ou aumento da prole [4]. Sucede que inexistia regra específica acerca da cobertura obrigatória da esterilização por parte das operadoras de planos de saúde.

A Lei Federal nº 14.443/2022, cuja vigência iniciou-se em 2 de março de 2023 [5], alterou o mencionado diploma legal, vindo a determinar prazo para o oferecimento de mecanismos contraceptivos, bem como disciplinou as condições para a laqueadura e a vasectomia.

Nessa senda, tornou-se obrigatória a disponibilização de qualquer método e técnica de contracepção no prazo máximo de 30 dias [6], desde que atendidos os pressupostos legais. De acordo com o artigo 2º da Lei nº 14.443/2022, foram previstos requisitos sob a ótica do gozo das faculdades, etária, estrutural e temporal, com vistas a se evitar e desencorajar a esterilização precoce.

Quanto à primeira e à segunda exigências, somente poderão se utilizar do procedimento os homens e as mulheres detentores de capacidade civil plena e maiores de 21 (vinte e um) anos de idade. Em caso do não atendimento ao fator idade, será viável a sua adoção se, pelo menos, possuir dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade do interessado e o ato cirúrgico.

No decorrer deste período, será disponibilizado o acesso a serviço de regulação da fecundidade, englobando o aconselhamento por equipe multidisciplinar. Saliente-se que o procedimento somente será passível de efetivação no transcorrer do parto se cumprido o citado prazo ou houver riscos para a paciente.

A despeito da inquestionável relevância da saúde para todos os indivíduos[7] e da edição da Lei Federal nº 9.656/98, que disciplinou a seara suplementar no final da década de 90 [8], o ordenamento jurídico carecia de regra sobre a assunção dos custos da esterilização pelas operadoras. A lacuna normativa acarretava a alta judicialização neste campo dadas as frequentes negativas dos planos quanto à cobertura das despesas necessárias, não obstante a importância do bem jurídico em análise [9].

A realidade mercadológica massificada é marcada pela presença dos contratos de adesão e/ou de condições gerais, nos quais não são discutidas as premissas negociais, predominando os interesses dos agentes econômicos [10]. Trata-se de relação jurídica que tem por objeto a incolumidade física e psíquica dos sujeitos [11], razão pela qual são intitulados "contratos sui generis". A patente vulnerabilidade dos usuários suscita cuidadosa atualização, interpretação e concretude [12].

A recente Resolução Normativa nº 576, editada, em 21 de março de 2023, pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), regulamentou o assunto e tornou coercitivo o custeio do procedimento, beneficiando os usuários.

Atualizou-se o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, previsto pela RN nº 465, de 24 de fevereiro de 2021, com o desiderato de regulamentar o custeio da cirurgia de esterilização feminina e masculina. No entanto, restou condicionado ao cumprimento de determinadas condições, que se encontram explicitadas no Anexo II, tendo sido adrede reiteradas as determinações presentes na Lei nº 14.443/2022. O referido conjunto normativo atende à modernização dos planos de saúde na condição de contratos "cativos" de "longa duração"  assim denominados por Ghersi, Weingarten e Ippolito [13].

No caso das mulheres, a laqueadura tubária laparoscópica terá cobertura obrigatória em casos de risco à vida ou à saúde da paciente ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos. Ademais, será viável o procedimento se contemplados os requisitos constantes na Lei nº 14.443/2022 e a interessada demonstrar que recebeu todas as informações pertinentes a respeito do ato cirúrgico. Impõe-se a expressa manifestação da sua vontade através da apresentação de documento, na forma escrita e devidamente assinado, onde conste a ciência sobre os riscos, os efeitos colaterais, as dificuldades de sua reversão e as demais opções de contracepção existentes. Importante ressaltar que a exteriorização do intento não será admitida se verificada durante alterações na capacidade de discernimento [14], que  podem ser geradas por influência de álcool, drogas, estados emocionais modificados e/ou incapacidade mental temporária ou permanente.

Admitir-se-á também o procedimento no decorrer dos períodos de parto ou aborto, devendo a paciente ter manifestado a sua vontade no prazo mínimo de 60 dias, exceto se constatado o risco para a sua incolumidade, quando, então, terá que ser necessariamente efetivado. No caso de pessoas absolutamente incapazes, inexistindo perigo para a manutenção do estado vital, urge a autorização judicial, regulamentada na forma da Lei. A indicação de cesárea para fim exclusivo de esterilização, de acordo com a Resolução Normativa nº 576, será assentida na hipótese de a situação se desvelar imprescindível para que a vida da mulher não seja ceifada.

Diante da singularidade dos contratos duradouros, Ricardo Lorenzetti afirma que nestes não há a previsão material dos bens, mas tão somente normas procedimentais, já que a evolução tecnológica poderá imprimir modificações na prestação da obrigação [15].

A cirurgia de esterilização masculina, nos termos do aludido Anexo II da RN nº 576/23, pressupõe o cumprimento de todos os requisitos legais, já vistos nas linhas precedentes, ou seja, o paciente deve estar em pleno gozo da sua capacidade civil; ser maior de 21 anos; ou ter, no mínimo, prole com dois integrantes. Outrossim, faz-se crucial ter observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da sua vontade e o ato cirúrgico, com o escopo de que seja previamente informado e aconselhado.

O registro da sua intenção deverá estar livre alterações provocadas por substâncias químicas, questões de desequilíbrio emocional ou mental [16]. Consoante registrado, é fundamental a apresentação de documento escrito, por ele assinado, no bojo do qual estejam inseridos todos os possíveis resultados negativos e as consequências oriundos do ato cirúrgico, assim como demais técnicas/métodos passíveis de manejo. Contudo, além destas determinações, exige-se que a vasectomia seja realizada "por profissional habilitado para proceder a sua reversão" [17], visto que se objetiva que o paciente tenha condições de reaver o anterior estado físico.

O conteúdo das cláusulas inerentes aos contratos relativos à assistência à saúde suplementar deve ser, rigorosamente, avaliado, para que seja supedâneo de atualizações qualificadas pertinentes, como se observa com a esterilização. Nos "contratos relacionais", a durabilidade razoável da relação jurídica é um dos fatores fundamentais que os diferenciam dos demais [18].

Pressupondo uma existência por período ilimitado, os consumidores devem estar atentos às cláusulas que os integrarão, porquanto estas não podem ser petrificadas, em outras palavras, cujo conteúdo se pretenda considerar renovado pela vida inteira da relação jurídica. Assim, as "cláusulas substantivas" deverão ser substituídas pelas "processuais". Isso significa afirmar que, no plano ideal, as partes devem estar reunidas, de modo contínuo, para a reestruturação do liame. No campo concreto, não há o anunciado diálogo e o legislador tem que estabelecer as premissas normativas  como se vislumbra com a laqueadura e a vasectomia , posto que, a contrario sensu, as negativas continuariam advindo.

Ora, os planos de saúde, indubitavelmente, são contratos relacionais, mas as empresas responsáveis por seu monitoramento não estão preocupadas em manterem uma comunicação perene com os consumidores, órgãos e entidades competentes, a fim de debaterem sobre os termos negociais.

O que se verifica é a presença de disposições, muitas vezes já abusivas desde a sua origem, e o completo desinteresse das operadoras em criar canais de discussão para a tentativa de adequar a relação jurídica à conjuntura atual [19]. Na realidade, quanto menos diálogo, melhor e quanto mais se mantém um contrato desatualizado, de mais chances dispõem as referidas operadoras para imporem as suas práticas abusivas [20]. Nos contratos de longa duração, em geral, deve haver uma preocupação com o teor das disposições, e com maior razão, quando tratam de relações jurídicas cujo objeto constitui a saúde das pessoas.

O contrato de "medicina prepaga", aduz Ricardo Lorenzetti, mesmo que celebrado no âmbito privado, tem por objetivo a proteção da saúde concebida como um direito fundamental [21]. Desta forma, além de serem qualificados como de duração extensa, os planos de saúde lidam com o direito essencial dos indivíduos — cujo tratamento indevido pode gerar sérios danos para a vida  exigindo, portanto, uma rigorosa fiscalização do conteúdo das normas que os guarnecem [22].

Uma relação jurídica desse tipo não pode ser tratada como um vínculo comum, devendo-se admitir que "A prestação de um direito fundamental pode desequilibrar a lógica contratualista, já que se concedem direitos e ações que seriam impensáveis em um contrato comum" [23]. Dada a proeminência do tema, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, por intermédio dos órgãos e entidades que o integram, deverá fiscalizar a atuação das operadoras com o objetivo de que cumpram efetivamente a legislação vigente e não neguem a cobertura para a esterilização [24].

 

[1] Examinar: BRUCE, J. Fundamental elements of the quality of care: a simple framework. Studies Family Planning 1990; 21(2):61-91.

[2] Cf.: PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Über die Würde des Menschen. Übers. Norbert Baumgarten. Frankfurt am Main: Meiner, 1990.

[3] Acerca do exercício deste direito, consultar: PEKRUN, R. Familie, Schule und Entwicklung. In: WALPER, S; PEKRUN, R. (orgs.). Familie und Entwicklung: Aktuelle Perspektiven der Familienpsychologie. Göttingen: Hogrefe; 2001.

[4] Cf.: WHO. What services do family planning clinics provide?». UK National Health Service. Acesso em: 25 de agosto de 2019.

[5] A Lei foi editada em 02 de setembro de 2022, porém o artigo 4º determinou o início da sua vigência após decorridos 180 dias de sua publicação oficial.

[6] Assim dispõe o artigo 2º da Lei nº 14.443/2022.

[7] Bruno Miragem salienta a importância da saúde como bem jurídico fundamental. MIRAGEM, Bruno. Seguro-Saúde. Questões Atuais. In: SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flávio (Orgs.). Direito civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2018, p. 299-310.

[8] Versa sobre a evolução da saúde suplementar: BOTTESINI, Maury Ângelo.; MACHADO, Mauro Conti. Lei dos Planos e Seguros de Saúde. Comentada Artigo por artigo. 3. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2017. 

[9] Tratam da temática: DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades; PIMENTA, Liana de Barros. A tutela jurisdicional do direito à saúde: uma análise do relatório analítico propositivo “judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução”, do Conselho Nacional de Justiça. In: DUARTE, Luciana Gaspar Melquíades; VIDAL, Victor Luna (Coords.). Direito à Saúde. Judicialização e Pandemia do Novo Coronavírus. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

[10] MARQUES, Cláudia Lima.  Prefácio da obra Plano de Saúde e Direito do Consumidor, de Antônio Joaquim Fernandes Neto, Minas Gerais: Del Rey, 2002, p. XI.

[11] Cf.: MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor. O Princípio da Vulnerabilidade no Contrato, na Publicidade, nas demais Práticas Comerciais. 3. ed. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

[12] Cf.: MARQUES, Cláudia Lima.  Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. rev. atual. e ampl. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 394.

[13] GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Celia; IPPOLITO, Silvia C. Contrato de medicina prepaga. 2. ed. atual. e ampl. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 55.

[14] Sobre o tema, consultar: TRUSSELL, James. Contraceptive efficacy. In: TRUSSELL, James et al. Contraceptive technology. Ardent Media 20th revised ed. New York: [s.n.] pp. 779–863, 2011. OLSON, D.H.; RUSSEL C.S.; SPRENKLE D.H. Circumplex Model of Marital and Family Systems: IV. Theoretical Update. Family Process 1983; 22:69-83. MINUCHIN, S. Families and family therapy. Cambridge: Harvard University Press; 1974. 

[15] LORENZETTI, Ricardo Luís. Tratado de los contratos. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1999-2000, t. I, p. 119.

[16] BAILEY, M. J. Does Parents' Access to Family Planning Increase Children's Opportunities? Evidence from the War on Poverty and the Early Years of Title X. NBER Working Paper, n.º 23971. DUVAL, E. Marriage and family development. Philadelphia: Lippincott; 1977.

[17] Conferir a alínea "e"  do Anexo II da Resolução Normativa n.º 576.

[18]MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor, São Paulo: Max   Limonad, 1998, p. 147-166.

[19] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. Comentários aos artigos 51 a 54 do CDC. In: MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 1071-1187.

[20] Quanto às práticas deletérias no âmbito consumerista, cf.:MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao artigo 39 do CDC. In: MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 868-916.

[21] No que toca aos direitos fundamentais, cf.: MARTÍN-RETORTILLO, Lorenzo. Los Derechos Fundamentales y la Constitución y outros estudios sobre derechos humanos. Zaragoza: El Justicia de Aragon, 2009.

[22] Na seguinte obra, constam importantes críticas acerca do funcionamento e do desempenho da ANS: BAIRD, Marcello Fragano. Saúde em Jogo: atores e disputas de poder na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). 2020. 

[23]LORENZETTI, Ricardo Luís. Fundamentos de Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 369.

[24] PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Cláusulas relativas à cobertura de doenças, tratamentos de urgência, emergência e carências. Planos de saúde e direito do consumidor. In: MARQUES, Cláudia Lima et al. Saúde e Responsabilidade 2: a nova assistência privada à saúde. Biblioteca do direito do consumidor, v. 36, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 73-99, p. 80 e 82.

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