Processo Tributário

Coisa julgada e rescisão com base em precedentes

Autor

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

18 de setembro de 2022, 8h00

A discussão jurisprudencial quanto à possibilidade de rescisão da coisa julgada com base em precedentes já é antiga e remonta à década de 60, quando o STF fixou a tese veiculada na sua Súmula 343 [1]. Nessa oportunidade, antes de qualquer discussão quanto a uma pretensa aproximação do sistema jurídico nacional de um modelo de stare decisis e, ainda, muito influenciado pela segunda fase histórica do Processo Civil [2], chamada de autonomista, técnica ou científica, o STF entendeu pela impossibilidade de rescindir coisa julgada com base, no que atualmente se denomina, precedentes. E isso porque, nesse momento histórico, ainda era vigente a concepção de que apenas a lei em sentido estrito era capaz de atuar como fonte material do Direito, enquadrando-se as decisões judiciais naquele campo das fontes secundárias, assim como os costumes, a doutrina, a equidade e os princípios gerais do direito.

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Acontece que, com o passar dos anos e após uma Constituição e dois Códigos de Processo Civil, a discussão ganhou nova roupagem. Após a Emenda Constitucional 45/2004 o ordenamento jurídico trouxe novos institutos como o da repercussão geral, os recursos repetitivos e as súmulas vinculantes. O CPC/73, já reformado, também contemplava, em alguma medida, a força materialmente normativa de precedentes exarados por tribunais superiores, inclusive com a possibilidade de julgamentos monocráticos de recursos na hipótese de a decisão recorrida estar ou não em consonância com jurisprudência dominante de tais Tribunais, apenas para ficar nesse exemplo [3]. O CPC/2015 amplificou e qualificou o tratamento dessa modalidade de julgamento, estatuindo o regime de precedentes, em especial e em razão do disposto no seu artigo 926 [4].

Há, em suma, uma valorização da decisão judicial como fonte material do Direito, em especial aquelas decisões proferidas pelos nossos tribunais superiores, o que apresenta uma relevância no específico nicho Direito Tributário, já que um tratamento judicativo desigual para sujeitos passivos que se encontram em posições tributárias análogas pode implicar em sérios problemas micro e macroeconômicos.

Dentro desse contexto, em 2008, no âmbito do recurso extraordinário nº 328.812, o STF reconhece a capacidade criativa das suas decisões, ao afirmar que quando uma decisão desta corte (STF) fixa uma interpretação constitucional, entre outros aspectos está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior, que é a Constituição [5]. E, partindo dessa premissa, assim concluiu:

"De fato, negar a via da ação rescisória para fazer valer a interpretação constitucional do Supremo importa, a rigor, em admitir uma violação muito mais grave à ordem normativa. Sim, pois aqui a afronta se dirige a uma interpretação que pode ser tomada como a própria interpretação constitucional realizada" [6].

Nesse instante, o STF supera o teor da sua Súmula 343 e reconhece a possibilidade de se manejar instrumentos rescisórios — mais precisamente ação rescisória — para desfazer coisa julgada que se contraponha a um precedente daquela corte. O que, todavia, inexistia nessa oportunidade é uma manifestação do STF quanto à existência ou não de algum tipo de limite no emprego dessa ação rescisória pautada em precedente pretoriano. Essa discussão só surge em 2014, quando do julgamento do recurso extraordinário nº 590.809, oportunidade em que o STF promoveu um aperfeiçoamento da ratio decidendi do recurso extraordinário nº 328.812.

Antes, entretanto, de apresentar as conclusões do STF nesse novo caso analisado, convém aqui destacar a sua moldura fática.

Pois bem. Esse novo caso era um recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, interposto contra decisão proferida pelo TRF da 4ª Região que julgou procedente ação rescisória ajuizada pela União contra decisão transitada em julgada em favor de uma determinada pessoa jurídica, na qualidade de contribuinte. Em suma, o contribuinte ajuizou ação para ver garantido o seu direito ao creditamento do IPI nas hipóteses de insumo adquirido sem incidência tributária ou sujeito à alíquota zero, ação esta que transitou em julgado com decisão de mérito favorável ao autor. Ressalte-se que, à época em que proferida a decisão, os precedentes existentes, inclusive do próprio STF, eram favoráveis à pretensão do contribuinte.

Acontece que, depois da empreitada exitosa do contribuinte, com decisão transitada em julgado em seu favor, o STF revisitou a mesma questão de fundo debatida naquela lide, oportunidade em que superou o entendimento até então firmado, afastando o direito ao crédito de IPI — julgamento proferido no recurso extraordinário nº 353.657/PR [7] [8].

Diante deste novo quadro jurisprudencial, a União promoveu a ação rescisória alhures mencionada por entender que a decisão transitada em julgado em favor do contribuinte ofenderia o entendimento firmado no recurso extraordinário nº 353.657/PR, ação essa julgada procedente e que ensejou, por parte do contribuinte, a interposição do citado recurso extraordinário nº 590.809.

Importante ainda destacar que o caso fomentador da superação da jurisprudência do STF (recurso extraordinário nº 353.657/PR), apesar de julgado em 2007, foi interposto antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, ou seja, foi decidido sem que tivesse sido afetado pelo instituto da repercussão geral. Em suma, este era o cenário fático do recurso extraordinário nº 590.809.

Nessa oportunidade, o STF trouxe dois limites importantes para a convocação de novo pronunciamento como fundamento para ações rescisórias.

O primeiro limite então estabelecido foi no sentido de que decisões pretorianas fruto de overruling não poderiam servir de fundamento para a rescisão de decisões submetidas à coisa julgada. Caso assim não fosse, a cada superação de um precedente do STF pela própria Corte Constitucional, uma nova ação rescisória poderia ser manejada, o que ensejaria não apenas a mitigação da coisa julgada, mas sua verdadeira extinção.

O segundo limite apresentado pelo STF foi no sentido de precisar que não é qualquer decisão pretoriana que tem a capacidade de fundamentar a ação rescisória, mas apenas aquelas dotadas de efeitos abrangentes, a repercutirem fora das balizas subjetivas do processo, nos exatos termos do voto do ministro Marco Aurélio, relator do recurso extraordinário nº 590.809, ou seja, aquelas decisões que apresentem um efeito transubjetivo [9].

Acontece que a discussão não parou por aí, pois o STF ainda encontra em seus escaninhos virtuais o debate que está sendo travado nos Temas 881 [10] e 885 [11], nos quais se aventa a existência de limite não tratado no julgamento do recurso extraordinário nº 590.809, demarcado pelo seguinte questionamento: em se tratando de relações jurídico-tributárias de trato sucessivo, um precedente vinculante do STF teria o condão de automaticamente estancar os efeitos da coisa julgada para o futuro ou, em contrapartida, esse efeito só seria alcançado mediante o emprego de instrumentos processuais rescisórios?

Até a produção deste texto, os pronunciamentos nos respectivos leading cases defendem um efeito rescisório automático a contar da publicação da ata de julgamento da ação em que foi veiculado o precedente. Defende-se, ainda, que o teor dessa nova decisão se submete aos princípios tributários da irretroatividade e da anterioridade, esse último de acordo com a particular espécie tributária tratada. Em suma, os votos até então proferidos equiparam a decisão pretoriana a uma nova lei tributária.

Tal posição nos parece equivocada, tanto sob uma perspectiva conceitual como também metodológica.

O equívoco conceitual decorre do fato de que essa posição trata precedente como se lei fosse, o que não demanda esforço hermenêutico para demonstrar a injuridicidade dessa aproximação, basta destacar que lei decorre de ato inaugural no sistema jurídico produtor de regras gerais no âmbito do poder legislativo [12].

O apontado erro conceitual implica outro, de caráter metodológico, pois ao tratar precedente como se lei fosse o submete a uma aplicação própria das leis, de caráter lógico-subsuntivo, ignorando, todavia, que no sistema de precedente o método adequado é o analógico-problemático, oriundo de uma ponderação sempre atenta à identidade-diversidade própria do analógico e que, como tal, só pode considerar-se em concreto [13].

O sobredito método, próprio de precedentes, só pode ser considerado em concreto para o objeto em análise (rescisão de coisa julgada nas relações de trato sucessivos), na hipótese de haver a propositura de instrumento processual rescisório, o que, no caso das demandas de trato sucessivo, se daria especificamente por intermédio de uma ação revisional, pois só assim é possível garantir que um terceiro, imparcial e equidistante ao estratégico interesse das partes na rescisão da coisa julgada, promova a substancialmente adequada comparação adrede citada, respeitando o devido processo legal, o contraditório maximizado, a ampla defesa substancial, o que também serve para minimizar a diferença de forças entre contribuintes e Estado [14].

Atualmente os sobreditos leading cases dos Temas 881 e 885 encontram-se sob vista do ministro Alexandre de Moraes, razão pela qual ainda há tempo de fomentar o debate aqui suscintamente trazido, de modo que a presente manifestação sirva de estímulo para se construir uma juridicamente adequada conclusão para essa história.

 


[1] Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais. (data de aprovação: sessão plenária de 13/12/1963).

[2] Convém lembrar que nesse momento histórico o CPC vigente era o de 1934, fortemente pautado pela ideia de que o juiz era o aplicador em concreto da lei.

[3] A referência aqui é à lei federal:

(1) 8.038/1990 que autorizou os Ministros do STF e do STJ a monocraticamente negar seguimento a recurso que contrariasse Súmula do próprio Tribunal;

(2) 9.139/1995 que alterou o artigo 557 do CPC/1973 permitindo que o relator de recurso a ele negasse seguimento se contrário a Súmula do respectivo Tribunal ou de Tribunal Superior;

(3) 9.756/1998 que promoveu alteração no § 3º do artigo 544 do CPC/1973 possibilitando que o relator de agravo de instrumento de despacho denegatório de seguimento de recurso especial julgasse diretamente o especial na hipótese em que o acórdão recorrido contrariasse súmula ou jurisprudência dominante do próprio STJ, bem como no artigo 557, o qual passou a admitir que julgador de segunda instância ou de tribunal superior, monocraticamente, negasse ou desse provimento a recurso cuja decisão atacada confrontasse Súmula ou jurisprudência dominante do STJ, do STF ou do respectivo Tribunal.

[4] Deixaremos de lado as críticas que temos a esse abrasileirado modelo de precedentes desenvolvidos no Brasil, o qual, em nossa opinião, apresenta problemas conceituais e metodológicos. Para os interessados, tecemos tais críticas aqui: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Processo tributário analítico. CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, 2016. Vol. III. pp. 111/140.

[5] Trecho do voto do relator, ministro Gilmar Mendes.

[6] Ibidem.

[7] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – AUSÊNCIA DE DIREITO AO CREDITAMENTO.

Conforme disposto no inciso II do § 3º do artigo 153 da Constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero.

[8] IPI – INSUMO – ALÍQUOTA ZERO – CREDITAMENTO – INEXISTÊNCIA DO DIREITO – EFICÁCIA.

Descabe, em face do texto constitucional regedor do Imposto sobre Produtos Industrializados e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança jurídica.

(STF; RE 353.657, relator(a): min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 25/06/2007, DJe-041 DIVULG 06-03-2008 PUBLIC 07-03-2008 EMENT VOL-02310-03 PP-00502 RTJ VOL-00205-02 PP-00807).

[9] Já tivemos a oportunidade de nos aprofundar na análise desses limites no seguinte texto: RIBEIRO, Diego Diniz. Coisa julgada, direito judicial e ação rescisória em matéria tributária. In: Processo Tributário Analítico. Paulo César Conrado (coordenador). São Paulo: Noeses, 2013. Vol. II. pp 83-110.

[10] Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.

[11] Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.

[12] Por todos: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[13] NEVES, A. Castanheira. Instituto dos assentos. Coimbra: Coimbra Editora. 2014 (reimpressão). p. 74.

[14] Essa diferença de forças decorre da capacidade do Estado em fazer valer suas pretensões coercitivamente, fruto da autotutela dos seus interesses.

Autores

  • é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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