Escritos de Mulher

Resolução 487 do CNJ e a política antimanicomial do Judiciário

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

24 de maio de 2023, 18h39

A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil, pela primeira vez, em 4/7/2006, por violação de direitos humanos.

Spacca
Trata-se do Caso Ximenes Lopes versus Brasil, no qual foram pronunciadas as violações de direitos humanos de portadores de sofrimento mental. Em 1999, após três dias de internação em unidade médica de saúde mental, Damião Ximenes Lopes foi morto e estava com sinais de tortura e maus tratos. No mesmo ano, seus familiares apresentaram o caso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que por sua vez apresentou a demanda para a corte, em 2004.

Após a condenação, por violação do direito à vida, à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial, a corte supervisionou o cumprimento da sentença pelo Estado brasileiro, e uma das determinações era, conforme o ponto resolutivo 08, continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos na própria sentença.

Quinze anos após a condenação, em audiência de supervisão, realizada em abril de 2021, em razão do descumprimento desta reparação, a corte indicou o Conselho Nacional de Justiça como órgão mediador relativo à execução das políticas públicas de saúde mental do país.

O CNJ, atento ao ponto resolutivo 08 da sentença da corte, formou comissão para realização de estudos e medidas voltadas à superação das dificuldades relativas à promoção e saúde, em maio de 2021 (da qual participei).

Importante observar que em janeiro do mesmo ano, o CNJ já havia dado um importante passo na temática de direitos humanos, pois criou a Unidade de Fiscalização e Monitoramento das Deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização (DMF) do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, com a edição da Resolução CNJ nº 364/2021, sabedor de que o Estado brasileiro tinha determinações pendentes de cumprimento e que são do âmbito do Poder Judiciário.

A referida comissão apresentou seu relatório e, por fim, o CNJ editou a Resolução 487, de 15/2/2023, que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com deficiência e a Lei 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança.

O fato é que a realidade mostra que o Brasil ainda age ao arrepio da Lei Antimanicomial.

E, nesta fase, parece que nada no Brasil escapa às chamadas fake news, pois pululam inverdades, conforme noticiado pelo CNJ, em rede social, tais como: pessoas criminosas serão soltas em 12 meses; pessoas condenadas por crimes graves se beneficiam da política antimanicomial; nunca mais pode haver internação, mesmo nos casos graves; o hospital de custódia é o melhor lugar para receber pessoas em medidas de segurança; pessoas que estão em hospitais psiquiátricos ficarão livres para fazer o que bem quiserem.

Pois bem, o CNJ esclareceu que:

a) A resolução não cria nada novo, apenas exige que o Estado cumpra regras e leis vigentes há anos no país para que o tratamento de saúde seja realizado em local adequado, que seja especializado e bem estruturado;

b) A resolução só diz respeito a quem não tinha consciência de seus atos, situação atestada pós avaliação de equipe de saúde especializada. A lei considera essas pessoas inimputáveis e isso precisa ser reconhecido dentro do processo e assim julgado por um magistrado;

c) A opção de internação segue como opção se outras medidas disponíveis não são suficientes. A internação pode s estender pelo tempo que for necessário segundo cada caso, sempre a partir da avaliação dos profissionais de saúde;

d) A resolução determina que a medida seja cumprida em local capaz de ofertar tratamento de saúde exigido, com equipes e técnicos preparados para tal.

e) A resolução aponta a elaboração de projetos terapêuticos singulares, permitindo o acompanhamento de cada caso por serviços públicos especializados, com a participação da equipe multidisciplinar do Judiciário, das equipes conectoras do sistema de saúde e Judiciário.

Alguns estados da federação, no âmbito do Judiciário, já cumprem a Lei Antimanicomial, faz muitos anos, como o estado de Goiás, que tem programa próprio e que mostra dados consistentes de sucesso do projeto.

O CNJ está cumprindo seu papel e muitos tribunais estão a desenvolver atividades de capacitação, por meio de suas escolas de magistratura, tão necessárias para que barreiras e preconceitos sejam vencidos em relação às pessoas que apresentam transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial.

Neste sentido, nos próximos dias 15 e 16 de junho, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR), realizará o Seminário Internacional de Saúde Mental: Possibilidades para a Efetivação da Política Antimanicomial na Interface com o Poder Judiciário.

Já a Emerj realiza no dia 26/5 o Seminário Política Antimanicomial — Do Poder Judiciário e seus Diálogos Necessários — Resolução 487/2023 do CNJ.

O Judiciário está arregaçando as mangas para cumprir suas obrigações internacionais, regionais, constitucionais e legais, e isso precisa ser saudado com ênfase, por todos que efetivamente têm compromisso com a dignidade humana.

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