Processo Tributário

A Súmula 343 do STF e o futuro da ação rescisória em matéria tributária

Autor

  • Rodrigo G. N. Massud

    é advogado mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC-SP/Cogeae professor dos cursos de especialização em Direito Tributário e extensão em "Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e Pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

21 de maio de 2023, 8h00

O recente inter-relacionamento de três julgamentos emblemáticos, acerca da ação rescisória em matéria tributária [1], convoca à reflexão sobre o futuro da Súmula 343 do STF, segundo a qual "não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais".

A análise se faz, em particular, considerando as rescisórias manejadas contra coisas julgadas formadas em ações tributárias preventivas (declaratórias ou mandados de segurança preventivos), nas chamadas relações jurídicas continuativas, portanto que se projetam para o futuro [2], diante da superveniente modificação jurisprudencial.

Afinal de contas, admitida a cessação automática dos efeitos da coisa julgada, para o futuro, continuaria havendo utilidade e, portanto, cabimento, da rescisória?

Como a metáfora do romance em cadeia de Dworkin (direito enquanto integridade [3]), sigamos a cadeia de "atos" jurisprudenciais para buscar alguma resposta.

Tomemos como "primeiro ato" o Recurso Extraordinário 590.809 que, ao julgar rescisória envolvendo decisão rescindenda que acolheu o direito ao creditamento do IPI relativamente às aquisições de insumos isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero, levou o STF a revisitar a Súmula 343 para firmar a seguinte tese no Tema 136 de repercussão geral [4]:

"Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente."

Conforme ementa do julgado [5], "o verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve de ser observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado, num primeiro passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda".

Desse modo, o STF passou a afastar o cabimento da ação rescisória fundada em alteração jurisprudencial também na situação de divergência interpretativa em matéria constitucional, mantendo a ressalva na hipótese de controle concentrado.

Esse julgamento do STF, em 2014, deu ensejo à orientação jurisprudencial que acabou se consolidando no STJ [6] pelo amplo descabimento da ação rescisória, quando a decisão rescindenda tivesse se baseado em interpretação controvertida à época da sua formação ou refletisse entendimento dos tribunais, ainda que posteriormente modificado.

No "segundo ato" arrebatamos a conclusão dos julgamentos dos recursos extraordinários 949.297 e 955.227, no dia 8/2/2023, em cuja sessão no Plenário do STF se fixou as teses debatidas nos Temas 881 e 885 (chamadas teses da coisa julgada):

"1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo."

Ou seja, de acordo com o entendimento manifestado nesses julgados, os tributos "desonerados" pela coisa julgada passariam a ser devidos automaticamente, para o futuro, após o precedente vinculativo em sentido contrário [7], tenha sido ele produzido em controle difuso ou concentrado, respeitados os princípios da irretroatividade e anterioridade (anual ou nonagesimal, conforme o caso).

Em vista desses pronunciamentos, fatos geradores anteriores ao precedente vinculativo não poderiam ser exigidos, assim como não poderiam ser objeto de repetição de indébito, mantendo-se com isso a higidez (vigor) da coisa julgada, que seria afetada apenas em sua eficácia.

Tratando-se de interrupção dos efeitos temporais da coisa julgada, tal como constante na tese dos Temas 881 e 885, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional publicou nota, na forma de perguntas e respostas [8], afirmando que:

"(…) A ação rescisória se tornou, então, desnecessária? Como exposto, o que está em discussão nos Temas ns.º 881 e 885 são apenas os fatos geradores ocorridos após a decisão do Supremo Tribunal Federal que define o precedente vinculante (efeitos ex nunc). Alterado o panorama jurídico com o advento do precedente obrigatório, a coisa julgada deixa de produzir seus naturais efeitos, por isso não se tem rescisão ou desconstituição da coisa julgada, nem para o passado, nem para o futuro. Tem-se a simples cessação da sua eficácia para frente. A ação rescisória continua a ter a sua aplicação dirigida ao passado, que, como dito, não é alcançado pelos Temas ns.º 881 e 885 do STF, desde que ainda haja prazo para o seu ajuizamento."

Conforme trecho final da nota, "a ação rescisória continua a ter sua aplicação dirigida ao passado, que, como dito, não é alcançado pelos Termas nsº 881 e 885…"

Esse cenário provoca o seguinte questionamento: qual passado seria esse a que se refere a nota da Procuradoria, se, por um lado, o Tema 136 afastaria o cabimento da ação rescisória por alteração jurisprudencial, e, por outro lado, os Temas 881 e 885 protegeriam esse passado, ao resguardar os princípios tributários da irretroatividade e anterioridade?

O "terceiro ato" fica com o julgamento da Ação Rescisória 6.015 [9] ocorrido no mesmo dia 8/2/2023, ocasião em que o STJ, em sua 1ª Seção, discutia a rescisão de coisa julgada que havia afastado o IPI na revenda de produtos importados.

No debate do cabimento da ação rescisória, estabeleceu-se grande dissensão, na medida em que a jurisprudência formada no STJ a partir do RE 590.809 (Tema 136), afastaria o cabimento da rescisória fundada em alteração jurisprudencial.

De um lado, o ministro relator Gurgel de Faria utilizava os Temas 881 e 885 do STF para justificar o cabimento da rescisória, indo além do próprio Tema 136 (que excepcionava a Súmula 343 e admitia o cabimento da rescisória apenas quando houvesse controle concentrado, não existente no caso do IPI-revenda) [10].

Por outro lado, a divergência aberta pelo ministro Mauro Campbell, e reforçada pela ministra Regina Costa, sustentava que, ao convocar os Temas 881 e 885 do STF para solucionar a situação da AR 6.015 (IPI-revenda de importado), outra não poderia ser a conclusão senão o reconhecimento do não cabimento da rescisória.

Isso porque, sustentou a divergência, os Temas 881 e 885 do STF teriam firmado diretriz no sentido exatamente da dispensa da ação rescisória para a produção dos efeitos futuros do precedente do STF, o que acarretaria a falta de interesse/utilidade no provimento rescisório (desconstitutivo). Desse modo, seja com base na Súmula 343 (e jurisprudência que se seguiu após o Tema 136), seja a partir dos recém julgamentos dos Temas 881 e 885, não haveria que se falar no cabimento da rescisória, já que a coisa julgada teria seus efeitos cessados automaticamente, não sendo possível qualquer cobrança retroativa.

Tal entendimento, segundo a ministra Regina Costa, implicaria inclusive na desjudicialização e redução do acervo de rescisórias.

E o futuro? Essa incerteza sobre o destino da rescisória? O ministro Gurgel de Faria, relator da AR 6.015 no STJ, afirmou na sessão de julgamento que seria melhor aguardar os embargos de declaração para (re)avaliar essa questão do inter-relacionamento com os Temas 881 e 885 do STF, e ao mesmo tempo afastou a Súmula 343 ao caso (IPI-revenda de importado) "em caráter excepcional", dada as particularidades em julgamento (a decisão rescindenda foi formada em ação de natureza coletiva).

Em contrapartida, os Temas 881 e 885 do STF voltarão ao debate para discussões sobre a modulação de efeitos do entendimento lá fixado (cessação automática dos efeitos das coisas julgadas contrárias a precedentes vinculativos).

Conforme apontado pela ministra Regina Costa, parece haver certa contradição em reconhecer a cessão automática (para o futuro) da coisa julgada e, ainda assim, manter o cabimento da ação rescisória.

Justamente porque, sobrevindo o precedente vinculativo contrário à coisa julgada, o tributo passa(ria) a ser exigido a partir de então, respeitada a irretroatividade e anterioridade. Então, qual seria o interesse de agir ou utilidade no manuseio das rescisórias, nas relações continuativas que se protraem para o futuro?

Chegada a hora de conciliar as manifestações a respeito do tema para que, quem sabe, possamos acomodar o "ato final" desse romance em cadeia.

 


[1] RE 590.809 (Tema 136 de repercussão geral); RE 949.297 e RE 955.227 (Temas 881 e 885 de repercussão geral); e AR 6.015 (1ª Seção do STJ).

[3] DWORKIN, Ronald. "O Império do Direito". Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[4] Para uma perspectiva histórica desse tema, sugere-se a leitura do seguinte artigo:

https://www.conjur.com.br/2022-set-18/processo-tributario-debate-coisa-julgada-rescisao-base-precedentes

[5] A extensão e alcance desse julgamento foi posteriormente delimitada e esclarecida pelo próprio STF na AR 2.370/CE-AgR, rel. min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 12/11/15.

[6] Dentre outras: AR 4443/RS, rel. min. Gurgel de Faria, 1ª Seção, j. 8/5/2019; AR 4.865/SC, rel. Mauro Campbell, 1ª Seção, j. 12/6/2019.

[7] O inverso também se mostraria verdadeiro, de modo que o contribuinte com coisa julgada desfavorável também poderia deixar de pagar para frente o tributo até então tido por constitucional.

[9] Íntegra da sessão em: https://youtu.be/HDoLpL56z1w.

[10] Conforme justificado no voto do min. Gurgel de Faria, em função da particularidade tratada no caso — "a ação originária tinha natureza coletiva, proposta por sindicato, como substituto processual, o que imprime ao caso uma singularidade especial (…)" —, restou justificada, em nome da livre concorrência e isonomia, "em caráter excepcional, o afastamento da Súmula 343 do STF".

Autores

  • é advogado, mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC-SP/Cogeae, professor dos cursos de especialização em Direito Tributário e extensão em "Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e Pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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