Segunda Leitura

Políticas públicas e Poder Judiciário: espaço e limites

Autores

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

  • Erivaldo Ribeiro dos Santos

    é juiz federal foi juiz-auxiliar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) coordenador nacional dos mutirões carcerários e secretário-geral do CJF (Conselho da Justiça Federal).

28 de maio de 2023, 8h00

Políticas públicas é assunto que pertence à área da gestão pública e não do Direito, razão pela qual não consta no currículo das faculdades e nem nos livros de Direito Administrativo. Por tal razão, muito embora dela se fale cada vez mais entre os profissionais das ciências jurídicas, a verdade é que ela continua a ser uma ilustre desconhecida.

Felipe de Melo Fonte a conceitua como "um conjunto de decisões inter-relacionadas, tomadas por um indivíduo ou um grupo de atores políticos, que abrangem as escolhas de objetivos e os meios de alcança-los em uma situação específica" [1].

Spacca
Maria Paula Dallari Bucci lembra que "a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados" [2].

Assim postas as premissas, resta saber qual o espaço de ação do Judiciário, enquanto administrador, no tema políticas públicas, e quais os limites de sua ação quando, decidindo ação judicial, encaminha a realização de políticas públicas. Vejamos:

1)  Judiciário como administrador
Poucos percebem que o Judiciário, além de sua finalidade maior de julgar, tem um papel muito relevante como administrador de bens, pessoas e dever de eficiência na distribuição da Justiça. Portanto, atribuições exclusivamente administrativas.

Para que se tenha ideia do porte das estruturas judiciais, a proposta de orçamento para o Poder Judiciário da União (Tribunais Superiores, CNJ, Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar) foi de cerca de R$ 59,7 bilhões, nos quais estão incluídas as despesas primárias obrigatórias, ou seja, os gastos com pessoal, encargos sociais e benefícios da Previdência Social [3].  Além disto, cada estado tem no seu orçamento o Judiciário local.

Pois bem, ao administrar tais verbas, o Judiciário implementa uma série de medidas cuja natureza jurídica aproxima-se de políticas públicas e, por vezes, até desta forma são chamadas [4]. Todavia, uma política pública, segundo Leonardo Cecchi, divide-se em sete ciclos, ou seja: 1) identificação do problema; 2) formação da agenda; 3) formulação de alternativas; 4) tomada de decisão; 5) implementação; 6) avaliação; 7) extinção [5].

Fácil é concluir que as iniciativas do Poder Judiciário, tecnicamente, não se traduzem em políticas públicas, mas sim em projetos públicos, pois não se adequam ao modelo previsto nas ciências da administração. Serão por isso menos importantes? Por óbvio que não.

O CNJ tem vários projetos públicos de grande relevância, basta ver as suas Resoluções. Por exemplo, neste ano a Semana Nacional do Registro Civil, mobilizou de sul a norte os órgãos judiciais para promover o registro de pessoas em situação de vulnerabilidade que não possuem documentos ou os possuem com erros [6].

No âmbito dos tribunais de segunda instância, há várias experiências positivas. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região é um bom exemplo, pois tem coordenado iniciativas do mais alto interesse. Vejamos.

O primeiro a merecer destaque é o Fórum Regional da Saúde do TRF4 — criado pela Resolução Nº 142/2021 [7]. O Poder Judiciário não é, obviamente, o responsável pela formulação e execução da política de saúde, no entanto, decidindo ações que lhe são propostas, é um ator necessário na execução da política pública. Reuniões com a participação de todos os interessados, principalmente dos órgãos de saúde, têm gerado deliberações [8] que são encaminhadas aos órgãos competentes para exame.

Por exemplo, a Deliberação nº 2 resultou em medidas de facilitação e aprimoramento do cumprimento das decisões judiciais pelo Ministério da Saúde, em especial nos procedimentos de aquisição e entrega de medicamentos cuja ordem judicial de fornecimento foi direcionada à União.

Outro bom exemplo é o Fórum Regional da Moradia, criado pela Resolução nº 121/2021 do TRF-4, no qual se discutem problemas de habitação. Para a busca de soluções para os que construíram suas casas na faixa de domínio que margeiam as ferrovias, criou-se o "Grupo de Trabalho do Projeto Ferrovia Malha Sul".

Sucessivas reuniões têm sido realizadas, com a participação ativa de diferentes atores, como o MPF, DNIT, OAB, DPU e outros. A situação é de alta complexidade, principalmente porque nem todas áreas possuem título de domínio, mas as soluções vão avançando.

Obviamente, tais tipos de problema não se resolvem com uma sentença prolatada em caso individual. O Poder Judiciário não é, evidentemente, o responsável pela formulação e execução de políticas públicas. Entretanto, pode e vem dando enorme colaboração para que os conflitos diminuam.

2) Judiciário julgando políticas públicas
Julgar, por óbvio, é a função natural da Justiça. Todavia, por força da extensão da Constituição de 1988 e da expressiva quantidade de direitos reconhecidos, ações judiciais são impetradas, objetivando o reconhecimento por falta ou falha na execução de determinadas políticas públicas. O juiz, ao receber um pedido, não pode deixar de examiná-lo e assim tiveram início as primeiras decisões admitindo a intervenção nas políticas públicas, referendadas pelo Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental nº 658.171 [9].

Portanto, pacificada a jurisprudência sobre a possibilidade do juiz decidir sobre políticas públicas do Poder Executivo, superada a tese de que isto importaria em infração ao artigo 2º da Constituição (poderes independentes e harmônicos entre si), resta saber quais os limites e a forma para que isto ocorra.

Qual a linha demarcatória entre o determinar que se faça e o fazer? Esta é a grande questão, geralmente difícil de ser identificada no caso concreto.

O problema não se situa no dispor ou não recursos a administração para realizar determinada obra, invocando, a seu favor, a reserva do possível. Caso não existam fundos, tratando-se de município pobre com diversas obrigações sociais a cumprir, evidentemente terá que haver escolhas. Neste caso, ao Executivo cabe a opção, mas deverá demonstrar de forma inequívoca a razão da escolha e a impossibilidade de atender todas as demandas. Assim decidiu o Tribunal de Justiça do Ceará, em caso de ausência de política pública de município sobre o descarte inadequado de lixo [10].

O TJ de Minas Gerais, julgando recurso em ação que reivindicava a lotação de delegados de Polícia em determinado município, entendeu que o juiz "deve levar em conta que o exercício da gestão pública é limitado pelas exigências constitucionais de concurso público e licitação, leis orçamentárias, lei de responsabilidade fiscal, entre outros", cassando liminar dada em primeira instância [11].

Acórdão do TJ do Maranhão suscita dúvidas quanto a ter sido ou não invadida a área exclusiva do Poder Executivo. Muito embora no seu texto, reiteradamente, se diga que o Judiciário não cabe o exame do mérito do ato administrativo, ao final decidiu-se por dar "parcial provimento, para manter a sentença apenas quanto ao regular funcionamento de plantões da Polícia Civil, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados…" [12].

Ao decidir desta forma, parece-nos que a Corte entrou na esfera própria da administração pública, decidindo não apenas o dever de fazer, mas como fazer (tempo e finais de semana). Estes detalhes só poderiam ser decididos pela administração, pois pode não haver servidores para o plantão ininterrupto ou outra circunstância impeditiva.

3) Outros aspectos paralelos
A matéria, como se vê, é complexa e ainda não tem definição na jurisprudência, o que leva  mais uma vez  à insegurança jurídica. Temas correlatos não vêm sendo definidos com clareza em julgamentos e muito menos em súmulas. É preciso deixar-se claro, inclusive para balizar as ações do Poder Executivo. Algumas medidas possíveis são:

a) As Escolas da Magistratura capacitarem os juízes em políticas públicas, valendo-se da participação de gestores públicos;
b) o CNMP estabelecer regras para as recomendações do Ministério Público, de modo que possam ser uma ferramenta de auxílio e orientação, mas não de intimidação;
c) as pesquisas de mestrado e doutorado que envolvam políticas públicas incluam um semestre com aulas de gestão pública em outro programa de pós-graduação;
d) envolverem-se os TRFs, TJs e TRTs em projetos públicos, discutindo com atores do Poder Executivo e outras instituições, a melhor forma de dar-se solução em problemas coletivos.

Neste complexo e importante tema, boas iniciativas sempre serão importantes, excluídas quaisquer variantes de política partidária que impedem possibilidades de avanços. O Brasil merece.

 


[1] FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais. 2.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015. Recurso online, p. 46.

[2] BUCCI, (Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 11-19.

[3] Revista eletrônica Consultor Jurídico, Proposta orçamentária do Poder Judiciário para 2023 é aprovada pelo CNJ, 23 set. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-23/proposta-orcamentaria-judiciario-2023-aprovada-cnj. Acesso em 20 mai. 2023.

[4] . CNJ. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/156. Acesso em 20 mai. 2023.

[5] SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 2. ed. São Paulo: Editora Cengage Learning, 2017, p. 56

[6]  A Resolução nº 125, de 29/11/2010, que instituiu serviços de conciliação nas suas variadas espécies, deu ao Capítulo 1 o título "Da política pública de tratamento adequado dos conflitos de interesse". Disponível em: https://www.tre-rn.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Maio/cnj-promove-semana-nacional-do-registro-civil. Acesso em 20 mai. 2023.

[7] TRF4. Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/2021/jvb07_forum-saude.pdf. Acesso em 20 mai. 2023.

[9]  STF, AG .REG. NO REC.EXT. 658.171/ DF, 1ª. Turma,  Relator Min. Dias Tófoli, j. 01/04/2014.

[10] TJCE, proc. 0622286-85.2017.8.06.0000 – Agravo de Instrumento, relator desembargador Inácio A Cortez Neto, j. 28 mai. 2018.

[11] TJMG, 3a. Câmara Cível,  , Ag. Instrumento-CV Nº 1.0000.18.112138-5/001  comarca de Patrocínio, relator desembargador Maurício T. Soares. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-mg/697782969/inteiro-teor-697783134. Acesso em 20 mai. 2023.

[12] TJMA, 4ª. Câmara Cível, Apelação Cível nº 026594-2018, relator desembargador Marcelino C. Everton, j. 26 nov. 2018.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

  • é juiz Federal em Curitiba, mestre em Direito Negocial pela UEL (Universidade Estadual de Londrina), ex-professor assistente da UEM (Universidade Estadual de Maringá), foi secretário-geral do CJF (Conselho da Justiça Federal) em 2015/2016.

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