Opinião

Licenças de uso de software: o "novo novo" posicionamento da Receita

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22 de maio de 2023, 11h26

A Receita Federal publicou a Solução de Consulta nº 75, no dia 11 de abril de 2023, por meio da qual manifestou seu entendimento a respeito da atribuição da natureza jurídica de royalties aos pagamentos realizados em contrapartida à concessão de licença de direito de uso de softwares e, consequentemente, a respeito da incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre tais pagamentos à alíquota geral de 15% [1], quando realizados por parte domiciliada no Brasil em favor de parte domiciliada no exterior.

Como mostra o texto da mencionada solução de consulta, o posicionamento da Receita foi, em grande parte, influenciado pelas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 1.945 e nº 5.659 e do Recurso Extraordinário (RE) nº 688.223. Nestas oportunidades, a corte revisitou seu entendimento a respeito da natureza jurídica das licenças de uso de software para fins tributários.

No passado, o STF havia firmado entendimento pelo qual as licenças de uso de software poderiam ser divididas em duas categorias, com reflexos relevantes para fins de tributação indireta. A primeira contempla os chamados softwares de prateleira, que corresponderiam a soluções tecnológicas prontas e sem personalização, que se assemelhariam mais a uma mercadoria na antiga visão do STF e, portanto, estariam sujeitos à incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A segunda se refere aos chamados softwares por encomenda, que corresponderiam a soluções tecnológicas customizadas para atender às necessidades do cliente, que se assemelhariam mais a uma prestação de serviço na antiga visão do STF e, portanto, estariam sujeitos à incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

Contudo, como mencionado, o STF revisitou essas classificações recentemente, grande parte motivado pelas recentes inovações tecnológicas que transformaram, significativamente, a forma de produção e comercialização de softwares. Na visão do STF, hoje, os softwares são primordialmente disponibilizados por meio de downloads e em ambientes de computação em nuvem, desnaturando o conceito mais tradicional de comercialização de bens associado aos softwares de prateleira, que atrairiam a incidência do ICMS.

Nessa linha, o STF decidiu que todo e qualquer software decorre da criação intelectual humana que, em qualquer hipótese e em última análise, implica em uma obrigação de fazer do seu proprietário (detentor do software) para com o consumidor final. Tal característica seria suficiente para afastar a incidência de ICMS e atrair a incidência de ISS, tal como já previsto no subitem 1.05 da própria Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003, que regula as hipóteses de incidência do ISS.

A revisão dos posicionamentos pela Receita em virtude da referida decisão do STF não é novidade. Esta linha de argumentação já havia sido replicada pelo órgão no começo do ano, quando da publicação da Solução de Consulta nº 36, em 15 de fevereiro de 2023, oportunidade em que a Receita sustentou que as receitas percebidas por entidades sujeitas à apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sob o regime do lucro presumido deveriam aplicar o percentual de presunção de 32% sobre as receitas oriundas do licenciamento de uso de software — percentual este aplicável aos serviços em geral.

No entanto, nesta ocasião, a Receita foi além do que havia afirmado em manifestações anteriores, quando utilizava como justificativa a natureza de serviços estabelecida pelo STF.

Com a publicação da Solução de Consulta nº 75, a Receita volta a se sustentar na posição da Corte Superior para afirmar que a dicotomia entre software de prateleira e software por encomenda estaria ultrapassada, reformando o seu próprio entendimento anterior [2] de que "as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a residente ou domiciliado no exterior em contraprestação pelo licenciamento de software de prateleira, para uso exclusivo do próprio adquirente, que não o comercializará para terceiros, não se sujeitam à incidência de Imposto sobre a Renda na Fonte (IRRF)".

A Receita firma agora novo entendimento sobre a incidência de IRRF sobre os valores remetidos ao exterior "pelo usuário final, para fins de aquisição ou renovação de licença de uso de software, independentemente de customização ou do meio empregado na entrega, caracterizam royalties e estão sujeitos à incidência de Imposto sobre a Renda na Fonte (IRRF), em regra, sob a alíquota de 15% (quinze por cento)".

No entanto, curiosamente, a natureza jurídica utilizada pela Receita na Solução de Consulta nº 75 difere daquela estipulada pelo STF.

Conforme o texto da nova solução de consulta [3], softwares são bens incorpóreos oriundos das atividades intelectual e criativa humanas e, logo, estão protegidos pela legislação de direito do autor. A partir dessa lógica, a Receita entende que a concessão de licença de uso de software configuraria a exploração de direito autoral, cuja contraprestação seria classificada, pela lei [4], como royalties.

A Receita afirma ainda que a mera inclusão da concessão de licença de uso de software dentre as atividades enquadradas como serviço para fins de incidência do ISS, nos termos da já mencionada Lei Complementar nº 116, e conforme suportado pelo STF em seus julgamentos, não seria suficiente para desconfigurar a natureza de royalties dos pagamentos em questão para fins jurídicos e, em específico, da aplicação da legislação federal relativa à incidência do IRRF.

É justamente nesse ponto que entendemos caber uma importante reflexão acerca dos potenciais reflexos desse entendimento, para além da incidência do IRRF.

Nos termos da legislação vigente, o pagamento de royalties para o exterior traz algumas consequências tributárias específicas. Dentre elas, destacamos a existência de diversas restrições para a dedutibilidade das despesas correspondentes, para fins da apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL [5]. Por outro lado, as remessas dos valores ao exterior não estão sujeitas à incidência das Contribuições para o Programa de Integração Social e para o Financiamento da Seguridade Social (PIS/Cofins) sobre importações, na medida em que tais contribuições incidem apenas nos casos de importação de bens ou serviços.

Os efeitos tributários detalhados acima são aplicados de forma justamente inversa no caso de pagamentos feitos ao exterior a título de importação de serviços, que não estarão sujeitos às restrições de dedutibilidade de despesas especificamente aplicáveis sobre royalties, mas estarão sujeitos à incidência de PIS/Cofins sobre importações.

Ou seja, ao extrapolar o raciocínio adotado pelo STF, pelo qual os pagamentos pela licença de uso de software corresponderiam a contraprestações por serviços, e ao adotar um entendimento próprio, pelo qual a natureza correta desses pagamentos seria a de royalties, a Receita pode escolher um caminho novo e diverso do que ela própria havia considerado anteriormente (na Solução de Consulta nº 6.014, de 2018).

Nesse sentido, vale mencionar que as decisões proferidas pela Receita por meio de solução de consulta possuem efeito vinculante perante a administração pública [6], o que significa que nenhum agente fiscal poderá atuar em desacordo com tais decisões em processos fiscalizatórios.

Assim, logicamente, seria de se esperar que a Receita estivesse impedida de reformar o seu posicionamento [7] para cobrar a incidência de PIS/Cofins sobre pagamentos realizados ao exterior, como contraprestação pela licença de uso de softwares, independentemente de se tratar de software de prateleira ou por encomenda.

Por outro lado, é de se esperar também que a Receita tenha um olhar mais atento à aplicação de restrições sobre a dedução de despesas incorridas com o pagamento das contraprestações em questão, ao menos enquanto tais restrições permaneçam vigentes [8].

Ao contribuinte, caberá a tarefa de se adaptar ao "novo[9] novo" [10] entendimento da Receita e aos seus reflexos tributários.

 


[1] Ou de 25%, na hipótese em que o beneficiário dos royalties esteja domiciliado em país com tributação favorecida, nos termos da lei.

[2] Adotado, por exemplo, na Solução de Consulta nº 6.014, de 2018.

[3] Suportado por uma análise de diversos dispositivos legais, dentre eles a Lei nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998.

[4] Suportado pelo artigo 22 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964.

[5] Conforme elencadas pelos artigos 363 e 365 do Decreto 9.580, de 22 de novembro de 2018, o Regulamento do Imposto de Renda (RIR/18).

[7] Como aquele previsto na Solução de Consulta 1.012 de 2021 que prevê que "Os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, a título de royalties, por licença de uso e distribuição de softwares, não caracterizam contraprestação por serviço prestado, e, portanto, não sofrem a incidência da Cofins-Importação"

[8] A este respeito, vale destacar que a Medida Provisória nº 1.152, de 28 de dezembro de 2022, que busca reformar as regras de preços de transferência vigentes no país, também propõe que tais restrições sejam revogadas.

[9] Em comparação ao posicionamento anterior da RFB — como da Solução de Consulta nº 123, de 28 de maio de 2014 mencionada anteriormente — que considerava que o IRF para o cliente final seria isento.

[10] Em comparação ao posicionamento do STF que determina que as remessas por licenciamento de software devem ser tratadas como serviços.

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