Fábrica de Leis

Serão os legisladores substituídos por inteligência artificial?

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

23 de maio de 2023, 8h00

Neste mês foi amplamente divulgado na imprensa que, nos próximos cinco anos, "legisladores e oficiais judiciários" são duas das profissões "mais ameaçadas" [1] e com "postos de trabalho que devem desaparecer" [2] em razão dos sucessivos avanços tecnológicos, como análises de big data, cloud computing e, em especial, a inteligência artificial (IA).

Spacca
Em razão de ter ficado bastante intrigado com a notícia e pela sensibilidade do tema para o futuro da democracia, escrevo este texto em primeira pessoa. Como professor de direito constitucional e pesquisador das suas interfaces com a crescente digitalização da esfera pública e privada, diversas questões já se projetaram na minha mente, mas antes de procurar as respostas, consultei as fontes das notícias.

Trata-se da recente pesquisa publicada pelo Fórum Econômico Mundial, "Future of Jobs Report – 2023" [3]. Na página 30 do documento consta efetivamente a informação: das dez profissões com as maiores previsões de redução de postos de trabalho nos próximos cinco anos, estima-se uma redução de 25% dos "legislators and officials", juntamente com outras profissões como assistentes de caixa, assistentes de correspondência e atendentes bancários.

Deixo aqui registrada mais uma das minhas paixões e vocações acadêmicas: a metodologia de pesquisa científica e do direito. Fiz a análise do relatório como um todo para entender o que significa aquele número e a perspectiva por ele trazida.

A pesquisa é robusta, foi iniciada em 2015 e está em sua quarta edição. A metodologia utilizada foi, no período de novembro de 2022 a fevereiro de 2023, a aplicação de surveys com 44 questões (entrevistas por escrito com questões pré-definidas) com 803 "grandes empresas multinacionais ou empresas mais locais que são de relevância em razão da quantidade de empregados ou receita" localizadas em 46 países, incluindo o Brasil. A classificação das profissões foi feita com base em duas fontes: a Occupational Information Network (O*NET) do Departamento do Trabalho dos EUA [4] e International Standard Classification of Occupations (Isco) [5] da Organização Internacional do Trabalho e ambas adotam "legislator" no sentido de agentes públicos responsáveis pela tomada de decisões sobre políticas públicas, inclusive mediante aprovação de leis e outros atos regulatórios.

Diante dessas características metodológicas, a pesquisa é transparente em relação às suas limitações: "Como tal, há três áreas do futuro dos empregos que se encontram fora do objeto deste relatório; nomeadamente, o futuro dos empregos no que se refere às atividades de pequenas empresas, do setor público e do setor informal" [6].

Essa explicação é de fundamental importância para se entender que a mencionada pesquisa expressamente reconhece que não está tratando de profissões do setor público, entre elas, a dos parlamentares, que têm por trabalho a elaboração das normas jurídicas legislativas e a fiscalização das atividades do poder público em sentido amplo. Resta, então, a dúvida sobre o que exatamente se intenta dizer com a informação veiculada no relatório.

De todo modo e para além do relatório acima, já há algumas posições provocativas nesse sentido. David Levy, autor de livros sobre IA e empresário do setor, projeta que em algumas décadas os legisladores serão robôs, considerando que poderiam "saber tudo" de economia, saúde, medicina e outras áreas de atuação do poder público [7]. Cesar Hildalgo, pesquisador de IA e professor atualmente na Universidade de Toulouse, apresentou uma ideia de um representante virtual, por meio do qual cada pessoa teria um sistema de IA que seria o representante político individual de suas preferências [8].

O debate filosófico e técnico sobre o potencial e limites da IA simular ou resolver questões complexas de modo semelhante à inteligência humana já é grande e não tenho capacidade nem oportunidade de enfrentá-lo neste espaço. Ressalto apenas, de um lado, que há diversas limitações da IA. Para mencionar alguns aspectos conhecidos do debate que ainda ganham maior relevância quando se pensa na elaboração de normas jurídicas em uma sociedade democrática, sabe-se que os sistemas de IA, pela sua estrutura, tendem a reforçar vieses e preconceitos, que não são capazes de fazer avaliações contextuais mais abrangentes como um ser humano, que podem criar "alucinações" e outros fatos manifestamente falsos. De outro lado, há características únicas da experiência humana que a afasta das inferências algorítmicas. Em obra em que enfrenta diversas dessas questões, Frank Pasquale, um dos mais influentes pensadores das questões éticas e jurídicas decorrentes do desenvolvimento tecnológico, sintetiza: "Uma forma de vida humana é frágil, contida em um corpo físico mortal, delimitada no tempo e irreproduzível in silico" [9].

Para contribuir com o debate sobre os limites e possibilidades da utilização dos sistemas de IA nas atividades legislativa, destaco uma questão prévia que me parece central: qual é o significado da prática social de elaborar normas jurídicas por meio de parlamentos em uma democracia? Novamente a literatura é vasta, mas faço alguns apontamentos.

Não se deve partir da compreensão de que a única e exclusiva função dos Parlamentos é fazer leis "melhores", ainda que no sentido muito amplo de atingimento de determinadas finalidades que lhes é atribuída (seja pelos parlamentares seja pelos intérpretes da lei já editada).

É claro que elaborar leis com clareza, objetividade e com conteúdo normativo que busque trazer efeitos positivos para a sociedade é um dos grandes objetivos da atividade legislativa. Fazer leis em uma democracia não é um exercício filosófico, em que se debatem o bom e o bem apenas pelo prazer da discussão, mas uma empreitada coletiva também destinada a resolver problemas concretos no aqui e agora.

Contudo, a elaboração das leis jamais pode ser reduzida a uma atividade meramente técnica ou instrumental, no sentido de ser elaborada exclusivamente por especialistas. A elaboração das leis em uma democracia é marcada por uma forte politicidade, ou seja, a característica de ser fruto de uma confrontação de visões de mundo diferentes, que implicam valores e preferências que resultam de circunstâncias pessoais e culturais decorrentes de uma experiência "frágil, contida em um corpo físico mortal, delimitada no tempo" — para retomar as palavras de Pasquale.

Arrisco dizer que nem mesmo um sistema de IA que "soubesse tudo" sobre política, direito, economia e outras áreas do conhecimento humano seria capaz de reproduzir a experiência coletiva política, inclusive a de elaboração de normas jurídicas em um ambiente democrático, em que prioridades, tradeoffs, e alternativas devem ser objeto de uma escolha coletiva.

Outro ponto relevante nesse debate é afastar uma visão idealizada de democracia direta, em que as principais decisões políticas deveriam ser tomadas por votação de todos os interessados. Como aponta Nadia Urbinati [10], a atividade de representação política e as atividades parlamentares são realizadas a partir de uma dinâmica social constante, em que milhares ou milhões de pessoas participam em maior ou menor grau da atribuição de sentidos às diversas propostas em discussão pública. Isso é fundamental para compreender que não há uma vontade pré-constituída dos representados em face dos representantes: na verdade, o processo comunicativo de construção de preferências políticas é muito mais complexo e passa pela contínua interação entre representantes e representados.

Mesmo que houvesse um sistema de IA capaz de traduzir minhas preferências políticas em determinado momento sobre todas as milhares de questões normativas a serem resolvidas nos parlamentos — o que é largamente duvidoso —, a construção de preferências é um processo contínuo e dependente da própria atividade política representativa. Isso decorre, entre outros, do que se denomina o caráter deliberativo das democracias contemporâneas, em que — de modo muito simplificado — há troca de razões dentro e fora dos parlamentos para que seja tomada uma decisão [11]. Em outras palavras, é a participação do indivíduo nas diferentes esferas da vida pública e privada que forma suas preferências e não somente um exercício abstrato de razão individual desconectado das demais pessoas. Pode e deve haver incentivos e mecanismos para a participação social direta no exercício do poder político, sem necessariamente abolirem-se as instâncias representativas.

Em face dessas observações, devem ser afastadas ideias de substituição dos legisladores ou de completa automação das atividades parlamentares por absoluta incompatibilidade com a prática política democrática contemporânea. Isso não quer dizer que as novas tecnologias e a IA não devam ser utilizadas como ferramentas de assistência para as atividades legislativas. Nesta coluna, Fabiana Soares já trouxe questionamentos, possibilidades e exemplos de utilização de sistemas de IA para a avaliação de políticas públicas e sua incorporação em uma política legislativa [12]. Já há algum tempo, existem propostas e iniciativas interessantes no campo da redação legislativa elaboradas por programas de computador, denominadas de "legismática" por Wim Voermans [13], e que ganham novas dimensões com os large language models (LLMs) como o ChatGPT e outros modelos. Essas iniciativas podem ser importantes ferramentas acessórias nas atividades legislativas e serão objeto de análise nesta coluna em futuras oportunidades.

 


[6] Fórum Econômico Mundial, "Future of Jobs Report – 2023", p. 62

[9] Frank Pasquale, New Laws of Robotics: Defending Human Expertise in the Age of AI, Cambridge, Harvard Press, 2020, p. 211.

[10] Veja-se sua principal obra sobre o tema, Representative Democracy: Principles and Geneology, Chicago University, 2006

[11] Sobre as diversas correntes e visões sobre a democracia deliberativa, veja-se André Bächtiger, John S. Dryzek, Mark E. Warren (orgs.), The Oxford Handbook of Deliberative Democracy, Oxford, Oxford University, 2018.

[13] Voermans Wim, Computer-assisted legislative drafting in the Netherlands: the LEDA-system. Palestra proferida em junho de 2002, disponível em: https://ial-online.org/wp-content/uploads/2019/07/Voermans-Legimatics.pdf

Autores

  • é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha), advogado, consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!