Remédio amargo

Defensores do 'kit Covid' terão de pagar R$ 55 milhões em danos morais coletivos

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26 de maio de 2023, 13h11

A mera publicidade ilegal de medicamentos, por oferecer riscos de uso irracional, já é suficiente para configurar um grave abalo à saúde pública que justifique a imposição de reparação.

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freepikPublicidade ilegal estimula auto medicação e não evidencia riscos de remédios

Esse foi o entedimento da Justiça Federal do Rio Grande do Sul ao condenar as empresas responsáveis pela veiculação de material publicitário intitulado "Manifesto pela Vida" — sobre o tratamento precoce contra a Covid, o "kit covid" — a pagar R$ 55 milhões por danos morais coletivos e à saúde.

O material foi divulgado à população em geral durante a epidemia de Covid-19, inclusive, com a indicação de médicos que prescreviam o tratamento com hidroxicloroquina e ivermectina para prevenir a doença — mas sem informar seus efeitos adversos.

Foram condenados solidariamente ao pagamento de R$ 55 milhões por danos morais coletivos e à saúde, nos limites de suas responsabilidades a Médicos Pela Vida (Associação Dignidade Médica de Pernambuco – ADM/PE), e as empresas Vitamedic Indústria Farmacêutica, Centro Educacional Alves Faria (Unialfa) e o Grupo José Alves (GJA Participações).

Em uma das ações (5059442-62.2021.4.04.7100), o montante do pagamento imposto pela Justiça foi de R$ 45 milhões e, na outra (5020544-77.2021.4.04.7100), a condenação foi no valor de R$ 10 milhões.

No informe publicitário, a associação — com sede no Recife (PE), mas que também é integrada por médicos registrados no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) — citava os possíveis benefícios do intitulado "tratamento precoce" para a Covid-19, citando expressamente os medicamentos.

Tal referência, no entanto, foi feita sem qualquer indicação de possíveis efeitos adversos que poderiam decorrer da utilização desses medicamentos, além de possivelmente estimular a automedicação, uma vez que era indicado por associação médica.

Para o juiz Gabriel Menna Barreto Von Gehlen ficou comprovada a cumplicidade entre a Vitamedic e a Associação Médicos Pela Vida, tendo a empresa farmacêutica financiado a propaganda irregular, investindo R$ 717 mil nessa publicidade, conforme, inclusive, admitido pelo diretor da Vitamedic — fabricante do medicamente ivermectina — durante depoimento na CPI da Covid no Senado Federal.

"O que importa isto sim é que o sujeito oculto da relação, o laboratório Vitamedic, este que tinha e tem muito interesse econômico na divulgação da ivermectina, ainda mais sem as amarras as quais toda a indústria farmacêutica nacional se submete. E a associação, por sua diretoria, conluiou-se com o laboratório para dissimular o que é expressamente proibido pela RDC 96/2008. Serviu de triste figura, que a criatividade popular nomina de homem de palha, fantoche, cabeça de pau, laranja, testa de ferro ou 'empresta-nome'", avaliou o juiz na sentença.

"Saliento que os demais fabricantes de medicamentos do kit precoce no país apenas exerceram sua livre iniciativa e liberdade de empresa, dentro dos limites legais. Responderam a uma demanda de mercado gerada por médicos (nos medicamentos sob prescrição ou controle) ou diretamente de consumidores (nos sem receita). Quanto a esses o MPF, corretamente, nada requereu, porque não incorreram em ilícito algum, ainda que tenham obtido muito provavelmente, tal qual os ora réus, significativo aumento de faturamento pós pandemia. A conduta velada e desleal, em violação da RDC 96/2008, esta foi exclusivamente dos réus."

Segundo o magistrado, tendo sido "configurada a interposição de pessoa ilícita, fica evidenciado que o 'manifesto pela vida' foi mecanismo ilícito de propaganda de laboratório fabricante de medicamento, servindo a ré do triste papel de laranja para fins escusos e violadores de valor fundamental, a proteção da saúde pública"

Ao justificar o valor imposto nas sentenças, Von Gehlen ressalta, ainda, que "a só e pura publicidade ilícita de medicamentos, pelos riscos do seu uso irracional, já representa abalo na saúde pública e sua essencialidade impõe a devida reparação".

Anvisa
Ao analisar a participação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no caso, o juiz reconheceu a atuação equivocada do órgão, qu não aplicou a sua própria norma sobre publicidade de medicamentos.

O juiz reconheceu a omissão da Anvisa ao não autuar a associação para aplicar as penalidades que seriam possíveis no caso. No entanto, ele destacou que o valor de indenização da sentença supera o que poderia ser imposto pela própria Anvisa. "Não se defere ordem contra a ANVISA, mas se declara a sua omissão, em harmonia com o provimento condenatório contra a ré pessoa de direito privado, conforme permissivo do CPC", observa uma das sentenças.

"A longa argumentação desta sentença foi necessária para superar a insólita interpretação da Anvisa no caso concreto, insólita porque em contrariedade ao seu próprio manual interpretativo da RDC 96/2008, e porque fez pouco caso de conceito comezinho do direito, a ilicitude por interposição fraudulenta de pessoas", afirmou o magistrado.

"É o juiz nestes autos que está sendo fiel e deferente à Anvisa, a sua RDC 96/2008 e ao seu respectivo manual interpretativo. Essa indevida solução da Anvisa não elimina a gravidade da conduta da parte ré. Ainda no intento de justificar o montante indenizatório, colho do relatório da CPI da Covid", sentenciou.

Processo 5059442-62.2021.4.04.7100
Processo 5020544-77.2021.4.04.7100

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